quinta-feira, 24 de fevereiro de 2000

A terapia da faca e do superbonder

Há crianças que nascem com uma malformação dos órgãos sexuais suficiente para que surja uma incerteza quanto ao sexo do recém-nascido.

A partir dos anos 50, uma equipe da Johns Hopkins University se especializou em resolver essas dificuldades. Eles eram capitaneados por um psicólogo, John Money, o qual estava convencido de que a chamada identidade de gênero (o fato de a gente se sentir homem ou mulher) era um efeito da educação recebida. Ou seja, segundo ele, pouco importavam os hormônios: as crianças viveriam como machos ou fêmeas por serem criadas brincando -quer seja de bonecas e panelas, quer seja de metralhadoras e caminhões.

Portanto, concluía Money, nos casos em que o sexo anatômico não aparece claramente definido, basta optar firme para o sexo mais fácil de ser reconstruído cirurgicamente. Em seguida, resta tratar a criança como menino ou menina, de acordo com o resultado da operação. A faca escolheria o sexo, e o sentimento de identidade iria se adaptar à nova realidade anatômica.

Os casos tratados pela equipe de Baltimore eram todos de crianças que apresentavam órgãos sexuais confusos e, portanto, também deviam sofrer de algum descompasso hormonal. Faltava um caso que demonstrasse a doutrina sem equívocos. O destino ofereceu a Money essa chance quando o pequeno Bruce Reimer caiu em suas mãos.

A história desse mártir do obscurantismo acaba de ser contada de maneira magistral por John Colapinto, no livro "As Nature Made Him" (HarperCollins), que se lê num sopro de indignação. Em 1966, Bruce e Brian Reimer, irmãos gêmeos, aos seis meses, foram submetidos à circuncisão.

A de Bruce não deu certo, e o pênis da criança foi irreparavelmente queimado. Na época, as perspectivas de cirurgia reconstrutora eram incertas. Os pais encontraram Money e o grupo de Baltimore, para quem Bruce era o caso pedido a Deus: não um hermafrodita, mas um menino normal, com cargas hormonais normais -apenas amputado. Com ele, seria possível mostrar sem ambiguidade que o gênero é só uma questão de educação. Money propôs então transformar Bruce em menina. A criança foi, portanto, castrada (ablação de testículos e escroto), rebatizada como Brenda e criada como menina. Em perspectiva: outras cirurgias para criar uma vagina funcional e hormônios na puberdade, para desenvolver seios e aparência feminina.

Durante anos, Money permaneceu cego ao sofrimento de Bruce/ Brenda -apresentou o caso como um completo sucesso. A fraude foi revelada só em 1997. E hoje Reimer, que decidiu se chamar David e voltou a ser o homem que de fato ele nunca deixou de ser, conta seu calvário.
Lições urgentes de serem ouvidas:

1. Money defendia a idéia de que a educação pode tudo e a biologia não apita nada. Essa idéia era progressista: foi nela que o movimento feminista se apoiou para mostrar que o lugar subalterno da mulher na sociedade não é uma necessidade biológica. Hoje, uma parte do movimento gay acha progressista afirmar que as orientações sexuais são decididas biologicamente. Moral: as ideologias mudam. Portanto, é bom deixar a ideologia na gaveta, sobretudo quando ela comanda uma faca.

2. Os defensores da primazia da educação sobre a biologia castraram Bruce Reimer. Os defensores da primazia oposta já lobotomizaram cérebros e ainda vão cortando. Não está na hora de aceitar que a verdade esteja no meio? Ou seja, que somos uma complexa e indissociável mistura de carne, palavras e imagens, em que não vem ao caso decidir qual dos três pode mais? Um pouco de humildade não faria mal a ninguém.

3. Psiquiatras e psicólogos pensaram que era possível criar Bruce como se ele tivesse nascido menina. Eles acreditaram que os pais nada transmitiriam de sua raiva, de sua frustração ou mesmo de seu sentimento de culpa. Acharam que seria possível organizar a vida de uma criança ao redor de uma mentira sem que isso transparecesse. É só dar as instruções certas para o comportamento dos familiares. Mas quem lhes deu um diploma?

4. Paul McHugh, atual chefe do departamento de psiquiatria de Johns Hopkins, compara as práticas de Money com a lobotomia e encoraja os psiquiatras a voltar a escutar seus pacientes, abandonando as práticas radicais. Ainda hoje, cirurgias irreversíveis são promovidas, por exemplo, na cura de neuroses obsessivas. Antes de confiar os pacientes à faca, cortando cabeças em cima ou em baixo, é bom refletir sobre a história de David Reimer.

5. A pressa em cortar, de Money e de outros, pode parecer um desejo de consertar as coisas. Algo não está certo? Eles querem resolver logo, antes que comece a doer. Chegam de faca e superbonder. Foi esta a idéia com Bruce Reimer: conserta logo antes que ele se dê conta. Não lhe deixa o tempo de urrar à Lua pelo horror do qual foi vítima. Será que é generosidade? Ou então covardia de terapeutas que não querem ouvir a dor de seus clientes? Na pressa de consertar, nós acabamos de ver para o que serve realmente a faca. O superbonder serve para colar a boca do paciente.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2000

Um "custo Brasil" a mais

Leio na imprensa americana uma história de corrupção. O superintendente das escolas de Lynn, Massachusetts, é acusado de ter promovido indevidamente sua própria mulher, empregado seu advogado pessoal sem licitação e outras coisas parecidas. Numa outra cidade, uma figura análoga gastou US$ 600 mil para consultorias não muito bem definidas e, sobretudo, em parte efetuadas pela sua irmã.

A corrupção brasileira e a americana não são muito diferentes: banalidade e universalidade da mesquinhez.

Mas há uma diferença notável entre os relatos de corrupções tão parecidos. Os relatos americanos (tanto na imprensa quanto nas conversas de bar) são factuais e pouco indignados. É muito raro que eles sejam acompanhados por considerações gerais sobre a malvadeza humana, e é impensável que o acontecido seja atribuído a algum traço do suposto caráter americano. A caricatura nacional não é nunca invocada como explicação.

Os relatos brasileiros, ao contrário, assumem um tom autoflagelador. O pior nos é reservado por estarmos no Brasil e sermos brasileiros: "Meus irmãos, somos sem-vergonha, malandros, aproveitadores etc.". Não que o Brasil seja só isso, mas o que há de ruim em nosso destino é o preço que pagamos por estarmos respirando ares culturalmente mefíticos no sovaco desse gigante.

Pelo mundo afora, todos indivíduos, grupos, famílias, sociedades sofremos de passivos herdados. É ótimo investigar esses passivos, para melhor ultrapassá-los. Essa é, por exemplo, uma das funções de qualquer psicanálise. Mas não seria preocupante se, cada vez que eu fizesse uma besteira, me consolasse e desculpasse alegando meu "custo Contardo"? "Oh! Não paguei impostos? É "custo Contardo", sabem como é, minha família nunca gostou mesmo."

Em suma, certamente há um "custo Brasil", ou seja, uma série de dificuldades que devemos à história do país. Mas há também um "custo Brasil" suplementar e talvez mais oneroso, que é um efeito retórico.

O Brasil, por exemplo, rouba a cena de nossas narrativas. Sinto falta de histórias que sejam de amor, de ódio, de aventura ou simplesmente de vida e nas quais o Brasil não seja um protagonista sorrateiro, mas sempre crucial. Será que é possível se apaixonar na Lapa, transar nos motéis da marginal, jantar no edifício Itália, descer para Santos num domingo, sem que o mau governo, a injustiça social, os problemas do trânsito, o passado bandeirante, os restos da escravatura e todos os traços da identidade nacional sejam convocados para contar, legitimar e justificar a história?

Esse "custo Brasil" retórico empobrece também nossos esforços de compreensão. Ele induz à preguiça do pensamento e inibe a ação. Pouco adianta dar respostas concretas para os problemas que nos assolam, pois a causa do que não funciona é sempre mais geral e, por isso, está fora do alcance. Por exemplo, imaginemos que a produtividade brasileira esteja baixa. Poderemos reconhecer que o protecionismo serviu à miopia de empreendedores pusilânimes, os quais aproveitaram das vacas gordas sem modernizar o aparelho produtivo. Mas logo chegaremos a uma causa originária: por exemplo, os ditos empresários encheram seus bolsos, em vez de modernizar suas fábricas, porque as elites brasileiras são uma herança do extrativismo colonial etc.

As coisas vão se explicando, até que em última instância tudo acontece "porque o Brasil". Poderia se tornar uma expressão sem verbo: há criminosos porque o Brasil, há corruptos porque o Brasil, há caudilhos porque o Brasil, há favelados porque o Brasil. E por aí vai. Melhor, por aí não vai a lugar nenhum, pois o Brasil torna-se assim a figura retórica do primeiro motor imóvel de todas as cadeias causais. Ele é portanto imutável, igual a si mesmo.

Esse Brasil retórico, origem de todos nossos infortúnios, vinga por ser também nosso sumo bem, nossa consolação: ele responde a nossas perplexidades, autoriza nossa inação e sobretudo cimenta nossa comunidade. Ele é uma língua compartilhada, que nos torna todos amigões. Graças a ele, podemos olhar para a Câmara Municipal, para o engenheiro que escravizou sua empregada, para o deputado do narcotráfico e piscar o olho uns para os outros, sorrindo encantados: "É isso aííííí!". Eis que nossos males são do Brasil, do mesmo jeito que os gols são da seleção. É o encontro festivo com uma imagem fácil e pitoresca que nos propõe prazeres narcisistas clandestinos.

Vivo, como muitos outros, uma contradição. Por um lado, há a paixão de entender uma herança que mistura ativos e passivos com a esperança de conseguir assim preparar um futuro melhor. Pelo outro, a irritação com o recurso contínuo a essa herança, em que a fascinação complacente nos imobiliza, como se, logo na hora de agir, Carmen Miranda saísse no palco e pedisse para permanecermos sentados para o show.

Melhor confessar, para que se entenda do que estou falando: ontem, um amigo me contou de um horror brasileiro qualquer. Seus olhos brilharam, irônicos, mas complacentes, ao concluir: "Isso é o Brasil!".
Pois é, não quero mais isso.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2000

A Europa apavorada consigo mesma

Um partido de inspiração aparentemente neonazista entrou na coalizão que governa a Áustria.

Ele representa quase um terço do eleitorado. A Europa está apavorada. Deve ser consigo mesma, pois, na verdade, o sucesso da extrema direita européia não é nenhuma novidade. Na Itália, ela já esteve no governo. Na França, conquistou administrações regionais e municipais. No resto da Europa, ela é uma presença violenta e constante.

Atrás dos apetrechos nostálgicos -suásticas e braços erguidos-, há hoje um denominador comum simples e popular: o ódio aos imigrantes.

Os europeus são uma espécie em via de desaparição. Em poucos anos, na Europa, haverá um aposentado para cada dois trabalhadores ativos: uma carga insustentável. É necessário receber imigrantes.

Ora, acontece que a União Européia não se apresenta como uma etnia. Nem como um território. Também nega que esteja reunida ao redor de vulgares interesses econômicos. Ela quer se definir, em suma, como uma herança espiritual, ou seja, uma cultura.
Acontece também que os candidatos a imigrar para Europa vêm do mundo muçulmano, da África negra ou dos países eslavos ex-comunistas.

A essas três categorias de imigrantes são reservados sentimentos diferentes.

Os eslavos são desagradáveis concorrentes no mercado dos empregos de base ou então candidatos à delinquência.

Os africanos negros são mais tolerados que os muçulmanos: o inquietante não é a cor da pele. O racismo europeu é cultural. Ora, os negros africanos, aos olhos dos europeus, vêm de culturas primitivas e subalternas. Seu destino presumível, a médio prazo, é a colonização de seus espíritos: por mais que sejam negros, se tornarão europeus de alma.

Os muçulmanos são os mais detestados, pois, ao contrário dos negros, são altivos e antagônicos: o Islã é uma cultura forte, se não expansionista, no mínimo autônoma. Em outras palavras, os negros africanos podem ocupar as ruas de Paris ou Viena, pois, de qualquer forma, consola-se a direita européia -colonizaremos suas mentes como, no passado, colonizamos seus países. Os muçulmanos, ocupando as mesmas ruas, não abrem seus espíritos aos charmes europeus. Quem sabe eles até tentem corromper nossas mentes.

A raiva xenófoba se alimenta hoje desta contradição: o continente precisa de imigrantes para sobreviver, mas ele não sabe lidar com culturas diferentes sem se sentir ameaçado em seu fundamento.

As soluções (capengas) a esta contradição têm um custo econômico alto. Limitar a chegada de imigrantes significa parar de crescer. Impor uniformidade cultural para aqueles que imigram, assimilá-los à força, não é só ideologicamente intolerável, é também ruim para a diversidade do consumo.

Fora da Europa, há países que prosperam evitando estes impasses: os EUA se mantiveram abertos à imigração e veneram as diferenças culturais. Nos últimos 50 anos, eles inventaram assim, dentro de sua própria sociedade, uma espécie de modelo para uma globalização bem-sucedida. A proposta é: podemos e devemos ser todos diferentes, à condição de que tenhamos em comum o desejo de prosperar e de que nossa diferença não interfira na prosperidade.

As peculiaridades (etnias, estilos de vida, orientações sexuais etc.) são exaltadas, garantindo uma rentável diversificação de costumes e consumo. Mas elas são subordinadas ao pressuposto comum pelo qual, no jogo econômico, as diferenças devem ser tão acessórias quanto a livre escolha da cor da gravata em um escritório dos anos 50.

A Europa, em suma, gostaria de participar da festa neoliberal, mas se atrapalha, pois sonha que o homem global possa seguir se definindo pela cultura concreta da qual é filho. Por exemplo: "Sou global, ganho global, invisto global, mas sigo francês e me defino pela baguete e por Godard". Isso acaba em: "Sou austríaco e não gosto de "turco'". O que é péssimo para a produção e para os negócios.

Os EUA descobriram que o homem global pode manifestar sua originalidade. Afinal, Godard e as calças curtas de couro à tirolesa são bens de consumo: que cada um compre livremente. Ora, preço da prosperidade: estas diferenças todas devem ser de brincadeira, pois por cima delas paira uma única cultura de verdade, pela qual, apesar de nossas pretensas diferenças, somos todos agentes econômicos intercambiáveis.

E o Brasil nesta história? Uma glória explícita da cultura brasileira é a capacidade de digerir, misturar e, portanto, respeitar todo tipo de diferença. Mas, curiosamente, o país se fechou à imigração, como a Europa. Não foi por receio da variedade dos imigrantes. Foi para que mais ninguém viesse aproveitar do bolo. Por herança do extrativismo português, o Brasil foi, e talvez ainda seja, patrimonialista. Espera-se a prosperidade não tanto do trabalho e da invenção produtiva, quanto de tesouros escondidos: ouro (amarelo ou verde), prata, diamantes e esmeraldas, petróleo, sem falar dos segredos biológicos das plantas amazônicas. É ainda outro tipo de impasse.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2000

Irã, Nigéria, Paquistão, Arábia, Iêmen e EUA

O que têm eles em comum? Não é uma brincadeira. Há algo que só é próprio desses países.

Aqui vai: são os únicos países onde são justiçados criminosos que eram menores de 18 anos no momento do crime. Os EUA estão em primeiro lugar na lista, com o maior número dessas execuções desde 1990: dez.

Quando menciono esses dados da Anistia Internacional, recebo às vezes comentários do tipo: "Pois é, no Brasil os grupos de extermínio se encarregam das crianças criminosas. É muito pior-segue o comentário-, pois elas são mortas por vingança ou por medo, sem justiça. Nos EUA, ao menos, a coisa é feita segundo a lei".

Em suma, pensam meus interlocutores: "Se for preciso matar criminosos menores, melhor que seja feito pela comunidade em sua expressão legal e não por assassinos pagos por comerciantes exasperados. A primeira solução seria mais civilizada".

Tendo a pensar o contrário. Exterminadores e jagunços podem até gozar de impunidade, mas não são os apóstolos do bem social: eles são criminosos como suas vítimas. O ato dos carrascos oficiais, ao contrário, é apresentado como o bem social. Eles representam uma comunidade que pratica a execução de menores como forma de justiça.

Há um consenso ocidental e moderno de que a pena de morte não deve se aplicar a criminosos menores, pois eles são suscetíveis de mudar. Por isso eles são poupados e destinados à reabilitação.

Não é que confiemos nos adolescentes. Confiamos no poder pedagógico dos adultos, em nossa capacidade de corrigir os jovens. Nisso os norte-americanos não são diferentes de nós. Como se explica, então, sua presença nessa estranha lista?

Os cinco colegas dos EUA são países de cultura tradicional -onde a tradição pode e deve dizer o que é certo ou errado, quem deve ser punido, quando e como. Ao contrário, para nós ocidentais e modernos, a moral é um terreno minado, difícil, contraditório. Somos nós que devemos decidir o que é bem ou mal. O fundamento da justiça é tão subjetivo que, para julgar, nos identificamos com o culpado.
A sugestão cristã "quem estiver sem pecado, jogue a primeira pedra" é o começo do fim da certeza ética. Em suma, nossa autoridade moral é normalmente duvidosa e hesitante. Condenar deveria ser, para nós, um tormento.

Justamente, executar qualquer culpado supõe uma dupla certeza moral, difícil em nossa cultura: a certeza de reconhecer um mal sem desculpa e a certeza de sermos suficientemente diferentes do culpado para que a condenação não seja hipócrita. Executar menores implica mais uma certeza que chega a contradizer um dos princípios básicos de nossa cultura: o sujeito ocidental moderno se define por seu potencial de mudança, por seus futuros possíveis. Ora, para executar um menor, é necessário acreditar que ele não mudará.

Ao entrar na lista, os EUA -supostamente o protótipo de país ocidental moderno- parecem abandonar a atormentada incerteza moral que define a modernidade. Por qual milagre? Será que eles produziram, enfim, uma nova comunidade tão coesa que consegue legislar com o mesmo tipo de certeza moral de uma sociedade tradicional?

Seria o sonho de Rousseau realizado. Melhor e mais firme do que a própria tradição, a vontade geral dos cidadãos orienta a todos. Se for o caso, perdoem, mas não me dá vontade de festejar. Gosto de nosso sentimento de mediocridade moral. A incerteza do juízo, a hesitação em julgar por achar que somos tão indignos quanto os acusados, é o que temos moralmente de melhor. Sem isso, nossos gestos repressivos parecem pantomimas de palhaços hipócritas e facilmente sanguinários.

Desconfio da certeza moral norte-americana até porque, curiosamente, ela parece estar crescendo nos últimos anos. Felizmente para a carne mas infelizmente para o espírito norte-americano, a década que acaba foi de grande prosperidade para os EUA. Ora, o pragmatismo norte-americano é retroativo, ou seja, considera que, se algo deu certo, é porque mereceu a aprovação divina. A prosperidade econômica dos EUA produz, assim, autorização moral. Nos enriquecemos, portanto somos os eleitos. Porque duvidaríamos de nossas escolhas morais se, obviamente, é Deus que traça nosso caminho? Quem discordar, que se cuide.

P.S.
1.Clovis Rossi, em sua correspondência de Davos, relata que Umberto Eco preocupou empresários e políticos, anunciando o triste fim da ética tradicional. Engraçado. Será que a incerteza do julgamento moral que nos acompanha e vem crescendo há quase meio milênio é tão dura de aguentar? Não sei o que Eco tinha na cabeça, mas -em vez de chorar sobre as certezas perdidas- me parece urgente aceitar que nossa incerteza pode ser uma virtude. E, portanto, desconfiar de novas perniciosas certezas com as quais não sei se estamos a fim de viver.

2. O Estado de Illinois acaba de decidir uma moratória das execuções, por medo dos erros judiciários. Pois, desde 77, 13 condenados à morte foram inocentados e liberados. Na falta de uma boa incerteza moral, já é bom reconhecer que a gente não é infalível.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2000

Se não posso cometer excessos, por que viver?

Leio as estatísticas recentes da epidemia da Aids nos EUA. Aparece uma desproporção: 52% dos homens que se contaminam por práticas homoeróticas são hoje negros ou latinos.

Aparentemente os programas de prevenção não funcionaram com os membros dessas minorias. Segundo os comentários, a culpa estaria nas diferenças culturais: negros e latinos bissexuais se consideram heterossexuais e acham que essa história não é com eles. A explicação faz sentido, mas fico com a impressão de que negros e latinos se cuidam menos também por serem aqui minorias desfavorecidas.

Há outras realidades em sintonia com essa impressão. Por exemplo, o cigarro: entre os que não largam, os pobres são os mais numerosos. Aliás, as companhias de tabaco agradecem ao Terceiro Mundo, que é menos sensível às campanhas contra o fumo. A mesma coisa vale para os hábitos alimentares e outras práticas saudáveis ou, ainda, para o respeito às regras do trânsito etc. Parece existir uma proporção inversa entre cuidado com a vida e com a pobreza: não vale a pena se apegar à vida pobre. É uma lógica chata, com um pressuposto incômodo: a vida que merece ser vivida seria a de brancos classe A, com conta no banco e futuro garantido.

Os outros não têm por que se preservar. Por mais que esse argumento seja corriqueiro, há uma velha piada que diz o contrário, ou seja, que a vida sem excessos nunca vale a pena. Esse chiste acompanha há mais de um século os avanços dos ditados da boa saúde. Sua mola cômica é a seguinte: as condutas saudáveis podem prolongar a vida, mas a gente não sabe mais direito se a vida, uma vez limitada ou organizada por essas condutas, ainda vale a pena.

Ou seja, se não posso cometer nenhum excesso, por que viver tanto? Nos anos 50, quando Baco, tabaco e Vênus eram estigmatizados como inimigos da saúde, ríamos de uma cumplicidade implícita na transgressão: podem falar, mas não vamos parar por isso. Ultimamente, essas piadas perderam a graça porque não há mais cumplicidade implícita que nos faça rir. Aceitamos a prescrição: você precisa mesmo parar com os excessos. Parece que o ideal de vida não é mais uma aventurosa queima de forças e paixões, mas uma espécie de repetida vacina contra a morte.

Os excessos, que consomem a linfa, ficam com os pobres que podem se dar a esse luxo por não ter nada a perder. É a versão contemporânea da história hegeliana do mestre e do escravo. Para Hegel, o mestre clássico era aquele corajoso cavalheiro que desafiava a morte, pois não fazia de sua sobrevida um valor essencial. O escravo era, ao contrário, aquele que preferia sobreviver. O mestre procurava ocasiões para mostrar a sua valentia. O escravo trabalhava. O mestre defendia o escravo com sua espada, mas lhe devia a sua subsistência. Hegel antevia que, com isso, o mestre perderia a capacidade de plantar, fabricar, produzir etc.

Um belo dia, ele estaria tão alienado do mundo que o escravo acabaria tomando posse. As coisas não foram por esse lado. O escravo não se apoderou da produção. Mas talvez a previsão de Hegel não estivesse de todo errada, pois está acontecendo outra coisa parecida. O mestre achou graça nos privilégios de seu status e parou de desafiar a morte. Aliás, ele não quer nem ouvir falar em morrer.

Ao contrário, passa seu dia se preocupando com o que se preservar. Sua definição da vida é a prevenção do risco e da doença. Emaciado devido aos regimes, abstratamente exercitado por bicicletas e esteiras que não vão a lugar nenhum, adverso à promiscuidade, incerto entre preservativo, masturbação e abstinência, ele é uma figura triste: um parcimonioso de si mesmo.

De tanto se preocupar em sobreviver, talvez ele esteja perdendo a capacidade de gozar. O escravo poderia ficar com o prazer de viver, pois, por ter pouco ou nada a perder, talvez ele se aventurasse a gozar a vida como um bem que poderia ser gasto. As coisas ainda não chegam a tanto, até porque é difícil o escravo gozar a vida sem comida no prato.

Mesmo assim, o mestre se antecipa e já inveja esse escravo que se permite perigosos e proibidos prazeres. Nos desfiles de Paris da semana passada, Dior apresentou uma coleção costurada de trapos e de imitação de jornais velhos, tentando vestir as modelos como sem-tetos nas ruas da cidade. Como conhecer o "frisson" da vida escrava sem perder a bússola? Simples: US$ 25 mil compram uma roupinha de sem-teto. Mais baratas, mas não de graça, são as calças da Calvin Klein, tratadas para parecer sujas.

Nada de novo. Afinal, pobre se mata nos guetos, e rico tenta imitá-lo com paintball e video game. Pobre se perde na cracolândia, e rico cheira uma coca social no sábado à noite. Sugestão para alguma agência de turismo: por que não propor um fim-de-semana em barraco de favela autêntico, com tiroteio garantido? P.S.: Para evitar um mal-entendido: parei de fumar, não como gordura e desaconselho promiscuidade sem camisinha. Mas me consterna a idéia de que se manter em vida esteja se tornando a principal razão de viver.

domingo, 23 de janeiro de 2000

Acusação sem endereço

Acusação sem endereço


No caderno Mais! do último 9 de janeiro, João Cezar de Castro Rocha propõe algumas críticas ao meu ensaio "Do Homem Cordial ao Homem Vulgar", publicado neste mesmo caderno em 12 de dezembro de 99. Na verdade, concordo com quase todas as suas críticas, só não entendo a quem elas se endereçam. Fico olhando por cima de meu ombro para ver se há alguém atrás de mim com quem meu crítico estaria falando, pois não me reconheço no que ele parece ler em meu texto. Faço parte de uma geração que, no catálogo das boas maneiras, aprendeu a descartar o acusatório "você não entendeu" e preferir o mais humilde "não me expressei direito". Então é isso: devo ter-me expressado mal e aproveito agora para melhorar.

Herança genética
Segundo meu crítico, eu compreenderia "a cordialidade como índice de um hipotético caráter brasileiro". É engraçado: nunca desisti de mandar brasa contra a caracterologia nacional e agora acabo convencendo João Rocha de que é nisso mesmo que acredito. Eta imperfeição da linguagem humana! Dito com clareza: não acredito, nunca acreditei, nem acredito que acreditarei um dia na existência de um caráter nacional brasileiro que desceria do céu como uma herança genética ou mesmo histórica. Nenhuma brasilidade garante uma continuidade cordial atrás dos percalços da história brasileira. A cordialidade não é um traço inato da personalidade brasileira (a qual, por sua vez, não é uma entidade nem física nem metafísica). Ser cordial é um hábito (no sentido aristotélico) que resulta de um tipo dominante de relações sociais. Portanto a sociedade brasileira não é o efeito de nossa congênita cordialidade. Ao contrário, podemos nos servir da cordialidade para descrever de maneira colorida e sensível as formas de vida que resultam de uma organização social em que (resumindo) a ordem privada se impõe à ordem pública. Não sei por que Rocha também considera que a cordialidade seria para mim só brasileira ou que eu compreenderia Sergio Buarque "exclusivamente como uma interpretação da formação social brasileira", negligenciando a relevância teórica de suas análises. Sigo olhando por cima de meu ombro esquerdo e direito: ninguém, então é comigo mesmo. Mas não vejo de onde essa impressão chega até meu crítico. Talvez seja porque tenho a reputação de nunca ter viajado fora do Brasil. Bom, trégua de ironia: o hábito da cordialidade resulta de uma configuração social que é banal.

Máfia e mortadela
No quadro limitado e ("hélas!", relativamente) breve de minha vida já me deparei com algo análogo: foi na Itália, no pós-guerra. A mesma herança de um mundo rural que o fascismo não mudou. A mesma constituição dos traços "cordiais" em uma espécie de fetiche (o termo de Teresa Sales é insubstituível) nacional. Em vez de carnaval, samba e futebol, na Itália foi mandolina, pizza, mortadela, máfia, "mare chiaro" e "sole mio". Curiosamente, quando o milagre dos anos 50 e 60 impôs uma modernização política e produtiva, as elites também evoluíram para a vulgaridade (que tampouco é uma prerrogativa do espírito brasileiro). O ensaio trata do Brasil de hoje e descreve uma transição social que poderia ser apresentada em termos suficientemente abstratos para fazer feliz qualquer weberiano. Melhor ainda, ela poderia facilmente ser encontrada em outros momentos e lugares. No Brasil de hoje, como na Itália do milagre, a vulgaridade acontece quando uma modalidade moderna da divisão social e do exercício do poder é adotada pelas elites sem que o tecido social se altere em consequência. Mais especificamente, a vulgaridade acontece quando a ostentação -peça-chave da organização social moderna- é acatada sem seu corolário de mobilidade social. A ostentação perde assim sua função de alimentar a inveja generalizada como motor da competição e, portanto, do desenvolvimento. Ela se torna a caricatura ou o travesti de uma forma arcaica de opressão. Não é difícil entrever que essa conjuntura é tão banal quanto o fato de que as elites da periferia do neoliberalismo se globalizam facilmente sem renunciar às formas (eventualmente arcaicas) de domínio que garantem seus privilégios.

Brutalidade abstrata
Enfim, entre João Rocha e eu há pelo menos um ponto de discordância, sem mal-entendido. Meu crítico se surpreende que, na conclusão do ensaio, eu aposte numa cordialidade brasileira anterior à vulgaridade. Nessa esperança, ele vê mais uma complacência em relação à brasilidade que não existe.

Ora, sem fascínio pelo fetiche do caráter nacional e sem saudosismo, parece-me possível desejar que resíduos da formação social nacional permaneçam como hábito de comportamento e, quem sabe, aliviem a brutalidade abstrata que a modernização globalizada promete a todos.
É possível que, como escreve Carlos Drummond, citado por meu crítico, "os brasileiros" não existam. Razão a mais para tentar inventá-los direito. Como nenhuma invenção se faz a partir de zero, se der para escolher, gostaria delevar para o futuro um pouco da "cordialidade generosa" do povo que eu evocava -confesso, sim, com ternura e simpatia- no fim de meu ensaio.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2000

De onde vem o despertar de uma besteira

Surpreendi o primeiro vagido de uma besteira. Senti-me como um astrônomo que, por puro acaso, apontando seu telescópio para o céu, veria um corpo celeste surgir do nada.

Foi assim. Em janeiro, os "Archives of General Psychiatry" publicaram um artigo inexpressivo -uma daquelas pesquisas que servem para levantar fundos e preencher as exigências de publicação do mundo acadêmico americano. Durante quatro anos, os autores testaram o nível de cortisol na saliva de 38 rapazes patologicamente agressivos. O cortisol é um hormônio produzido pelo organismo em situações de estresse e medo.

Constatou-se que, entre esses jovens com problemas de conduta, os mais violentos eram os com menos cortisol no organismo. Explicação: os que menos se angustiam são os mais violentos, porque não são inibidos pelo medo das consequências de seus atos.

Os autores comentam: "O mecanismo que liga uma agressividade persistente a baixas concentrações de cortisol não é conhecido. Modelos animais mostraram que estresse no pré-natal e no desenvolvimento precoce podem causar alterações duradouras ou mesmo permanentes do eixo hipotalâmico-pituitário-adrenalínico (que é responsável pelo cortisol -nota minha). Seria interessante em estudos futuros examinar se um certo estilo de vida próprio a famílias anti-sociais (tabagismo materno ou exposição a outros teratogênicos durante a gravidez, incompetência dos pais, ambiente caótico e imprevisível, abuso, ameaças, privações) pode ser associado a desregramento desse eixo".

Em outras palavras, a pesquisa constata a correlação entre uma situação fisiológica (baixo nível de cortisol) e o comportamento patológico agressivo. Mas a causa da patologia reside nas dificuldades da vida desses jovens. A partir dessa conclusão seria possível sair propondo um chiclete de cortisol, com a idéia de que ele possa acalmar nossos adolescentes. Mas os autores nunca diriam que esse remédio cura a agressividade dos adolescentes. Seria apenas um paliativo.

Ora, acontece que os problemas de comportamento dos jovens são um best seller cultural e terapêutico. Pais desesperados pagariam qualquer preço para a cura da agressividade adolescente. Qualquer novidade nesse campo, por inexpressiva que seja, é notícia.
Eric Fidler, um jornalista da Associated Press, achou que a pesquisa poderia dar samba e escreveu um breve artigo no qual a pesquisa dos "Archives" passa por uma séria cirurgia plástica.

O artigo começa assim: "Na saliva de jovens muito agressivos foram encontrados níveis menores do que o esperado de um hormônio do estresse. O que sugere que seu comportamento pode ser biologicamente fundado e difícil de ser tratado com terapia. É o que foi anunciado ontem por pesquisadores". O que aconteceu? O jornalista entrevistou um dos autores, Keith McBurnett, e conseguiu que ele sugerisse que um tratamento apropriado poderia incluir remédios similares àqueles administrados às crianças hiperativas.

Fidler, em suma, preferiu esquecer a pesquisa e levou McBurnett a afirmar o que ele (Fidler) estava a fim de ouvir -ou seja, que vamos poder tratar adolescente violento com pílulas.
Será que para conseguir uma notícia que prestasse Fidler empurrou McBurnett a falar besteiras em desacordo com sua própria pesquisa? Será que McBurnett se deixou empolgar por seus 15 minutos de celebridade? Provavelmente as duas coisas ao mesmo tempo.

Moral da história: uma pesquisa inexpressiva sobre uma simples correlação fisiológica (sem implicações causais) encontrou a ambição de um jornalista, que encontrou a vaidade de um psicólogo. Graças a isso, ela se transformou numa afirmação sobre a causalidade de um dos comportamentos mais problemáticos em nossa cultura.

Previsão: a seguir, equipes médico-psicológicas improvisarão programas experimentais de tratamento bioquímico para adolescentes agressivos. Logo um laboratório farmacêutico produzirá um suplemento de cortisol que dará ótimos resultados nos testes: vamos dizer, 50% de curas. Tempos depois, alguém verificará que de fato qualquer placebo inerte daria o mesmo resultado.

No entanto, o laboratório ganhará à beça. As equipes hospitalares serão louvadas por sua cientificidade e, naturalmente, durante vários anos, uma série de rapazes violentos ficarão sem ninguém que preste atenção à mensagem desesperada contida em seus atos.

P.S.: Na última segunda-feira, dia 17, outro jornalista da Associated Press soltou um artigo sobre uma doença que torna inválidos 10 milhões de americanos. É a "desordem da angústia social", melhor conhecida como timidez. É um artigo estranho, com algumas entrevistas com pessoas tímidas e nenhuma referência a pesquisas recentes. Pergunto-me: qual é a necessidade desse artigo? Por que agora? Onde está a notícia? Aí, ligo a TV: repetidamente aparecem os anúncios da campanha publicitária do Paxil, remédio proposto para curar a dita "desordem da angústia social". Que coincidência, não é?

quinta-feira, 13 de janeiro de 2000

No ano novo, prometo parecer sincero e autêntico

Eu ficaria satisfeito se recebesse um dólar por cada criança americana que abriu sua lista de intenções para o ano novo com a promessa de nunca (mais) mentir.

Mentir, nos EUA, é o pecado fundamental. Melhor encarar as consequências de uma verdade incômoda do que falar falsidades. O presidente Clinton que o diga: os americanos preferem lhe perdoar as escapadelas com Mônica Lewinski a suas tentativas de ocultá-las.

De um ponto de vista europeu e latino-americano, as mentiras de um "gentleman", por exemplo, devem ser consideradas com condescendência, pois a honra de uma dama passa antes das exigências de sinceridade de seu cavalheiro. Desse mesmo ponto de vista, há mil fidelidades que poderiam anteceder o compromisso com a verdade. Mentir visando o bem não é nenhum paradoxo para nós.

Outro exemplo: a significação das cartas de recomendação. No Brasil ou na Europa, elas manifestam sobretudo o apoio de quem recomenda: "Por respeito a mim, trate bem o portador da presente". Nos EUA, a carta de recomendação é escondida do recomendado para que nada impeça quem recomenda de falar verdades desagradáveis. Ou seja, pediu recomendação: leva a verdade. A carta vale portanto como atestado verídico, não como manifestação de apoio. Aliás, é mais fácil pedir dinheiro emprestado a um amigo americano do que lhe pedir para mentir.

Em contraponto, a sinceridade se torna a virtude americana originária. George Washington, herói fundador, poderia ser celebrado por uma série de razões: coragem, persistência, honestidade etc. Na lenda, fica como o homem que nunca disse uma mentira, nem quando criança. É engraçado, pois nos terríveis invernos da guerra de independência, se Washington não tivesse mentido a seus homens sobre salários, perspectivas da campanha ou mesmo previsões do tempo, provavelmente não sobraria ninguém para discutir com os ingleses.
Resumindo, nos EUA, mentir é um pecado a priori e a sinceridade é uma virtude abstrata.

Há uma explicação clássica para isso: numa sociedade individualista realizada e composta por agentes sociais iguais em princípio e direito- a mentira produziria uma confusão social intolerável. Se as pessoas não se definem por nascença, sangue etc., sinceridade e autenticidade se tornam valores cruciais, pois sem eles nunca saberíamos direito com quem estamos lidando. Quanto mais uma sociedade for moderna, tanto mais a sinceridade e a autenticidade serão suas obrigações morais.

É isso que, anos atrás, me lembro de ter entendido, lendo "Sinceridade e Autenticidade", de Lionel Trilling, o grande crítico americano. Ser sincero e autêntico é uma obrigação cultural moderna justamente porque nossa história pessoal nos define mais do que nossa estirpe ou nossas heranças. Nós nos inventamos e os outros nos conhecem porque lhes apresentamos essa nossa invenção, portanto, torna-se crucial não mentir. Isso vale da conversa fiada até o amor, passando pelo mercado do trabalho: se consigo meu emprego pelo que eu fiz e sei fazer e não por ser amigo do marquês, não posso mentir, devo ser eu mesmo.

Mas aqui surgem alguns pepinos. Pois o que é ser "eu mesmo", ser autêntico, se por nascença e natureza não somos mais nada? E o que é se apresentar sinceramente aos outros senão levá-los a acreditar na imagem que inventamos para nós?

Nessa altura, é útil parar duas horas. O tempo de assistir ao "Talentoso Sr. Ripley", a nova adaptação do romance de Patricia Highsmith por Anthony Minghella (diretor de "O Paciente Inglês"). Ripley (o extraordinário Matt Damon) é o herói que prefere ser um falso alguém do que um verdadeiro ninguém. Nessa empreitada, ele não recua perante nada. Ora, sem entrar em detalhes, o filme é imperdível sobretudo pela experiência que proporciona: ele acua o espectador na inconfortável posição de torcer angustiadamente por Ripley, o impostor, embora ele nos indigne moralmente.

Acontece que Ripley é inevitavelmente dos nossos. Sua aventura lembra que, por mais que prezemos autenticidade e sinceridade, ser alguém em nosso mundo é sempre um jogo de aparências e por isso mesmo de imposturas. É o paradoxo moderno: devemos e queremos ser autênticos e sinceros e, ao mesmo tempo, nosso ser social se resume em fazer os outros acreditarem em nossa aparência.

Em suma, dispúnhamos de uma explicação sociológica pela qual a sinceridade é um valor indispensável ao funcionamento da sociedade moderna. Talvez uma outra interpretação seja mais bem-vinda, embora mais complexa: sinceridade e autenticidade se tornam valores cruciais justamente porque, na modernidade, a impostura é erigida em sistema social. É proibido mentir não porque nossa sociedade é construída na confiança, mas porque ela é organizada na mentira. E a maior mentira consiste em afirmar que queremos falar a verdade. Em outras palavras, somos mentirosos demais para não venerar a sinceridade.

De qualquer forma, para este ano novo, prometo parecer cada vez mais autêntico e sincero.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2000

Os jovens reduzem a cinzas duas imagens

Em Brasília, abril de 1997, o índio Galdino dos Santos foi queimado vivo por cinco jovens da classe média. Quem não se lembra? Durante várias semanas o país se indignou a fundo e mergulhou em sua alma para descobrir alguma razão para esse horror.

A tentação era pensar em um mal especificamente brasileiro. Afinal, toleramos formas de miséria extrema e de degradação que são barbáries próximas ao extermínio. Também sofremos (assim como se sofre de uma doença) do caráter atavicamente ávido e predatório das elites. Portanto não seria estranho que essas e (eventualmente) seus rebentos desconsiderassem totalmente a vida de quem está fora da única corrida que vale (do ponto de vista dominante).

No último dia 30 de dezembro, o editorial da Folha lembrava que em 1999 mais sete moradores de rua (este eufemismo para sem-teto) foram queimados, cinco deles por companheiros de infortúnio. O que não é, mas parece, menos trágico. O barco moderno é assim: não podendo suprimir os pobres, mas querendo melhorar a vida de todos, suprime-se a terceira classe. Quem não pode pagar a segunda vai para os tubarões. Se os clandestinos se matam entre eles, tanto melhor. Enfim, no Brasil, os assassinos de mendigos, em sua maioria, não foram adolescentes ditos de boa família. Pequena variante do mesmo drama nacional?

Não parece. No dia 23 de dezembro, o "The New York Times" publicou um artigo que me deixou estupefato. O texto começava descrevendo uma série de assassinatos selvagens: cinco batidos até a morte e dois decapitados em Denver. Outro batido, esfaqueado e decapitado em Richmond, Virgínia, a cabeça neste caso foi levada até uma ponte para pedestres e aí exposta. Em Seattle, mais dois. Outros em Dallas, em Chico, Califórnia, em Portland, Oregon, e por aí vai. Era uma lista de sem-tetos barbaramente assassinados nos Estados Unidos em 1999.

Nessa contagem feita a partir dos relatos na imprensa foram 29 mortos em um ano. Mais seis que mal sobreviveram aos ataques. Esses números assustadores subestimam o fenômeno, pois trata-se apenas dos ataques mencionados pela imprensa (a polícia não conta de maneira diferenciada os crimes contra moradores de rua). Além disso, sem-tetos e mendigos raramente registram queixas.

Os autores desses crimes são na maioria menores de 21 anos, o mais jovem tendo apenas 14.
O artigo do "Times" considera que não foi uma safra especial. Também é constante que a maioria dos suspeitos e acusados desse tipo de violência sejam adolescentes ou pré-adolescentes.

Apesar de ser um leitor cuidadoso da grande imprensa americana, eu não fazia idéia de que a história do índio Galdino fosse um crime globalizado. Ao contrário, como muitos outros, pensava que era a expressão de uma iniquidade brasileira.

Ora, em 1999, nos EUA houve 29 Galdinos. Também nenhum deles produziu o tipo de indignação que surgiu no Brasil em 97. Não houve nenhum "mea culpa" nacional. Nem está tendo agora depois do dito artigo. A morte dos sem-tetos parece lastimável, sem mais.
Deveríamos festejar, então, nossa capacidade de nos indignar, de compadecer e de nos questionar? Pode ser.

De qualquer forma, parece que, pelo mundo moderno afora, alguns adolescentes acham que matar mendigos e sem-tetos é programa. Esses assassinatos e ataques só podem ser a ponta de um vasto iceberg de ódio. Mas por que um adolescente passaria a odiar mendigos, excluídos e sem-tetos?

Certo: a sociedade sugere que esse jogo não constitui uma grande culpa. Em nosso mundo, eliminar um mendigo ou um sem-teto é como roubar algo que não vale nada, sei lá, um chiclete já mastigado.

Mesmo assim, os jovens que se envaidecem de matar um mendigo ou que acham graça em sacaneá-lo não devem agir só pelo prazer de confirmar um subentendido social.

Talvez os sinistros braseiros sejam os autos-de-fé da juventude: queimando (ou desprezando) mendigos e sem-tetos, os jovens reduzem a cinzas duas imagens.

Por um lado, eles exorcizam um futuro que poderia ser deles, tentam apagar uma ameaça de ostracismo que espreita suas vidas, caso eles viessem a fracassar.

Por outro lado, eles queimam (e aqui está o verdadeiro auto-de-fé) um destino que provavelmente eles desejam: uma hipóstase de sua possível revolta, de sua vontade de cair fora, pegar a estrada e presentear as exigências dos pais com um belo "beatnik" ou um "drop-out".

De fato, para um adolescente, o medo de não conseguir se conformar com ideais dominantes se confunde com a aspiração a ser diferente. Desprezar, sacanear ou mesmo matar mendigos, índios ou excluídos é uma maneira de lutar contra o pavor de fracassar ("apago o mendigo que eu mesmo, fracassando, poderia vir a ser") e no mesmo tempo de silenciar a aspiração a uma vida rebelde ("apago também aquele morador de rua que, contra todas expectativas, eu poderia gostar de ser").

Em suma, não deveríamos estranhar demasiado esses jovens sádicos e assassinos. Eles batem exatamente no que nossa cultura lhes ensina a detestar: o fracasso e sua própria rebeldia.

quinta-feira, 9 de dezembro de 1999

Invenções para policiar a vida



Na fila do "check-in" da American Airlines em Boston, vejo um funcionário rindo dos esforços de um passageiro brasileiro que coloca na balança suas malas enormes. Eu mesmo ironizo a mania sacoleira dos brasileiros, mas ele, o funcionário, não pode. Fede a xenofobia.

Chego, portanto, ao balcão um pouco irritado. Sou atendido mediocremente, como de costume. Manifesto minha insatisfação. Uma supervisora aparece do nada para anunciar que, se eu ficar nervoso, ela me diagnosticará com "air rage", a raiva do ar, e impedirá meu embarque.

A raiva do ar é uma das últimas maluquices da psicopatologia comportamental americana.
Eis o fenômeno: a United Airlines, por exemplo, registrou 404 incidentes de raiva do ar em 1996 (o dobro de 1995). Como qualquer criança sabe, quanto mais reconhecida for a entidade raiva do ar, tanto mais episódios serão registrados. Além disso, a incidência estatística é insignificante.

Os comportamentos de raiva vão desde a gesticulação de um agitado até a tentativa de abrir uma porta no meio do vôo.

Ora, alguém pode ficar nervoso em um avião e beber (ou não) por mil razões subjetivas: tem fobia de espaços fechados ou medo de avião, está indo a um enterro, está se afastando dos que ama ou então duvida que esteja sendo esperado. De jeito análogo, há pessoas que enfartam durante um vôo e as circunstâncias da viagem podem ser patógenas. Mas ninguém sonha em inventar uma nova entidade em cardiologia: o infarto aéreo.
Por que essa diferença entre enfartes e raiva? Simples: os infartos não podem ser reprimidos, os comportamentos podem. A invenção de entidades psicopatológicas a partir de puras descrições comportamentais está sempre a serviço de uma paixão de policiar a vida.

Numa sociedade democrática moderna, o policiamento que funciona melhor é terapêutico-higienista. Pois ele faz apelo a valores reconhecidos como objetivos: bem-estar e saúde. Também assegura a paz das consciências: somos livres, pois apenas regulamentamos doenças e reprimimos por generosidade samaritana. Começa assim: há coisas proibidas porque são nocivas. Acaba assim: há coisas que são ditas nocivas para serem proibidas.

A patologia inventada é sempre um puro comportamento. A singularidade concreta de cada vida e situação é negada. Pois, neste caso, a verdadeira patologia é o transtorno da ordem.
A ordem, aliás, consegue ficar fora de discussão: se as companhias aéreas não encurtassem o espaço para as pernas, se servissem uma comida decente, se o atendimento em terra fosse correto, os passageiros ficariam mais felizes e menos tensos.

No fim dos anos 60, quando a antipsiquiatria dinamitou as portas dos asilos e pediu que a população cuidasse de seus doentes mentais, temíamos que a repressão, expulsa pela porta, voltasse pela janela. Ou seja, que o mundo se transformasse em enfermaria e o povo todo, em enfermeiro. Pois bem, está acontecendo nos Estados Unidos.

A coisa também é negócio. Sugestões aos jovens psicólogos. Primeiro: conseguir um doutorado respeitado. Segundo: reparar um fenômeno que possa ser objeto de repressão e litígio. Por exemplo: brigas de família na cozinha. Nomear a síndrome (em inglês) "kitchen rage", a raiva da cozinha; publicar em uma revista acadêmica uma pesquisa com o número absoluto de acidentes anuais nas cozinhas americanas; abrir uma página interativa na Internet sobre o tema; e convidar pessoas a abrir grupos de discussão.

Em dois anos, vocês serão a autoridade incontestada em matéria de raiva da cozinha. Poderão viver dos honorários de expert (irão pelos tribunais desculpando criminosos da cozinha). Também venderão franchising para móveis de cozinha, panelas e alimentos (produtos aprovados para prevenir a raiva). Vocês serão ricos e não terão de se meter com os problemas subjetivos de pacientes - que é uma coisa complicada. Por outro lado, graças a vocês, o primeiro sujeito que quebra um prato será generosamente medicado ou internado, sem que ninguém tenha de se interrogar sobre por que o sujeito pirou.

Sugestão para a Prefeitura de São Paulo: do mesmo jeito, convencer os paulistanos que sua irritação no trânsito é efeito da raiva de trânsito. Nada a ver com questões de circulação, transporte etc.

Não sei se a supervisora da American Airlines era uma leitora de psicobabaquices populares ou se passou por um treinamento específico que a introduziu à besteira psicopatológica americana deste fim de século. Quase telefonei para o serviço ao cliente da American Airlines para saber. Mas fiquei com medo de ser diagnosticado como um dos primeiros casos de raiva telefônica.
Post-Scriptum: segunda-feira, de novo, um jovem de 13 anos saiu atirando, no Estado de Oklahoma. Até aqui, quase sem exceções, medidas repressivas e controladoras são apresentadas como formas de pensamento. Estou esperando o cretino que vai nomear uma síndrome da raiva escolar, graças à qual será possível reprimir ainda mais crianças e adolescentes, sem remorso. Depois estranham que alguém saia atirando...

quinta-feira, 14 de outubro de 1999

Serial killer: um ideal para os nossos tempos



Lembram "O Silêncio dos Inocentes", o filme de Jonathan Demme com Anthony Hopkins e Jodie Foster que ganhou cinco Oscar em 1992? Pois é, o psiquiatra canibal e a jovem agente do FBI estão de volta. Saiu em junho a sequência literária pelo mesmo Thomas Harris, sob o título "Hannibal"". Foi um sucesso. O filme não vai tardar.

Neste segundo volume, o dr. Hannibal Lecter se torna o verdadeiro herói da história. Já era o caso em "O Silêncio dos Inocentes", mas agora estamos mesmo autorizados: podemos enfim idealizar tranquilamente um serial killer canibal.

Cada cultura se diverte imaginando maneiras de desobedecer à lei e ao próprio pacto social. Afinal, viver em sociedade nos custa um esforço de repressão e autocontrole suficientes para que se torne engraçado sonhar com heróis que mostram um soberano desprezo para com as leis que nós respeitamos.

A coisa vale especialmente para a modernidade, que tem a tarefa impossível de conciliar as exigências da vida em sociedade com um ideal de liberdade individual. Por isso, a cultura pop moderna inevitavelmente idealiza criminosos.

Esses delinquentes de sonho (literário ou cinematográfico) são reveladores, pois eles encenam nossas esperanças de evasão.

Por exemplo, na cultura americana, há o pistoleiro do "far west" e o gângster. O pistoleiro é o herói que, no mundo selvagem da fronteira, inventa uma moral acima dos códigos - uma moral do indivíduo. Ele faz o que é justo, mesmo que não seja conforme a lei. Nisso, ele é um herói individualista clássico.

A figura do gângster nasce entre as duas guerras, tanto na realidade quanto na cultura popular. Naqueles anos difíceis de depressão econômica e invenção do imposto de renda, ele consegue ser um empreendedor de sucesso. Se torna assim, aliás, o ideal inconfessado de quem sonha com dinheiro.

Talvez o cangaceiro seja o equivalente brasileiro do caubói bandido, com a mística de uma moral individual acima da lei. Mas de fato, na cultural pop nacional, o jagunço ganha do cangaço. O jagunço é uma imagem saudosa que situa a honra na subserviência, numa sociedade fundada no favor e no clientelismo. O jagunço não é o equivalente do pistoleiro, mas do mafioso. Nele celebramos uma evasão da necessidade moderna de inventar as leis, descansando na nostálgica fidelidade a um código tradicional. Enfim, há espaço para uma história cultural do delinquente idealizado. E seria bem interessante, nesse quadro, seguir as peripécias do ideal do malandro brasileiro.

Mas hoje é dia de serial killer. Voltemos então a Hannibal Lecter. Objeto imediato de tratamentos jornalístico-literários, Ted Bundy, Jeffrey Dahmer ou outros maníacos do parque inspiram uma curiosidade que me parecia até agora psicopatológica. Assim como há leitores para a história do homem que tomava sua mulher por um chapéu, por que não haveria para alguém que sistematicamente mata, estupra ou frita e come seus semelhantes?

Ora, com a história do Dr. Lecter, o serial killer se torna pela primeira vez herói pop.
O serial killer pop (nisso, aliás, próximo ao de verdade) não conhece culpa nem remorso. Sua vontade de gozar nos termos exatos de sua fantasia está para ele acima de qualquer consideração ou incômodo moral. Ele não precisa de desculpas nem justificativas. Pois (aqui está a novidade de ""Hannibal") ele tem o bom direito de matar a vontade. De onde vem este bom direito?

Hannibal Lecter é o homem que sabe e consegue gozar plenamente a vida. Como James Bond, ele combina os vinhos certos com os pratos certos e sabe escolher carros e roupas. Mais próximo de um aristocrata do que de um emergente, não ignora o gozo estético: encanta uma platéia de eruditos com uma palestra sobre Dante e é conservador de uma preciosa coleção florentina.

Sua competência em gozar a vida estabelece para nós leitores seu direito de gozá-la livremente. Ao risco de sermos digeridos sem escrúpulos, aplaudimos, portanto, quando ele come banais mortais.

O serial killer tem tudo para ser um herói de nosso anseio de gozar sem compromissos ou perplexidades morais. Com o dr. Lecter, este ideal um pouco abjeto encontra legitimidade, pois quem sabe como gozar a vida ganha o direito de gozar dela sem estorvos.

O novo serial killer pop é uma curiosa mistura de privilégio medieval com a constatação de Veblen segundo a qual o poder moderno se mantém e confirma pelo esbanjo de riqueza e consumo. O serial killer pop, em suma, é nosso ideal monstruoso de uma classe dirigente cuja legitimidade está e se sustenta acima da lei, graças à admiração do povo.

Ou seja, quem sabe gastar merece receber nosso dízimo. Ou então, quem conhece o conforto de lençóis de linho engomados tem direito à primeira noite de nossas noivas. E quem sabe colocar a mesa, escolher o vinho e a música certa, tem mesmo direito de nos comer. Bom apetite!

quinta-feira, 7 de outubro de 1999

Oficial, gentleman e degredado

Augusto Pinochet está em Londres sob prisão domiciliar. Amanhã, a Justiça britânica decidirá se ele deve ou não ir para a Espanha e ser processado por ao menos alguns dos horrores cometidos durante seu governo.

Seja qual for a decisão, haverá apelos. Talvez ele fique na Inglaterra, num limbo jurídico, até morrer. É também possível que, por razões humanitárias (é o cúmulo) ou políticas, Pinochet volte para o Chile para se fazer esquecer. Pouco importa.

Mesmo que o general seja solto hoje, há de se saborear uma pequena vingança. Pois ele já encontrou uma punição pouco banal quando em outubro de 1998 foi preso em Londres.
Pinochet não imaginava que isso pudesse lhe acontecer, pois, indo para Londres, ele pensava estar passando em casa. Como então seus conterrâneos civilizados (no caso, os europeus) não reconheceriam nele um par, um amigo, um próximo? Não bastaria os ingleses verificarem o perfume delicado do seu "after shave", o brilho de seus sapatos (que podiam até ser argentinos, mas imitação Bond Street) e o corte de suas camisas? Apesar da dor nas costas não veriam eles seu porte ereto e naturalmente autoritário?

O "The New York Times" relatou que, quando o detetive A. Hewitt, da Scotland Yard, lhe entregou o mandato de prisão, Pinochet comentou: "Estou sendo humilhado. Sou um general com 64 anos de serviço. Sou um gentleman que sabe o que é honra".

Pinochet se olha no espelho e vê o quê? Um oficial e um gentleman: a prestância de um soldado fiel e corajoso ou então a tranquila elegância de um militar aposentado instalado na poltrona de couro de um clube inglês. Devia, aliás, ser essa a imagem de si que o acompanhava nessa viagem a Londres.

Mas, quando olho para Pinochet, eu vejo outras coisas: um peito coberto de condecorações vazias, o cabelo brilhantinado, os óculos escuros envolventes. É a imagem da truculência brega: poderia ser "el general dictador" se um dia Angeli, Laerte e Glauco precisassem de um desses para a tira dos "Los Três Amigos".

Essa imagem manchada por pingos de sangue, suor e gritos é o retrato de Dorian Gray do general, escondido nos porões da guerra suja. Pinochet, naturalmente, prefere se contemplar no espelho do alfaiate de Londres. E devia presumir que todos os ingleses o veriam como o via seu alfaiate.

Ora, parece que os ingleses viram o retrato no porão. Prenderam o general, como se fosse ele, pode ter pensado, um índio Mapuche qualquer. Em suma, eles não entenderam que o general pertencia a mesma raça superior que a deles.

Fecharam-lhe na cara a porta do único clube que lhe importa. Seus fãs poderão recebê-lo de volta com bandeiras e aplausos no aeroporto de Santiago. Tanto faz. Para o tempo que lhe sobra, ele deverá ficar no Chile e saberá que lá fora ele não é considerado diferente das caras de povo que seus homens pisaram.

Para se defender, em dezembro de 1998, Pinochet teve de declarar que ele não poderia reconhecer o direito de julgá-lo a nenhuma corte que não fosse chilena.

Que desastre: o general teve de renunciar assim à sua nacionalidade especial de elite colonial. Ele era inglês por gosto, e, por ideal, a Inglaterra de seus sonhos deve ser o império vitoriano, a potência colonial por excelência. Ele era espanhol por ter sido a Espanha a potência que originalmente colonizou o Chile. Agora tanto a Espanha quanto a Inglaterra parecem desconhecer seu filho fiel. O prendem e processam. O que pensaria Pizarro se fosse preso e processado por matar alguns incas rebeldes e mandar ouro para a Espanha e para a Inglaterra?
Na frente da Corte de Justiça, onde corre o processo de Pinochet, grupos de chilenos se manifestam a favor e contra o general. Os que pedem que ele seja solto nem são todos fascistas. Alguns podem estar defendendo uma espécie de orgulho nacional: Pinochet é nosso, nós o julgaremos.

Eles esquecem que as elites mais sinistras, na América do Sul, sempre se mantiveram estrangeiras, coloniais.

Isso não só por preferência bancária, mas também por estarem convencidas de que a injustificável diferença social e econômica teria fundamento em alguma diferença étnica originária.

A história de Pinochet, aliás, sugere um interessante sistema de punição para ditadores e outros malandros poderosos do terceiro mundo. Seria uma espécie de nova versão do degredo.
Banqueiros corruptos, donos de imobiliárias caloteiras, deputados e vereadores cassados, ex-presidentes impeachados deveriam ser degredados ao contrário. Ou seja, como essas elites não se consideram nacionais, ser excluído dos Estados Unidos e da Europa é para elas ser excluído de casa, do lugar ao qual elas acham que verdadeiramente pertencem.

O degredo para elas deveria ser a condenação a ficar para sempre no terceiro mundo, junto com os povos que essas elites continuaram tratando como trataram os índios no tempo da conquista.

quinta-feira, 9 de setembro de 1999

Os benefícios de acabar com castas sociais

Na semana retrasada, defendi aqui uma proposta para mudar (um pouco) o sistema injusto pelo qual o acesso às universidades públicas se torna privilégio de quem conseguiu pagar um secundário particular.

Desde então, tomei conhecimento de um projeto de lei senatorial que agora está à espera de aprovação da Câmara. O projeto reserva 50% das vagas das universidades públicas para alunos que cursaram integralmente escolas públicas.

No último domingo, o editorial da Folhase situava contra este projeto. De fato, mesmo com as melhores intenções, o projeto senatorial prepara uma pequena catástrofe, pois ele institui um sistema de cotas (50% de vagas). A experiência americana neste sentido poderia nos ser útil, pois ela está na época do balanço conclusivo.

Sua primeira lição é que a instituição de um sistema de cotas se revelou insuportável, contrária a sentimentos básicos de justiça em uma sociedade moderna. Não é possível compensar injustiças e abusos se isso parece se tornar fonte de novas discriminações e injustiças.

A ação afirmativa nos EUA queria estabelecer, no trabalho e nas escolas superiores, porcentagens de presença negra comparáveis com a porcentagem de negros na população americana -o que é mais que legítimo. Mas a idéia de que um avanço social não fosse definido pelo mérito tornou a medida gradativamente intolerável.

No caso do projeto senatorial brasileiro, a coisa é pior. A injustiça não corta o país entre riquíssimos e miseráveis, sem zonas de sombra. Milhares de famílias decidem, a cada ano, se pagam o seguro-saúde ou as mensalidades da escola particular para as crianças.
A escolha de uma escola particular não é sinal de privilégio. Como não surgiria, então, a objeção de que a lei teria efeitos injustos, discriminando alunos de escolas particulares que, ao contrário, deveriam ser ajudados?

É possível promover ações afirmativas sem instaurar sistemas de cotas iníquos. Em vez de compensar as dificuldades sociais por privilégios (vagas reservadas), é melhor insistir sobre critérios para avaliar corretamente o mérito dos alunos.

Por exemplo, os que conseguissem se destacar como os melhores alunos do secundário público teriam direito a uma consideração especial pois, os resultados sendo equivalentes, é bem provável que seus méritos fossem superiores aos de alunos favorecidos socialmente. Minha proposta ia nessa direção.

De qualquer forma, os programas de ação afirmativa são paliativos e certamente não alteram a distribuição das cartas na sociedade brasileira.

Mas eles podem ter uma função social concreta e importante. São declarações de intenção pelas quais o Estado (e com ele a comunidade) explicitamente recusa e critica as formas mais dolorosas da diferença social. Ou seja, afirma-se: as iniquidades serão corrigidas. Afirmação essa que é essencial para que ninguém se identifique como excluído da comunidade.
Alguns leitores manifestaram preocupação com a idéia de que a proposta permitiria falcatruas. Jovens de classes abastadas se matriculariam no secundário público e conseguiriam assim uma espécie de vestibular para pobres - fácil para quem teria uma cultura de rico.

É por isso, aliás, que o projeto do Senado propõe que só se beneficie das vagas reservadas quem passe no ensino público sua escolaridade inteira.

Ora, as eventuais falcatruas (ou seja, a escolha do ensino público por famílias de classe média), longe de ser um problema, poderiam ser o começo de uma verdadeira solução.
Vejam só: em qualquer sociedade moderna, o pacto social mínimo é comprometido quando as classes se encontram divididas, como se fossem castas. O contrato democrático implica a idéia de que a mobilidade social seja, em princípio, possível. E, para que a sociedade acredite neste contrato, é preciso que as classes não sejam segregadas em mundos distintos, casas-grandes e senzalas. É preciso que, em alguma medida, elas coabitem.

Uma série de pesquisas americanas dos anos 70 e 80 mostrou, por exemplo, que um gueto precipita no caos (ou seja, apresenta aumento vertiginoso de gravidez de menores, interrupção de escolaridade etc.) desde que o número de habitantes de classe média se torna insignificante. Se nele continuam morando, por exemplo, 7% de classe média, o bairro segue dentro do contrato social, não se marginaliza.

A pobreza ou mesmo a miséria não são excludentes se aparecem circundadas por destinos melhores dentro do mesmo espaço social. Sem isso, seus habitantes se sentirão e tornarão excluídos - não mais obrigados pelo pacto comum.

Aposto que a mesma coisa deve acontecer com a escola. Um primário e secundário públicos frequentados só por indigentes não têm como produzir motivação. Se, mesmo que seja por malandragem, a classe média voltasse a frequentar o ensino público, os estudantes mais pobres seriam favorecidos por esta mudança. Pois voltariam a acreditar que ricos e pobres pertencem um pouco ao mesmo povo. Quem sabe se autorizassem, assim, a esperar e sonhar. Portanto, a agir.

sábado, 4 de julho de 1998

SEARLE

A linguagem como ação


Há quem diga que Searle é um homem de direita. Em 70 escreveu "The Campus War" ("A Guerra no Campus"), uma análise impiedosa do funcionamento do movimento estudantil, na qual, por exemplo, já suspeitava que o radicalismo estivesse se tornando um estilo de vida. Mais tarde, foi um dos primeiros a se opor à ação afirmativa e ao multiculturalismo triunfante. Mas, cuidado, o aparente conservador é um democrata intransigente.
Estudante em Wisconsin, Searle foi secretário do grupo Estudantes contra McCarthy e, voltando de Oxford para os EUA, fundou em Berkeley o Movimento da Liberdade de Palavra. No começo dos anos 60 -quando o poderoso Comitê das Atividades Antiamericanas apavorava a todos- esta postura foi notável, sobretudo para um jovem professor que ainda não era titular -e que, aliás, não tinha nenhuma simpatia socialista ou comunista.
Na França dos anos 70 -junto a "Como Fazer Coisas com Palavras", de Austin- o livro de Searle -"Atos de Palavra"- foi uma espécie de lufada de ar no clima estruturalista vigente. Searle propunha pensar a linguagem como comportamento e ação -a frase sendo o ato humano elementar. Sua descrição do que significa falar era mais convincente que o "Curso de Linguística Geral" de Saussure. E nos deixava com a suspeita de que uma parte ampla de nossas construções psicológicas fosse decorrente de invenções forçadas por um entendimento insuficiente da prática linguística.
Mas se delineou uma falsa alternativa entre acreditar -por exemplo, com Lacan- que somos efeitos, e não agentes da linguagem, ou então adotar uma visão do sujeito como intencionalidade consciente -e abandonar portanto os fundamentos da psicanálise. De fato, a concepção da intencionalidade em Searle está longe de ser inconciliável com uma concepção complexa da subjetividade. Algo disso aparece na entrevista.
A verdade é, para Searle, sempre decidida pela adequação de nossas descrições à realidade. A questão é mais delicada, obviamente, do que aparece na entrevista. Ela se complica quando se trata de descrições que não concernem à realidade exterior, por exemplo, proposições de juízos abstratos ou de qualidade. Mais delicada ainda é, a meu ver, a contradição entre o caráter convencional e cultural de nossas descrições e a idéia de uma realidade que, para ser medida da verdade, deveria ser independente delas. Mas admiro o fundo de bom senso na posição de Searle: uma espécie de aceitação do realismo espontâneo de nossa experiência cotidiana.
Com toda sua simpatia pela ciência, Searle nunca se tornou positivista. Sua ironia em relação às posições dos cientistas-filósofos como Edward Wilson é explícita. E é famosa sua crítica sobre a idéia de que os computadores possam reproduzir uma inteligência humana. Justamente no livro que sai agora no Brasil, Searle retoma e completa seu "argumento do quarto chinês". É a história do homem que recebe um texto em chinês e, com a ajuda de regras fixas de correspondência, reproduz o texto em uma outra língua. Ora, mesmo se esse texto conseguisse manter a significação do original, será que o homem estaria traduzindo?
Do mesmo modo, os computadores podem imitar o pensamento, mas não pensar, pois são máquinas sintáticas, sem semântica. A este argumento antigo, Searle acrescenta hoje a idéia de que o computador só pensa do ponto de vista de um observador, quando um homem pensa do seu próprio ponto de vista. Há, em Searle, um cuidado constante com o caráter original e irredutível da experiência humana da subjetividade (e não só da consciência).
Enfim, importa assinalar que Searle é um analista imprescindível das construções sociais. Sua explicação das formações simbólicas (sobretudo modernas, contratuais) em "A Construção da Realidade Social" é das melhores que conheço.


Entrevista

da Redação

Leia a seguir entrevista concedida pelo filósofo John Searle à Folha em seu escritório na Universidade da Califórnia, em Berkeley (EUA), onde leciona.

Folha - Como você resumiria sua trajetória desde "Speech Acts" (Atos de Fala)?
John Searle -
Hoje me parece que meus dez livros são partes de um único projeto que emerge só aos poucos. Eis o problema: como conciliar a concepção que temos de nós mesmos -como agentes conscientes e racionais- com um mundo do qual nos é dito que é feito de partículas sem espírito e sem significação? A questão de "Atos de Fala", meu primeiro livro, era uma variante deste problema maior. A pergunta, na época, era a seguinte: como é possível que eu produza estes barulhos com a boca e eles acabem sendo entidades significativas? Como se passa do som à significação? Respondendo a esta questão, eu tive que recorrer a uma série de aparatos mentalistas.
Estava assim contraindo uma dívida que algum dia teria que pagar. Precisava explicar o que é um desejo, uma promessa, um medo... Assim, depois de "Atos de Fala" escrevi um livro sobre a "Intencionalidade", em que tentei analisar estas noções. Isso me levou a toda uma série de debates sobre a natureza da mente. Depois, como a mente cria a sociedade, quis me perguntar de que modo pessoas que agem de concerto criam um mundo social objetivo. É a "Construction of Social Reality" (A Construção da Realidade Social).
Folha - O livro que sai agora no Brasil, "O Mistério da Consciência", vale como uma espécie de introdução ao debate em curso sobre a questão das relações entre cérebro e mente, e apresenta, naturalmente, sua posição. Você não quer abandonar o materialismo, mas também não quer reduzir a consciência, ou seja, a consciência não pode ser negada como experiência original, mas, por outro lado, não há nada mais do que o cérebro. Portanto a consciência deve ser uma caraterística que emerge da atividade cerebral.
Searle -
Parte do problema neste debate é a oposição tradicional entre materialismo e dualismo. O materialismo é pensado de forma a excluir a possibilidade de um fenômeno mental irredutível (como a consciência) e o dualismo (de corpo e espírito) é geralmente usado para negar o materialismo. Eu penso que ambos de uma certa forma são verdadeiros, não são inconsistentes, e gostaria sobretudo de me livrar do vocabulário tradicional.
O mundo é composto de partículas físicas organizadas em sistemas, alguns sistemas são orgânicos e, entre estes, alguns são sistemas nervosos. Por sua vez, alguns destes comportam processos neuronais que produzem, em um nível mais alto, estados de consciência. A consciência então é uma faculdade emergente de certos sistemas biológicos. Disse tudo isso sem usar o vocabulário tradicional de materialismo e dualismo. Quero evitar esse vocabulário e dizer: a consciência é produzida por processos cerebrais e é ela mesma um certo nível de organização do cérebro.
Folha - É um bom caminho, aliás, para mostrar que não há necessariamente contradição entre biopsiquiatria e psicoterapia pela palavra. Sei que esta mesa é feita de moléculas, mas minha experiência continua sendo a de uma mesa de quatro pernas. Do mesmo jeito, mesmo se a consciência é um efeito do cérebro, a gente nunca vai se vivenciar como um sistema neuronal. Quando decido ir ao cinema, não tenho a experiência de meus neurônios disparando o título do filme que quero ver.
Searle -
Exatamente, não há nada de inconsistente em dizer que a consciência está inteiramente no nível dos neurônios, mas é a experiência que forma o conteúdo da consciência. Nenhum paradoxo: quando dirijo meu carro, não penso na oxidação de hidrocarbonetos etc. Simplesmente boto o pé. Trata-se de diferentes níveis de descrição. A consciência não é uma experiência de neurônios disparando (ou seja qual for a descrição mais adequada -talvez precise, no futuro, descer a um nível subneuronal). Ao mesmo tempo, em algum nível, o cérebro deve fornecer a explicação, porque o cérebro causa a consciência.
Folha - Agora gostaria de voltar ao começo de sua produção, "Atos de Fala". Por causa deste livro, eu sempre identifiquei você com a dita Virada Linguística (Linguistic Turn, movimento sobretudo anglo-saxão que situou a linguagem no centro da investigação filosófica). Com razão?
Searle -
Sim, absolutamente. Sou um filósofo da linguagem.
Folha - Mas, por alguma razão, no que concerne à concepção da verdade, você se tornou um representante do realismo contra a Virada Linguística. E defende a idéia de que a verdade depende da adequação à realidade, não é um critério intrínseco à linguagem.
Searle -
Sempre pensei que importava examinar a linguagem para descobrir mais coisas sobre a realidade que a linguagem representa. Uma maneira de chegar, por exemplo, à realidade da intencionalidade humana ou do comportamento humano é examinar a estrutura da linguagem que usamos para descrever as ações: voluntárias ou involuntárias, forçadas ou não etc. Mais importante ainda, a linguagem enquanto tal é um certo tipo de realidade. Em "Atos de Palavra" o projeto era examinar como a linguagem se relaciona com o mundo, e a intuição básica de qualquer teoria dos atos de palavra é que a unidade essencial na comunicação humana é o ato de palavra.
A linguagem é assim concebida como uma forma de comportamento humano, um comportamento intencional. Se a Virada Linguística significa examinar só a linguagem por si só e nada mais, não faço parte dela. Eu nunca pensei que a filosofia devesse se interessar inteiramente pela linguagem enquanto tal. Mas pensava, isso sim, que a linguagem, além de ser um campo de investigação autônomo, era um instrumento maravilhoso para analisar problemas filosóficos tradicionais.


Para Searle o pós-modernismo é um desastre da filosofia, uma verdadeira favela intelectual


Folha - Serei mais específico. No último livro de Richard Rorty, "Verdade e Progresso" ("Truth and Progress", Cambridge University Press), há um capítulo que discute um artigo seu de 92, em que, em nome do realismo, você criticava Rorty, Kuhn e Derrida. Para ser mais direto: não acredito que Derrida caiba neste grupo, mas é verdade que, por alguma razão, Rorty acredita que Derrida jogue no seu campo. De qualquer forma, o debate é entre concepção pragmatista e concepção realista da verdade. Para você o realismo não é pouca coisa; a segunda parte de "A Construção Social da Realidade", por exemplo, é consagrada ao realismo.
Você defende contra todos a idéia de que a verdade seja, possa e deva ser medida pela adequação à realidade. É surpreendente, pois você certamente seria o primeiro a dizer que a linguagem é a instituição fundamental, sem a qual nenhuma outra instituição seria possível. Como entender a noção de que qualquer coisa que a gente diga possa ser adequada à realidade enquanto tal? Se estamos sempre lidando com descrições, e as descrições, sendo linguísticas, são convencionais, como apreendemos a realidade em si?
Searle -
A resposta é muito simples. Algumas descrições são verdadeiras porque correspondem aos fatos. Digo: há uma árvore lá fora, e há uma árvore lá fora.
Folha - Há uma árvore porque você pode bater nela, cortá-la...
Searle -
Não, há uma árvore porque há uma árvore. Como é que eu acabo sabendo que há uma árvore é uma outra questão. Não devemos confundir a epistemologia de como descobrimos que há uma árvore com a ontologia, aquilo que existe. As descrições do mundo são articuladas por meio de frases em um vocabulário convencional, mas os fatos que correspondem a estas descrições não são convencionais.
Há água salgada no oceano Atlântico, ela estava lá anos antes que qualquer ser humano declarasse que havia água salgada no oceano Atlântico. Tínhamos que inventar um vocabulário para dizê-lo, mas o fato mesmo não depende de nosso vocabulário. O vocabulário é convencional, mas, uma vez que você tenha um vocabulário convencional, que haja ou não um fato no mundo que corresponda à sua declaração não é convencional.
Folha - Estamos acostumados a dizer que a realidade é composta de partículas. Isto é verdadeiro porque este é o tipo de descrição do mundo que é científica para nós. Duzentos anos atrás, teríamos falado de uma maneira completamente diferente. Por exemplo, em lugar de vermos a verdade em partículas mínimas, poderíamos pensar que ela está na ordem holística do universo. Qual é o fato que está por trás desta mudança? Naturalmente, há algum fato, não estamos discutindo que haja realidade.
Searle -
O ponto é que, avançando na ciência, mudamos nossa descrição, mas isso não coloca em causa a existência de uma realidade independente.
Folha - Concordo até aqui.
Searle -
Que a gente modifique, melhore nossas descrições, isto só faz sentido porque tentamos nos aproximar da verdade. E a verdade é uma questão de como nossas descrições correspondem a um fato.
Pergunta - Aqui já concordo menos. Há uma teleologia em sua posição, a idéia de um progresso de nossas descrições.
Searle -
Mas é assim. Sabemos muito mais do que nossos avós. Havia um tempo em que ninguém sabia das doenças produzidas por bactérias, e agora sabemos. E, por consequência, somos decididamente mais capazes de curar doenças do que no passado.
Folha - Justamente, este é um argumento pragmático. Aí concordaríamos.
Searle -
Ok, mas a utilidade pragmática deriva da correspondência aos fatos. Identificamos a bactéria da TB e por isso fomos capazes de agir utilmente. A utilidade depende da correspondência (e não vice-versa). É porque temos uma representação adequada de uma coisa que podemos agir do modo certo.
Folha - O pragmatismo diria apenas o inverso.
Searle -
Pior. Richard (Rorty) não quer falar da verdade. Segundo ele, não podemos dizer que a ciência nos permite fazer melhores predições porque o que ela diz é verdadeiro. Tampouco se pode dizer que é verdadeira porque permite melhores predições. Deveríamos simplesmente dizer que ela nos permite fazer melhores predições -ponto. O que "melhores" significa aqui, a não ser "correspondente aos fatos", não tenho a menor idéia.
Folha - Acho que, se Rorty não quer falar sobre a verdade, é porque receia que a verdade tenha dono. A idéia de deter a descrição verdadeira do mundo às vezes inspira pretensões delirantes. Veja o caso de Edward Wilson, o biólogo, que acredita ser possível deduzir até normas éticas a partir da descrição científica da realidade.
Searle -
Eu contestei Ed Wilson. Ele disse, por exemplo: estabelecemos em sociobiologia que o incesto é um mal. Eu mostrei que, mesmo em seus próprios termos, ele não estabeleceu nada disso. No melhor dos casos ele estabeleceu que o incesto que leva à gravidez é um mal, mas o pai que estupra sua filha usando métodos contraceptivos não vai de nenhuma maneira contra o que a sociobiologia pode estabelecer. A sociobiologia não mostra as coisas que Ed Wilson pretende.
Folha - O sonho dele (e de outros) é chegar a algum tipo de regulador ético que não seja convencional ou institucional.
Searle -
Ele está errado.
Folha - Mas não deixa de ser uma tendência forte. Entende-se por que: seria uma maneira de substituir Deus. Se pudéssemos deduzir princípios morais da ciência ou da biologia, seria um alívio.
Searle -
Mas em filosofia não estamos no negócio de oferecer conforto e alívio para ninguém.
Folha - Justamente, no último capítulo de "Atos de Fala", você abordava uma questão filosófica clássica: como deduzir o "dever" do "ser" (o "ought" do "is"). Sua posição era: é possível, mas há que se ter ao menos uma regra convencional, que deve ser acrescentada aos fatos; ou seja, só é possível na linguagem. Uma posição oposta à de Ed Wilson.
Searle -
Vejamos esta posição. Mostrei que a sociedade só funciona se as pessoas podem criar razões para agir independentemente de seu desejo. A instituição da promessa é um bom exemplo. Ao prometer que encontraria você aqui em meu escritório, criei uma razão de agir que permanece autônoma do meu desejo. Engajo-me em algo que eu poderia não estar a fim de fazer.
Agora, a obrigação de manter uma promessa não deriva da instituição da promessa. A maior parte dos comentadores deste capítulo pensou que eu estava dizendo que as regras constitutivas da linguagem (por exemplo, o engajamento produzido pelo ato de prometer) engendram as obrigações. Não é isso: o agente individual, prometendo, cria intencionalmente uma situação em que vai ter que fazer alguma coisa independentemente do desejo. A obrigação (moral) de respeitar a promessa é outra coisa e não depende da instituição da linguagem.
Naquele escrito, o que me importava era que temos instituições linguísticas que permitem aos indivíduos em sociedade conectar sua vontade. Uma sociedade não poderia funcionar sem isso. Porque, sem isso, a única maneira de predizer o comportamento das pessoas seria tentar adivinhar o que desejam, e isso não levaria a lugar nenhum. Deve haver um sistema para que eles possam agir segundo uma razão que não depende do que eles estão a fim em um dado momento.
Folha - Então não é possível deduzir normas éticas da instituição da linguagem.
Searle -
Não há nada na linguagem enquanto tal que garanta uma teoria em lugar de outra.
Folha - Talvez as questões propriamente éticas, em sua filosofia, dependam mais do que você chama de background -pano de fundo. Para explicitar este conceito, poderia situá-lo entre o que um antropólogo chamaria cultura e o que, na hermenêutica de Gadamer, seria o horizonte comum entre locutores? São conceitos que se sobrepõem?
Searle -
De qualquer forma, a ética é um pântano. Não é tão ruim quanto o pós-modernismo, que é um desastre, mas é uma área fraca da filosofia. Quanto ao background, minha concepção é a seguinte: o uso da linguagem depende de pressuposições implícitas, ou seja, depende de capacidades gerais, disposições, maneiras de comportamento, práticas culturais. A significação literal da proposição articulada pode ser interpretada só por meio deste background. O background não é exatamente a mesma coisa que os antropólogos chamam de cultura, porque muitos elementos do background são transculturais.
Se você lê em um livro que "comiam carne", sabe que comiam carne pela boca, não pelos ouvidos, e esta não é uma questão de cultura, mas de pressupostos comuns de background -neste caso, biológico. Mas atenção: não devemos pensar o background como um sistema de crenças. É algo que se situa antes da crença, é um conjunto de posições diante do mundo. São disposições, capacidades que as pessoas têm no trato com o mundo.
Folha - De maneira recorrente em sua obra, aliás, você evoca o inconsciente freudiano e contesta a idéia de uma intencionalidade inconsciente. Ora, muitos psicanalistas contemporâneos (eu me incluo entre eles) na verdade situariam o inconsciente, para usar seus termos, no background. Ou seja, como representações, pressupostos ou implicações que são evocados, ativados pelos atos de palavra, mas que não estão presentes na consciência quando o ato é produzido.
Searle -
Isto é interessante. A maneira como sempre interpretei Freud me mostrou que sua concepção do inconsciente era intencionalista, ou seja, concernia a crenças e desejos que as pessoas têm inconscientemente. Por isso, sempre pensei que meu ponto de vista era oposto ao de Freud.
Folha - Minha opinião é a de que a aparência de uma intencionalidade inconsciente é produzida a posteriori, pela interpretação. De fato, a intencionalidade é sempre consciente: o que acontece é que um background composto por memórias privadas, histórias de família, convenções sociais etc. intervém, atrapalhando o exercício intencional.
Searle -
Mas isto não é o que diz o texto de 1915 sobre o inconsciente.
Folha - Concordo, mas Freud produziu no mínimo duas metapsicologias. De qualquer forma, me parece que é do lado daquilo que você chama de background que se explica a relevância de qualquer terapia pela palavra.
Searle -
Certo. Parece-me, aliás, que muitas vezes o comportamento patológico das pessoas tem a ver não com alguma crença ou desejo inconscientes, mas com uma capacidade de background que é contraprodutiva, patológica.


A idéia de nação está acabando; o problema é que até agora não temos estruturas institucionais para substituir a nação-Estado


Folha - Você dizia que a linguagem como tal não carrega todas as complexidades de uma cultura (por exemplo, não implica as obrigações éticas), mas uma linguagem não deixa de representar uma cultura, pois as palavras valem como convenções sociais que são às vezes específicas da cultura que fala esta língua. Quais as consequências políticas disso, por exemplo, no que diz respeito ao debate entre integração ou preservação das diferenças culturais?
Searle -
Duvido que a gente consiga obter uma derivação estrita de minha filosofia para questões de política. No entanto há implicações gerais, embora não de natureza estritamente lógica. Se estou com razão a propósito da construção da realidade social, que é uma questão de aceitação ou reconhecimento (coletivos) de uma sequência de funções simbólicas, então parece que uma sociedade vai funcionar melhor se não for centrífuga. Ou seja, em uma nação como os EUA, se o foco primário de lealdade de grupo estiver relacionado com a nação, e não com grupos subsidiários.
Estamos hoje em um momento em que tem sucesso uma coisa chamada multiculturalismo, isto é, a idéia de que é necessário haver lealdade entre grupos étnicos específicos, mais do que com a mais larga unidade nacional. Eu acho que isso é uma péssima notícia. Duvido que -especialmente em tempos de crise, como em caso de guerra- um país como os Estados Unidos possa funcionar com focos de lealdade primária diferentes daqueles do Estado nacional.
Naturalmente, há uma outra questão: talvez a idéia de nação esteja acabando. Durante quase 700 anos as nações eram um foco primário da identificação de grupo. Talvez, com a unidade européia e com a concepção multiculturalista nos EUA, a nação-Estado esteja no fim. O problema é que até agora não temos estruturas institucionais para substituir a nação-Estado, nem organizações supranacionais (certamente, não as Nações Unidas), nem subsidiárias. Outra implicação de minha filosofia para a política.
Na "Construção da Realidade Social", mostrei que há realidades que são construídas socialmente, como dinheiro, governo, matrimônio etc.
Nos EUA há um caso muito interessante que não discuto no livro. A raça é largamente (embora não inteiramente) uma construção social. Não é uma questão de biologia. É evidente que, por não sabermos lidar com diferenças étnicas e raciais, fazemos de conta que são entidades biológicas, naturais, conquanto sejam construções sociais.
Folha - Qual é a sua visão da comunidade intelectual americana hoje?
Searle -
Houve um desastre: o advento de uma facção de filosofia anti-racionalista conhecida como pós-modernismo: é uma espécie de favela intelectual. Se tivesse cem anos pela frente, entraria para fazer a limpeza.
Folha - Quais são os nomes?
Searle -
Ok. Derrida, De Man. Não incluiria Foucault. Foucault era sobretudo um intelectual europeu tradicional que obedecia a um certo estilo francês. Mas incluiria o elemento radical do movimento feminista, as pessoas de filosofia da ciência que dizem que a ciência cria os fatos...
Pergunta - Kuhn faria parte disso?
Searle -
Ele deu conforto e tranquilidade para essas pessoas, mas não faz parte disso.
Folha - Diria a mesma coisa sobre Rorty?
Searle -
Um pouco mais. Rorty é um aliado deles, deu mais do que conforto. Acho que Richard não se sente muito bem na companhia de lésbicas radicais e desconstrucionistas, mas ele deve pensar que é uma maneira de atacar as coisas que ele quer atacar. Para ele, é uma aliança interessante. Diria que ele é um pós-moderno ambíguo, mas é definitivamente um aliado. Os pós-modernos são essencialmente uma coleção de anti-racionalistas e antiiluministas. Invadiram os departamentos de inglês, nos quais se passou a ler Derrida, Geoffrey Hartman, De Man... e nada de literatura.
Folha - Kuhn e Rorty certamente não compartilham sua posição realista em matéria de verdade. Mas não me parece que seja este o desastre. O desastre é que seus aliados desconstrucionistas se aproveitam disso para produzir uma descrição do mundo em termos exclusivamente ideológicos.
Searle -
Certo, é o que acontece. Quando me criticam, não criticam meus pensamentos, dizem: "Searle usa metáforas masculinas". "Searle encontra uma aporia burguesa que o leva ao falo-fono-logo-centrismo...". Não se interessam pelo conhecimento, em como conseguimos dar conta do mundo e em como ele funciona. E, para mim, este é o sentido de uma vida intelectual. (CONTARDO CALLIGARIS)

OBRAS DE SEARLE

O Mistério da Consciência
- Tradução de André Yuji Pinheiro Uema e Vladimir Safatle. Ed. Paz e Terra. Preço não definido.

Expressão e Significado -
Tradução de Ana Cecília G.A. de Camargo e Ana Luiza Marcondes Garcia. Ed. Martins Fontes. 320 págs. R$ 22,50.

Intencionalidade -
Tradução de Julio Fisher e Tomas Rosa Bueno. Ed. Martins Fontes. 408 págs. R$ 27,50.
A Redescoberta da Mente -
Tradução de Eduardo Pereira e Ferreira. Ed. Martins Fontes. 388 págs. R$ 27,50.

Em inglês:
The Construction of Social Reality - Free Press. US$ 17,50.

Speech Acts - Cambridge University Press. US$ 20,95


domingo, 14 de junho de 1998

A autoridade razoável



A justiça é sempre de natureza política e depende do quadro social em que age


CONTARDO CALLIGARIS
especial para a Folha

Frequentemente nossa insatisfação com a administração da justiça se expressa da seguinte forma: a Justiça não consegue ser cega. Gostaríamos que nossos tribunais julgassem sem nenhuma consideração política.


Achamos injusto que a Justiça favoreça cidadãos de classes sociais privilegiadas. Achamos indigno que, por exemplo, no Brasil existam prisões diferenciadas para cidadãos com nível superior de estudos. Podemos achar injusto que a criminalidade de colarinho-branco seja menos severamente reprimida do que a violência desesperada da miséria. Reciprocamente, nos Estados Unidos de hoje, podemos achar injusto que o fato de se pertencer a uma minoria étnica ou social desfavorecida possa constituir uma espécie de desculpa. Assim como achávamos injusto que, no passado, pertencer à mesma minoria fosse, ao contrário, uma espécie de agravante.


Quando pensamos nos fundamentos de uma democracia moderna, imediatamente evocamos a separação dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário como uma condição não negociável. E esta exigência parece incluir a idéia de que a Justiça não deve nem pode ser expressão de vontades políticas.


Ora, Susan Estrich -advogada e professora de direito e ciência política na Universidade da Califórnia- acaba de publicar "Getting Away with Murder -How Politics is Destroying the Criminal Justice System" (Matando Impunemente -Como a Política Está Destruindo o Sistema de Justiça Criminal), Harvard University Press. O título é enganador: deixa supor que seja mais um livro preocupado com os efeitos maléficos da política na administração da Justiça. Um livro, em suma, que confirmaria tudo o que já pensamos.


Não é nada disso. Estrich constata que em uma sociedade ocidental moderna -salvo os que alimentam nostalgias para julgamentos divinos e santas inquisições- a fonte da autoridade da lei e de sua administração é a própria comunidade dos cidadãos. Ou seja, se em nossas sociedades é proibido matar, estuprar, roubar etc., isso não acontece porque essa foi a regra transmitida pelos antepassados ou por Deus. Acontece, ao contrário, por decisão política da comunidade. Idéias, valores, princípios morais e leis valem porque concordamos de alguma forma em sermos orientados e regidos por essas normas.


Esta primeira constatação, excessivamente banal, acarreta uma consequência: não faz sentido protestar contra a ingerência da política na administração da justiça, pois, em nossas sociedades, a justiça é de natureza política, já que a própria idéia do que seria justo ou não só vige graças ao acordo da comunidade política.


As imperfeições (ou pior) do sistema jurídico, portanto, não são devidas à iníqua invasão da política na esfera pretensamente purificada da lei. Não são contaminações da justiça por um corpo estranho. Ao contrário, lei e justiça são e só podem ser expressões políticas da vida social.
Um marxista não diria diferente, e acrescentaria que por isso mesmo o exercício da justiça é mais um teatro (falsamente neutro) onde se desdobra a luta entre classes. Mas uma liberal, como Estrich, acreditando nas virtudes da democracia, propõe, ao contrário, o silogismo seguinte: 1. Em uma sociedade moderna, a fonte de toda autoridade é a própria comunidade dos cidadãos; 2. O que é justo (e o que não é) depende da suposta vontade da comunidade; 3. Portanto, se a administração da justiça não funciona, isto não acontece por ela estar sendo "invadida" por considerações políticas, mas por algum fracasso da vida política da comunidade que deveria se expressar na sua capacidade de fazer justiça. Uma comunidade mais ou menos politicamente doente é incapaz de articular uma voz comum que sirva de fundamento à administração da justiça.


O problema da justiça no Brasil, por exemplo, não seria uma questão de separação insuficiente entre judiciário e legislativo ou executivo, mas uma expressão do fato de que a comunidade nacional está dividida, impedida de funcionar como comunidade. Se uma classe é privilegiada na administração da justiça, isto não manifesta sua usurpação do Judiciário, mas sim sua usurpação da comunidade.


As idéias de Estrich parecem particularmente evidentes em um sistema jurídico - como o americano - fundado na "Common Law", ou seja, onde distintamente o que tem valor de lei são em última instância as idéias compartilhadas (os "standards") da comunidade. Mas é fácil constatar que, mesmo os países de direito romano e napoleônico (como o Brasil), evoluem nesta direção por um caminho indireto, mas seguro. Pois acontece que o legislador é inevitavelmente chamado a atuar segundo os costumes comunitários.


Para medir os padrões comunitários em matéria de justiça, Estrich oferece um conceito interessante: "A pessoa razoável". Bem distinta do "ser racional", cujas ações corretas seriam decididas por princípios pretensamente deduzidos de alguma razão universal, a pessoa razoável é quem age de uma forma compatível com a comunidade e compreensível por ela. Uma comunidade (e portanto sua justiça instituída) decide o que é punível ou não, assim como o que pode ser considerado como uma circunstância atenuante ou agravante, a partir da idéia vigente da pessoa razoável.


Contrariamente ao ser racional, a pessoa razoável evolui no tempo. Por exemplo, 30 anos atrás, o homem razoável poderia aparentemente ser desculpado caso matasse sua mulher surpreendendo-a com um amante. A mulher razoável da mesma época não seria desculpada. Já hoje parece que, seja qual for seu sexo, a pessoa razoável é menos ciumenta. Mas o que mais importa é que, na evolução saudável da vida de uma democracia, a pessoa razoável deveria sobretudo se tornar cada vez mais representativa da comunidade em seu conjunto.


A pessoa razoável da Justiça americana, até os anos 60, era masculina e branca. Já hoje ela pode ser negra, hispânica, feminina. Portanto, a comunidade que achava razoável quem linchava um negro ou batia em uma mulher, pode hoje achar razoável a raiva do mesmo negro e desculpar Lorena Bobbitt, que cortou o pênis do marido. A pessoa razoável, em suma, vem a ser a unidade de medida da Justiça, se conseguir se tornar representativa do conjunto da comunidade.


Ora, as dificuldades da Justiça americana, seu vaivém às vezes cômico de decisões extremas e frequentemente compensatórias, derivam do caráter peculiar do projeto comunitário americano: compor e manter uma comunidade que reconheça e exalte todas as diferenças particulares. Os paradoxos deste projeto aparecem na administração da justiça, pois a "pessoa razoável" se torna um arlequim multicolor impossível de ser reconstituído, mesmo pela assembléia de 12 jurados. A Justiça aparece assim como o incerto teatro político de uma luta entre facções da comunidade.
No Brasil é outra história: faltam as condições básicas, materiais, de uma comunidade. As diferenças sociais fazem com que, para um adolescente filho de ministro, seja razoável atropelar, matar e omitir socorro, com a condição de que o morto seja um trabalhador passante -quando certamente não seria razoável que o dito trabalhador atropelasse e matasse um filho de ministro.
Segundo Estrich, o problema não é de má administração da justiça. Ao contrário, por nossa vida política e social, temos a justiça que merecemos.