A vida moderna é cansativa. Não estou pensando na correria, na competição forçada, na expectativa constante de crescimento (aprenda mais, ganhe mais, compre mais, namore mais, transe mais, "seja" mais).
Tudo isso pode, de alguma forma, ser administrado, mas sem grande resultado: o cansaço permanece. Por quê?
A explicação é simples: não é a vida, é a subjetividade moderna que é cansativa. Já faz séculos que vivemos, no fundo, sem regras. Claro, há hábitos morais e princípios nos quais acreditamos, mas, justamente, eles valem só porque queremos respeitá-los.
Todas nossas escolhas, em última instância, são questões de foro íntimo; nós devemos decidir, a cada instante, se o que é legal ou conforme aos costumes coincide com o que NOS parece certo ou justo. Agir segundo os costumes e a lei não basta para justificar nem para desculpar. "Fiz assim porque é o que todos fazem ou porque assim manda a lei", para nós, não é uma razão suficiente, visto que respeitar os costumes ou a norma é uma escolha nossa.
Na clínica psicoterápica, aliás, constata-se que as culpas dolorosas não são as culpas por ter transgredido leis e costumes, mas as culpas por ter deixado de escutar nossa voz interior, por ter deixado de seguir nosso desejo ou nossa consciência moral.
Em suma, o que é extenuante, na modernidade, é ser sujeito.
A esse cansaço responde uma nostalgia de tempos passados, em que as regras e a tradição se encarregariam de decidir por nós: apelos aos "valores" perdidos, aspirações a uma vida simples e rural, vocações monásticas.
Mas a grande "cura" desse cansaço é oferecida pelas paixões de grupo, que afogam nossa incerteza no funcionamento coeso de uma coletividade onde esqueceríamos a tarefa de sermos sujeitos para sermos apenas (alívio) funcionários exemplares. Uma vez que estivermos perdidos no grupo, a extenuante pergunta íntima sobre o bem e o mal poderá ser substituída pela questão, mais simples: "Agimos ou não como o grupo manda? Fomos ou não seus instrumentos adequados?".
Os grupos que preenchem essa função estão ao serviço da covardia do sujeito: "A tarefa de decidir no foro íntimo é cansativa? Pois bem, há grupos que oferecem férias, férias da subjetividade".
Um exemplo: um bando de torcedores cruza alguém que se aproxima do estádio com uma bandeira do time oposto. Um torcedor do bando arranca a bandeira das mãos do "inimigo". Em seu estado normal, longe do grupo, o torcedor poderia se perguntar: "Quem sou eu? Um sujeito com história, família, valores, pensamentos próprios? Ou me defino apenas como um torcedor? Quem dita meus atos é minha complexa subjetividade ou o grupo ao qual pertenço hoje?".
A história fornece exemplos menos inócuos.
Há as palavras de Stálin aos camaradas que mostravam um certo desconforto na hora de arrancar aos camponeses russos seus míseros meios de subsistência: elas fazem apelo à necessidade, para os bolcheviques, de serem, como se dizia, "homens de ferro", ou seja, homens de palha de um grupo que os aliviava da responsabilidade de seus atos ("Stálin, a Corte do Czar Vermelho", de Simon Montefiore, acaba de sair em português; é imperdível).
Há o famoso discurso de Himmler aos oficiais SS que se dedicariam à "solução final": salienta a necessidade de eles se mostrarem "à altura" da tarefa genocida, ou seja, de esquecerem os escrúpulos, as compaixões e aquelas "picuinhas" que atormentam e cansam a subjetividade moderna, para que pudessem "ser" SS e exterminar sem "fraquezas".
Dediquei meu doutorado à sedução que é exercida pelos grupos que autorizam seus membros a descansar e a desistir de sua subjetividade. Mantive a tese inédita talvez porque sua questão central me parecesse pertencer a uma outra época, à época "passada" dos totalitarismos.
Pois bem, acho que vou mudar de idéia graças ao deputado Jorge Bittar, que, nestes dias, mostrou-me que a questão continua viva e urgente. A tentação de sacrificar "escrúpulos" morais, de esquecer o foro íntimo e deixar o grupo decidir por nós não é coisa do passado. Está dormindo num canto, esperando momentos propícios.
Jorge Bittar, deputado do PT, não gostou do relatório da CPI dos Correios (ou seja, achou que o relatório não era partidário como ele queria que fosse) e xingou o senador Delcídio Amaral, presidente da dita CPI, também do PT. Além das palavras chulas -as quais substituem uma violência que, num Estado democrático, não pode ser física (não dá para eliminar Delcídio, eh?)-, ele disse (frase impagável) que o senador não se portou "como um verdadeiro petista".
Para quem desiste de ser sujeito para se fazer instrumento do grupo, o outro, o que escuta seu foro íntimo, é um "traidor".
Não é a Câmara, mas o PT que deve condenar oficialmente as palavras de Jorge Bittar. Ou então deveremos entender que o PT é um daqueles grupos que oferecem férias à subjetividade de seus membros, ou seja, que pedem que eles ajam não segundo a complexidade da consciência, não segundo o que lhes parece certo ou errado, mas só como instrumentos ao serviço do partido.
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