Fui assistir à "Marcha dos Pingüins", de Luc Jacquet, em companhia de crianças pequenas. Um compromisso foi necessário: eu me contentei com a versão dublada e as crianças toparam a sessão das dez. Antevia um desastre: elas dormiriam direto e eu não agüentaria a pieguice.
As previsões estavam erradas. As crianças ficaram acordadíssimas e saíram do cinema pensativas, sem pedir nenhum pingüim de pelúcia. Isso porque o filme, justamente, não é nada piegas. Ele é um grande drama.
A vida amorosa e reprodutiva dos pingüins cumpre uma lei férrea e cruel, ano após ano: percursos intermináveis, fome, meses de imobilidade gelada chocando um único ovo e por aí vai.
Nenhuma semelhança conosco: eles sobreviveram obedecendo a uma necessidade absoluta e impiedosa, enquanto a gente sobreviveu graças à variedade plástica de nossa escolhas amorosas e de nossos comportamentos sexuais e reprodutivos.
Pensei nos pingüins que aparecem misteriosamente em nossas praias. O Ibama faz um esforço danado para devolvê-los a seu habitat natural; são levados de volta, de avião, até à Antártida ou à Patagônia. Mas será que alguém lhes pergunta o que eles querem? Há uma séria possibilidade que eles estejam pedindo asilo político na zona sul carioca. Depois de ter visto o filme de Jacquet, eu não hesitaria a lhes reconhecer esse direito.
Apesar da distância entre nossa vida amorosa e a dos pingüins, nos EUA, alguns grupos conservadores propuseram a conduta dos pingüins como protótipo de monogamia e de dedicação à família. Algo assim: "Você se queixa porque os filhos e a família dão trabalho? Você quer mais prazer na sua vida? Você quer abortar? Olhe para os pingüins e arrepende-se". Fato surpreendente, o argumento funciona. Também graças à dramatização que dá voz às "personagens" da história, podemos simpatizar com os pingüins a ponto de considerá-los como semelhantes que, no caso, seriam mais morais que a gente.
Na história da cultura, aconteceu com freqüência que alguém apontasse nos animais qualidades exemplares para nós.
O filósofo David Hume, num apêndice de sua "Investigação Sobre os Princípios da Moral" (1751), ao querer mostrar que nossos sentimentos morais são, de uma certa forma, "naturais", invoca como exemplo a "benevolência" dos animais (de fato, os animais "benevolentes" existem mais nas fábulas do que na realidade, mas não é isso que importa). O que Hume chama "benevolência" é a capacidade de sentir simpatia pelos semelhantes. Para quase todos os filósofos britânicos do século 17 e 18, essa capacidade é o fundamento da moralidade: afinal, se soubermos nos colocar no lugar dos outros, nosso comportamento terá uma boa chance de ser moralmente aceitável.
Naquela época, ingleses e escoceses debateram como nunca sobre a origem dos sentimentos morais. Havia quem pensasse que eles fossem aprendidos, derivados da experiência (John Locke); havia os que pensavam que fossem colocados por Deus no nosso âmago desde o nascimento (Shaftesbury) e havia os que, como Hume e Adam Smith, ficavam sabiamente em cima do muro. Para todos, o núcleo da moral era a capacidade de simpatizar com o outro e, portanto, de querer seu bem. A questão discutida era: "De onde vem essa simpatia que nos torna morais?".
A psicologia pode contribuir (tardiamente) a esse debate.
Existe um transtorno grave, chamado transitivismo, no qual o sujeito perde a noção de seus limites e de sua individualidade e se confunde com os outros ou mesmo com objetos inanimados ao seu redor. O transitivismo, na medida certa, é também uma disposição crucial na constituição da subjetividade normal.
Por exemplo, mães e pais conhecem um estranho fenômeno que acontece nos primeiros anos de vida de qualquer criança: na brincadeira, eis que um amiguinho se machuca e a criança que assiste à cena começa a chorar como se a vítima fosse ela. Os adultos perguntam por quê e a criança aponta, em seu corpo, o lugar em que o outro se feriu.
Não se trata de uma compaixão generosa que seria congênita nas crianças. Acontece que o sujeito humano se constrói à força de identificações com os outros. Nos primeiros anos de vida, a capacidade de me colocar no lugar do semelhante me ajuda a responder à pergunta "Quem eu poderia vir a ser?". Mais tarde, a experiência dos outros continua nos enriquecendo tanto quanto a nossa, pois levamos conosco, dentro de nós, os semelhantes que encontramos ao longo da vida.
Talvez seja esse transitivismo, básico e normal, que esteja na origem da simpatia que funda nossa moralidade. Ele nos é tão necessário que não paramos de estender o campo dos semelhantes com os quais possamos nos identificar. Inventamos e cultivamos ficções para viver a experiência não só dos outros reais, mas também de um exército de personagens imaginárias.
Na mesma linha, descobrimos a fidelidade nos cachorros, a laboriosidade nas formigas, a tranqüilidade nas montanhas e, depois do filme de Jacquet, a abnegação nos pingüins.
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