quinta-feira, 15 de abril de 2004
Carta aberta a Silvio Santos
Caro Silvio Santos,
Confesso que não sou um espectador de "Todos contra Um". No passado, assisti ao "Show do Milhão" só duas ou três vezes. Nunca comprei um "carnê do Silvio".
Mas meus sogros, Heloísa e Valentim, gostam de você. E, como tenho um grande carinho por meus sogros, sou grato por todas as vezes que eles passaram bons momentos assistindo ao "show do Silvio".
No ano passado, quando surgiu o boato de que você estaria doente, uma senhora, minha conhecida, comentou: "Só o que faltava, não ter mais nem o Silvio". Em geral, minha turma é crítica e pensa que você distribui ilusões como a gente enfia balas nas mãos dos meninos nos faróis. Mas eu acho que há um grande mérito (seu mérito) em conseguir encarnar, para tantos brasileiros, um sentimento sem o qual é difícil viver: a esperança de que amanhã a gente tenha um pouco de sorte.
Por isso, permito-me a familiaridade desta carta.
Escrevo-lhe por uma história que você deve estar cansado de ouvir: o grupo que você lidera projeta um shopping center (ou um centro de convenções) na área do Bexiga em que surge o Teatro Oficina, dirigido por Zé Celso Martinez. Claro, ninguém contesta: o teatro é tombado, pois ele é um patrimônio insubstituível da cultura brasileira, tanto por sua arquitetura quanto pela companhia que ele abriga. Também imagino, embora eu não conheça o projeto em sua fase atual, que nenhum arquiteto se proporia a encapsular o Oficina num casulo de edifícios. Então, qual é o problema?
O problema, como você sabe, é o espaço ao redor do Oficina. É necessário um recuo suficiente para que a luz do dia e o sol atravessem livremente a parede de vidro que, com o teto retrátil, faz do Oficina esta raridade: uma sala de teatro aberta para o mundo. Além disso, no terreno ao lado e nos fundos do teatro, o projeto do Oficina prevê uma arena aberta e locais para atividades que vão além da produção de peças: um lugar de lazer e educação teatral para as crianças do Bexiga que freqüentam o Oficina, um centro de estudos etc.
Pouco importam os detalhes. Meu pedido é apenas este: que você se disponha a encontrar Zé Celso ou autorize seu arquiteto a encontrar Zé Celso. No diálogo, é óbvio que se manifestarão interesses contrastantes, mas poderia também surgir o desejo comum de construir algo que seja bom para o Bexiga, para São Paulo, para o Brasil e para o teatro.
Sobre o Oficina, você já deve saber tudo o que importa. Se não for o caso, outros poderão lhe dizer melhor do que eu. Mas nada vale a experiência. Aposto (sem consultar ninguém) que a companhia se disporia a recebê-lo para uma representação só para você, quem sabe um condensado das duas partes de "O Homem". Mas deixe que lhe conte uma história.
Eu fui uma criança bem-comportada, numa cidade ferida pela guerra, Milão, na Itália. Um pouco por medo de que encontrasse uma bomba não explodida nos escombros, um pouco por respeitabilidade burguesa, meus pais não queriam que brincasse na rua. Ia para a escola, estudava e brincava no meu quarto.
Era raro, mas acontecia duas ou três vezes por ano, que um circo visitasse a cidade. Quando era um circo grande, passava um Fiat 600 gritando pelo alto-falante: "De volta da mirabolante turnê que o levou aos quatro cantos do Universo, ainda fremente pelos aplausos das multidões de Londres, Paris e Istambul, está em Milão o grande circo Togni; crianças, tragam seus pais; elefantes, leões, tigres da Bessarábia [nunca soube se há mesmo tigres na Bessarábia], os trapezistas de Moscou que arriscam sua vida sem rede, o homem-bala de Praga, os cavalos da grande escola de Viena".
Eu, na verdade, preferia os circos pobres, que se instalavam perto de casa. Nesse caso, o alto-falante vinha na mão do palhaço que abria um pequeno desfile de saltimbancos, malabaristas, anões, mulher barbada, homem-serpente e um ou dois bichos, um macaco, um cavalo.
Insistia tanto que meus pais achavam graça e deixavam que eu fosse a mais de uma representação do mesmo circo. Nunca souberam que o espetáculo, para mim, era duplo. Certo, admirava os corpos magicamente bonitos em suas roupas furadas de paetê; comovia-me com o drama do pateta, vítima do clown branco; gritava quando a trapezista voava no céu. Mas, no intervalo e depois do espetáculo, gostava de passear, meio às escondidas, entre os reboques que serviam de casa ao povo do circo. Tinha cheiro de sopa caseira, de roupa lavada e de malhas suadas, risos, gritos de brigas, portas entreabertas que mostravam espelhos, maquiagens e panelas. As duas coisas juntas, o espetáculo e os bastidores, eram, para mim, uma única experiência: foi ali que aprendi para sempre, acho, que é possível sonhar sem deixar de gostar da vida concreta.
Ora, quando vou para o Oficina, sinto a mesma alegria de quando era dia de circo na cidade. Não freqüento os bastidores do teatro. Não é preciso, porque o Oficina é construído para que não haja muita diferença entre cena, platéia e bastidores e porque a magia de seus espetáculos é esta: transformar em teatro a fúria, a euforia, a miséria e a paixão da vida concreta.
Em suma, caro Silvio Santos, receba este escrito como se fosse a carta de uma criança que lhe pede ajuda para que nosso melhor circo continue e cresça.
Obrigado e um abraço,
Contardo
sexta-feira, 9 de abril de 2004
Benjamim Zambraia e Tom Ripley
Dois filmes excelentes, ambos em cartaz neste momento, instigam a reflexão sobre a possibilidade de uma moral moderna.
Eis o problema: por prezarmos nossa autonomia acima de tudo, não gostamos que um deus seja nosso pastor e não aceitamos que a tradição nos diga o que é certo ou errado. Nessas condições, como orientar nossas vidas? Claro, julgando e pensando com nossas cabeças. Mas onde está, em nossas cabeças, uma inspiração que seja verdadeiramente a nossa e não apenas um resto de convenções estabelecidas, às quais não queremos mais obedecer?
"O Retorno do Talentoso Ripley", de Liliana Cavani, nos apresenta um Ripley maduro, que vive no Vêneto, numa esplêndida vila renascentista, e divide seu tempo entre sofisticações gastronômicas, música mais que clássica e transas eruditas, tocando o cravo a quatro mãos. Ele é um esteta, ou seja, um sujeito para quem os valores estéticos são a referência fundamental.
O esteta não se entrega desordenadamente às exigências da carne. Ao contrário, ele educa seus sentidos de maneira a inventar uma refinada disciplina de prazeres, que constitui sua regra. Confrontado com a tarefa de encontrar nele mesmo as normas de sua vida, o esteta responde adequadamente e escolhe o critério talvez mais subjetivo: o gosto.
Comparados com o Ripley de Liliana Cavani, os libertinos do marquês de Sade são os adolescentes da moralidade moderna, constantemente preocupados em desafiar a autoridade (divina ou política) para demonstrar sua autonomia moral. Ripley não se perde em blasfêmias, não se confronta com algum ente supremo. Ele apenas cuida da estética de seu prazer.
No intento de acalmar um amigo que parece atormentado pela dura tarefa de assassinar, Ripley comenta que não há por que se preocupar, já que "nobody is watching", ninguém está olhando. A frase não se refere só à ausência de testemunhas ou de policiais na hora do crime. É uma observação metafísica: ninguém contempla nossas ações e nos julga do andar de cima ou do céu. A origem das regras que regem nossas condutas está em nós, não nas sobrancelhas franzidas de um deus ou de um senhor.
Se ninguém está olhando, podemos cair numa gandaia desregrada, feito trapalhões da liberdade. Ou então, com Ripley, adotar a seguinte restrição: tudo é permitido, à condição de obrar com elegância. Matar alguém, como ele mesmo explica, significa que amanhã haverá um carro a menos no horário do pico, o que certamente melhorará a estética de nossas ruas.
Ora, Ripley é um extraterrestre: nós não somos assim.
Nós nos parecemos muito mais com o herói de "Benjamim", o filme de Monique Gardenberg, inspirado no romance de Chico Buarque. Benjamim Zambraia (atuação memorável de Paulo José) pode nos servir de anti-Ripley: não lhe falta o desejo de tocar a vida com bom gosto, mas sua existência é atormentada (e, portanto, organizada) por uma culpa.
Pouco importa qual foi o ato nefasto que está na origem da culpa de Benjamim; isso o espectador descobrirá. Mas, sem revelá-lo, podemos perguntar por que o ato em questão produz, para Benjamim, a culpa que organiza sua vida.
Benjamim é tão moderno quanto Ripley: ele não se angustia por ter transgredido ditados divinos ou tradicionais. O gesto que mancha seu passado produz culpa porque suscita o desprezo de seus amigos.
Ou seja, Benjamim vive no mesmo mundo sem deus e sem tradições no qual se movimenta Ripley. Mas, mais próximo da gente, ele não consegue erigir seu senso estético em regra moral absoluta; ele não tem a têmpera do esteta que, soberanamente, dispensa o aplauso de seus semelhantes. Benjamim precisa dos outros: portanto substitui o olhar divino pelo olhar do próximo. Ele mede a indignidade de seu gesto quando esse lhe vale um cuspe na cara.
O fim da história de Benjamim Zambraia contém uma outra lição. A culpa é certamente uma fonte possível da moral, mas é uma fonte perniciosa pela razão seguinte: os atos inspirados pela culpa visam sobretudo à punição de quem se acha culpado. Ou seja, se agirmos por culpa, nossa escolha "moralmente certa" não consistirá em fazer algum bem, mas em dar um jeito para que soframos, enfim, as conseqüências de nossos erros passados (essa constatação tem algumas implicações políticas e sociais, mas isso fica para outra vez).
Até aqui, apareceram três figuras da duvidosa e difícil moralidade moderna: o desbunde sem regras (no filme de Liliana Cavani, há um cúmplice passado de Ripley que é um bom exemplo disso; logicamente, ele acaba mal), o dandismo gélido do esteta (Ripley) e a expiação de uma culpa que foi decretada pela desaprovação dos outros (Benjamim).
Para completar a reflexão com uma nota de esperança, estréia na semana que vem "Diários de Motocicleta", de Walter Salles, inspirado no diário que o jovem Ernesto Guevara escreveu durante sua viagem pela América Latina, em 1952.
Desde já, vale a pena antecipar que o filme nos encoraja a sonhar com uma quarta via. Para quem não aceita que as regras morais desçam do céu ou sejam ditadas pela tradição, talvez não reste apenas a escolha entre desbunde, estetismo e culpa. Talvez exista também a possibilidade de que uma regra moral surja a partir de uma experiência de vida. Justamente, o filme de Walter Salles nos conta como isso aconteceu com o futuro Che.
Eis o problema: por prezarmos nossa autonomia acima de tudo, não gostamos que um deus seja nosso pastor e não aceitamos que a tradição nos diga o que é certo ou errado. Nessas condições, como orientar nossas vidas? Claro, julgando e pensando com nossas cabeças. Mas onde está, em nossas cabeças, uma inspiração que seja verdadeiramente a nossa e não apenas um resto de convenções estabelecidas, às quais não queremos mais obedecer?
"O Retorno do Talentoso Ripley", de Liliana Cavani, nos apresenta um Ripley maduro, que vive no Vêneto, numa esplêndida vila renascentista, e divide seu tempo entre sofisticações gastronômicas, música mais que clássica e transas eruditas, tocando o cravo a quatro mãos. Ele é um esteta, ou seja, um sujeito para quem os valores estéticos são a referência fundamental.
O esteta não se entrega desordenadamente às exigências da carne. Ao contrário, ele educa seus sentidos de maneira a inventar uma refinada disciplina de prazeres, que constitui sua regra. Confrontado com a tarefa de encontrar nele mesmo as normas de sua vida, o esteta responde adequadamente e escolhe o critério talvez mais subjetivo: o gosto.
Comparados com o Ripley de Liliana Cavani, os libertinos do marquês de Sade são os adolescentes da moralidade moderna, constantemente preocupados em desafiar a autoridade (divina ou política) para demonstrar sua autonomia moral. Ripley não se perde em blasfêmias, não se confronta com algum ente supremo. Ele apenas cuida da estética de seu prazer.
No intento de acalmar um amigo que parece atormentado pela dura tarefa de assassinar, Ripley comenta que não há por que se preocupar, já que "nobody is watching", ninguém está olhando. A frase não se refere só à ausência de testemunhas ou de policiais na hora do crime. É uma observação metafísica: ninguém contempla nossas ações e nos julga do andar de cima ou do céu. A origem das regras que regem nossas condutas está em nós, não nas sobrancelhas franzidas de um deus ou de um senhor.
Se ninguém está olhando, podemos cair numa gandaia desregrada, feito trapalhões da liberdade. Ou então, com Ripley, adotar a seguinte restrição: tudo é permitido, à condição de obrar com elegância. Matar alguém, como ele mesmo explica, significa que amanhã haverá um carro a menos no horário do pico, o que certamente melhorará a estética de nossas ruas.
Ora, Ripley é um extraterrestre: nós não somos assim.
Nós nos parecemos muito mais com o herói de "Benjamim", o filme de Monique Gardenberg, inspirado no romance de Chico Buarque. Benjamim Zambraia (atuação memorável de Paulo José) pode nos servir de anti-Ripley: não lhe falta o desejo de tocar a vida com bom gosto, mas sua existência é atormentada (e, portanto, organizada) por uma culpa.
Pouco importa qual foi o ato nefasto que está na origem da culpa de Benjamim; isso o espectador descobrirá. Mas, sem revelá-lo, podemos perguntar por que o ato em questão produz, para Benjamim, a culpa que organiza sua vida.
Benjamim é tão moderno quanto Ripley: ele não se angustia por ter transgredido ditados divinos ou tradicionais. O gesto que mancha seu passado produz culpa porque suscita o desprezo de seus amigos.
Ou seja, Benjamim vive no mesmo mundo sem deus e sem tradições no qual se movimenta Ripley. Mas, mais próximo da gente, ele não consegue erigir seu senso estético em regra moral absoluta; ele não tem a têmpera do esteta que, soberanamente, dispensa o aplauso de seus semelhantes. Benjamim precisa dos outros: portanto substitui o olhar divino pelo olhar do próximo. Ele mede a indignidade de seu gesto quando esse lhe vale um cuspe na cara.
O fim da história de Benjamim Zambraia contém uma outra lição. A culpa é certamente uma fonte possível da moral, mas é uma fonte perniciosa pela razão seguinte: os atos inspirados pela culpa visam sobretudo à punição de quem se acha culpado. Ou seja, se agirmos por culpa, nossa escolha "moralmente certa" não consistirá em fazer algum bem, mas em dar um jeito para que soframos, enfim, as conseqüências de nossos erros passados (essa constatação tem algumas implicações políticas e sociais, mas isso fica para outra vez).
Até aqui, apareceram três figuras da duvidosa e difícil moralidade moderna: o desbunde sem regras (no filme de Liliana Cavani, há um cúmplice passado de Ripley que é um bom exemplo disso; logicamente, ele acaba mal), o dandismo gélido do esteta (Ripley) e a expiação de uma culpa que foi decretada pela desaprovação dos outros (Benjamim).
Para completar a reflexão com uma nota de esperança, estréia na semana que vem "Diários de Motocicleta", de Walter Salles, inspirado no diário que o jovem Ernesto Guevara escreveu durante sua viagem pela América Latina, em 1952.
Desde já, vale a pena antecipar que o filme nos encoraja a sonhar com uma quarta via. Para quem não aceita que as regras morais desçam do céu ou sejam ditadas pela tradição, talvez não reste apenas a escolha entre desbunde, estetismo e culpa. Talvez exista também a possibilidade de que uma regra moral surja a partir de uma experiência de vida. Justamente, o filme de Walter Salles nos conta como isso aconteceu com o futuro Che.
quinta-feira, 8 de abril de 2004
Adolescentes, entre um elefante e as cobras de Samwaad
Estreou na semana passada "Elefante", de Gus van Sant. O filme conta uma história mais que parecida com os acontecimentos de 20 de abril de 1999, quando dois estudantes de último ano do colégio de Columbine, Colorado, saíram atirando, assassinaram um professor e 12 colegas, feriram dezenas de outros e se mataram.
Para a decepção dos comentaristas, os dois jovens, Dylan Klebold e Eric Harris, eram quase "normais". Suas famílias não pareciam sinistras. Eles tinham pais e irmãos. Eram alunos corretos. Certo, não se integravam nos grupos em que se divide cada colégio americano (esportistas, cus-de-ferro, pode-crer etc.); mas os que não se integram são, em cada colégio, numerosos.
Verdade, gostavam de jogar "Doom", um video game muito violento; mas "Doom" vendeu acima de 600 mil cópias. Já havia armas em casa e era fácil conseguir mais; mas isso é banal num subúrbio do Colorado. Também, em 1998, os dois tinham tentado roubar um carro; mas, desde então, eles haviam completado com sucesso um programa para adolescentes réus primários (terapia, trabalho social etc.). Depois do massacre, foram encontradas, nos diários dos dois jovens, expressões de ódio suicida e homicida. Mas nada além de muitas letras de rap ou das músicas de um Kurt Cobain.
Em suma, mil razões, mas nenhuma à altura da enormidade do que aconteceu. Fora a dor das famílias das vítimas (e dos assassinos), fora o luto da comunidade de Columbine, o maior sofrimento produzido pelo evento foi, sem ironia, a frustração de não conseguirmos explicar.
A extraordinária qualidade do filme de Gus van Sant é esta: parece óbvio que uma tragédia vai acontecer, óbvio como um elefante passeando pela rua, mas as explicações do desastre são apenas jeitos que a gente encontra para que a razão nos console. As causas verdadeiras se perdem na banalidade cotidiana.
Naquele dia, Dylan e Eric, com seu fardo de armas, granadas e munições, levaram provavelmente para a escola um conjunto de desgostos triviais: a insatisfação com o vazio e a solidão de suas vidas, a vontade imperiosa de que algo acontecesse, a tristeza de eles não serem os heróis de ninguém, a frustração de não saber o que é amar.
Parêntese. Desde a ano passado, vários leitores me escreveram perguntando por que nunca comentei "Tiros em Columbine", o documentário de Michael Moore. De fato, gostei bastante do filme de M. Moore: é uma meditação (engraçada e corretamente não conclusiva) sobre a posse de armas na sociedade americana. É central, no filme, a comparação com o Canadá, onde a quantidade de armas per habitante é bem maior que nos EUA, embora o número de crimes seja incomparavelmente menor. Também central é o fato de que o próprio Michael Moore, fiel a suas raízes proletárias fincadas na América profunda, é membro de carteirinha da National Rifle Association, a associação americana dos proprietários de armas.
Os intelectuais progressistas americanos adotaram "Tiros em Columbine", mas a um preço: esqueceram a complexidade do filme. Puderam, assim, usá-lo para confirmar o que já pensavam: as armas são coisas de camponês e operário, coisa de pobre (de espírito e de conta no banco). Na espera de que as massas sejam "educadas", retiremos as armas de circulação, e as crianças voltarão para a escola seguras. Responde Gus van Sant: o buraco é mais embaixo. Parêntese fechado.
O que fazer, então, com esse elefante estranhamente familiar, que passeia por nossos gramados?
Lembra-se daquele jogo de crianças em que você coloca na mesa a figurinha de um bicho, e o colega propõe outro bicho, afirmando que o dele é mais forte e, numa luta, ganharia do seu? Ao elefante de Columbine, eu contraporia as cobras de adolescentes dançando, no espetáculo montado por Ivaldo Bertazzo, "Samwaad, a Rua do Encontro", no Sesc Belenzinho. Se você mora em São Paulo ou se vier para cá até o fim de junho, não perca.
O espetáculo é o resultado do projeto Dança Comunidade: durante nove meses, 53 jovens de várias ONGs de São Paulo passaram 25 horas por semana estudando e treinando para redescobrir seus corpos.
Em "Samwaad" não há discursos nem palavras. Só música, canto rítmico, percussões e dança. Misteriosamente, as evoluções dos dançarinos contêm e transmitem uma mensagem arrepiante de alegria de viver e de solidariedade possível.
Se fosse necessária uma demonstração de que o trabalho corporal pode tocar algum âmago da subjetividade, ela está dada. Aventurar-se na graça e na harmonia, transformar postura e gestualidade para um passeio na "Rua do Encontro" é uma maneira de recompor a imagem de si que cada um oferece aos outros, é um jeito de inventar novas relações. Pois, por exemplo, ninguém entra na ciranda sem confiar no próximo.
Olhando para os jovens de "Samwaad", pensei na caminhada triste de Dylan e Eric, que enfiavam os coturnos na grama carregando suas bolsas de morte, talvez encurvando os ombros, na paródia da postura do cantor de rap, que se tornou moda entre os adolescentes americanos e que evoca a atitude do boxeador acuado nas cordas.
Seria bom se os Dylans e Erics da vida encontrassem um Ivaldo Bertazzo que lhes ensinasse a dançar.
Para a decepção dos comentaristas, os dois jovens, Dylan Klebold e Eric Harris, eram quase "normais". Suas famílias não pareciam sinistras. Eles tinham pais e irmãos. Eram alunos corretos. Certo, não se integravam nos grupos em que se divide cada colégio americano (esportistas, cus-de-ferro, pode-crer etc.); mas os que não se integram são, em cada colégio, numerosos.
Verdade, gostavam de jogar "Doom", um video game muito violento; mas "Doom" vendeu acima de 600 mil cópias. Já havia armas em casa e era fácil conseguir mais; mas isso é banal num subúrbio do Colorado. Também, em 1998, os dois tinham tentado roubar um carro; mas, desde então, eles haviam completado com sucesso um programa para adolescentes réus primários (terapia, trabalho social etc.). Depois do massacre, foram encontradas, nos diários dos dois jovens, expressões de ódio suicida e homicida. Mas nada além de muitas letras de rap ou das músicas de um Kurt Cobain.
Em suma, mil razões, mas nenhuma à altura da enormidade do que aconteceu. Fora a dor das famílias das vítimas (e dos assassinos), fora o luto da comunidade de Columbine, o maior sofrimento produzido pelo evento foi, sem ironia, a frustração de não conseguirmos explicar.
A extraordinária qualidade do filme de Gus van Sant é esta: parece óbvio que uma tragédia vai acontecer, óbvio como um elefante passeando pela rua, mas as explicações do desastre são apenas jeitos que a gente encontra para que a razão nos console. As causas verdadeiras se perdem na banalidade cotidiana.
Naquele dia, Dylan e Eric, com seu fardo de armas, granadas e munições, levaram provavelmente para a escola um conjunto de desgostos triviais: a insatisfação com o vazio e a solidão de suas vidas, a vontade imperiosa de que algo acontecesse, a tristeza de eles não serem os heróis de ninguém, a frustração de não saber o que é amar.
Parêntese. Desde a ano passado, vários leitores me escreveram perguntando por que nunca comentei "Tiros em Columbine", o documentário de Michael Moore. De fato, gostei bastante do filme de M. Moore: é uma meditação (engraçada e corretamente não conclusiva) sobre a posse de armas na sociedade americana. É central, no filme, a comparação com o Canadá, onde a quantidade de armas per habitante é bem maior que nos EUA, embora o número de crimes seja incomparavelmente menor. Também central é o fato de que o próprio Michael Moore, fiel a suas raízes proletárias fincadas na América profunda, é membro de carteirinha da National Rifle Association, a associação americana dos proprietários de armas.
Os intelectuais progressistas americanos adotaram "Tiros em Columbine", mas a um preço: esqueceram a complexidade do filme. Puderam, assim, usá-lo para confirmar o que já pensavam: as armas são coisas de camponês e operário, coisa de pobre (de espírito e de conta no banco). Na espera de que as massas sejam "educadas", retiremos as armas de circulação, e as crianças voltarão para a escola seguras. Responde Gus van Sant: o buraco é mais embaixo. Parêntese fechado.
O que fazer, então, com esse elefante estranhamente familiar, que passeia por nossos gramados?
Lembra-se daquele jogo de crianças em que você coloca na mesa a figurinha de um bicho, e o colega propõe outro bicho, afirmando que o dele é mais forte e, numa luta, ganharia do seu? Ao elefante de Columbine, eu contraporia as cobras de adolescentes dançando, no espetáculo montado por Ivaldo Bertazzo, "Samwaad, a Rua do Encontro", no Sesc Belenzinho. Se você mora em São Paulo ou se vier para cá até o fim de junho, não perca.
O espetáculo é o resultado do projeto Dança Comunidade: durante nove meses, 53 jovens de várias ONGs de São Paulo passaram 25 horas por semana estudando e treinando para redescobrir seus corpos.
Em "Samwaad" não há discursos nem palavras. Só música, canto rítmico, percussões e dança. Misteriosamente, as evoluções dos dançarinos contêm e transmitem uma mensagem arrepiante de alegria de viver e de solidariedade possível.
Se fosse necessária uma demonstração de que o trabalho corporal pode tocar algum âmago da subjetividade, ela está dada. Aventurar-se na graça e na harmonia, transformar postura e gestualidade para um passeio na "Rua do Encontro" é uma maneira de recompor a imagem de si que cada um oferece aos outros, é um jeito de inventar novas relações. Pois, por exemplo, ninguém entra na ciranda sem confiar no próximo.
Olhando para os jovens de "Samwaad", pensei na caminhada triste de Dylan e Eric, que enfiavam os coturnos na grama carregando suas bolsas de morte, talvez encurvando os ombros, na paródia da postura do cantor de rap, que se tornou moda entre os adolescentes americanos e que evoca a atitude do boxeador acuado nas cordas.
Seria bom se os Dylans e Erics da vida encontrassem um Ivaldo Bertazzo que lhes ensinasse a dançar.
quinta-feira, 1 de abril de 2004
Desemprego
Capa da Folha, na quinta passada: em fevereiro, na região metropolitana de São Paulo, o índice de desemprego subiu mais um pouco.
No domingo, o caderno Empregos assinalava que 56 semanas é o tempo médio para que um desempregado encontre trabalho. Haja ânimo.
As porcentagens variam segundo o índice escolhido, mas, de qualquer forma, é provável que todos os paulistanos conheçam um amigo ou um parente que, a cada manhã, olha no espelho e se pergunta por que fazer a barba ou por que escovar o cabelo.
Estou lendo um livro recente, que trata dos efeitos das adversidades externas sobre nossa saúde mental, "Adversity, Stress and Psychopathology" (Adversidade, Estresse e Psicopatologia), de Bruce Dohrenwend (editor). A perda do emprego está na lista dos piores fatores adversos, com as catástrofes naturais, a morte de uma pessoa amada, o estupro, a doença grave, a separação ou o divórcio.
Nenhuma novidade nisso: é fácil entender que a perda do emprego seja fonte de angústia, de depressão e mesmo, às vezes, de "comportamentos anti-sociais": alcoolismo, violência familiar e condutas criminosas. Compreendemos imediatamente, por exemplo, o desespero do provedor (ou da provedora) que não consegue preencher as expectativas de seus dependentes. "Se a família não pode mais contar comigo, perco minha razão de ser."
Mas há algo mais, que talvez faça do desemprego a adversidade mais danosa para nossa saúde mental.
Preste atenção: no balcão de um boteco, como na mesa de um jantar, se seus vizinhos forem desconhecidos, a primeira pergunta não será "quem é você?", mas "o que você faz na vida?". Se eles tiverem uma intenção alegre, talvez tentem primeiro descobrir seu estado civil. Fora isso, o interesse pela sua identidade se apresentará como interesse por seu papel produtivo.
Ora, tanto você como seu vizinho (ou vizinha) viverão essa conversa inicial como um momento, de alguma forma, falso. Pois todos sabemos que somos mais do que nosso ofício: temos histórias, amores, esperanças, interesses, paixões e crenças que, de fato, expressariam muito melhor quem somos. Ao trocarmos cartões de visita, mentimos por omissão. Identifico-me como executivo, bancária, escritor, médica, mecânico, mas quem sou eu? A poeta da meia-noite? O sedutor das salas de bate-papo na internet? O piadista do bar da esquina? O pai preocupado com a doença do filho? A mulher que, a caminho do escritório, se agacha e conversa com o sem-teto que vive na calçada? O homem que cantarola Dorival Caymmi tomando banho?
Não é o caso de sermos nostálgicos. Num passado não muito remoto, cada um era definido por sua proveniência, e as perguntas iniciais diziam: quem foram seus pais e antepassados? Onde você nasceu? Quais são as dívidas que você herdou?
Prefiro os dias de hoje, em que são nossas próprias façanhas que nos definem. É uma escolha que deveria nos deixar mais livres, mas acontece que a praticamos de um jeito estranho: junto com os laços que nos prendiam a nossas origens e ao passado, nossa vida concreta também é silenciada na descrição de nossa identidade. E nos transformamos em sujeitos abstratos, resumidos por nossa função na produção e na circulação de mercadorias e serviços.
Conseqüência: o desemprego nos ameaça com uma perda radical de identidade. E não adianta observar que, afinal, nos sobra o resto, ou seja, toda a complexidade de nosso ser. Tipo: "Perdi meu emprego, mas ainda sou pai amoroso, amante, esposo, amigo, leitor de Saramago e corintiano ou palmeirense". Não adianta porque, em regra, já renunciamos há tempos a sermos representados por nossa vida concreta.
Não é por acaso que as mulheres lidam com o desemprego melhor que os homens, como mostra uma pesquisa recente de Lucia Artazcoz e outros, "Unemployment and Mental Health: Understanding the Interactions between Gender, Family Roles and Social Class" (Desemprego e Saúde Mental: Para Compreender as Interações entre Gênero, Papéis Familiares e Classe Social), "American Journal of Public Health", 2004, 94. Duas constatações de Artazcoz: 1) o impacto do desemprego é maior nos homens casados do que nos celibatários ("Se não traz o feijão, você ainda é o pai?"), 2) as mulheres casadas com filhos, ao perderem o emprego, sofrem menos que os homens e menos que as celibatárias. Explicação: para as mulheres, o exercício da maternidade ainda constitui uma identidade possível. "O que você faz na vida?" "Tomo conta de meus filhos." Para os homens, essa resposta não basta.
Enfim, espera-se que a economia crie empregos. Mas os poetas e os saltimbancos também têm uma tarefa crucial: são eles que podem, aos poucos, convencer a gente de que é nossa vida concreta que nos define, não nossa função produtiva.
P.S.: Um sonho recorrente propõe que reaprendamos a colocar raízes, ou seja, a definir nossa identidade por uma parcela de terra que nos sustentaria, que seria nossa e à qual pertenceríamos. Em 1932, Henry Ford, consternado pela crise que assolava os EUA, aderiu ao movimento da volta à terra. Declamou: "A terra! É lá que estão nossas raízes. Nenhum seguro-desemprego pode se comparar à aliança entre um homem e seu pedaço de terra". Curioso precursor de João Pedro Stedile, ele imaginava (e nisso tinha razão) que, se cada um mantivesse uma relação íntima com seu lote de terra, o desemprego poderia ser um aperto econômico, mas não uma queda no vazio. Pena, já era tarde demais para isso.
No domingo, o caderno Empregos assinalava que 56 semanas é o tempo médio para que um desempregado encontre trabalho. Haja ânimo.
As porcentagens variam segundo o índice escolhido, mas, de qualquer forma, é provável que todos os paulistanos conheçam um amigo ou um parente que, a cada manhã, olha no espelho e se pergunta por que fazer a barba ou por que escovar o cabelo.
Estou lendo um livro recente, que trata dos efeitos das adversidades externas sobre nossa saúde mental, "Adversity, Stress and Psychopathology" (Adversidade, Estresse e Psicopatologia), de Bruce Dohrenwend (editor). A perda do emprego está na lista dos piores fatores adversos, com as catástrofes naturais, a morte de uma pessoa amada, o estupro, a doença grave, a separação ou o divórcio.
Nenhuma novidade nisso: é fácil entender que a perda do emprego seja fonte de angústia, de depressão e mesmo, às vezes, de "comportamentos anti-sociais": alcoolismo, violência familiar e condutas criminosas. Compreendemos imediatamente, por exemplo, o desespero do provedor (ou da provedora) que não consegue preencher as expectativas de seus dependentes. "Se a família não pode mais contar comigo, perco minha razão de ser."
Mas há algo mais, que talvez faça do desemprego a adversidade mais danosa para nossa saúde mental.
Preste atenção: no balcão de um boteco, como na mesa de um jantar, se seus vizinhos forem desconhecidos, a primeira pergunta não será "quem é você?", mas "o que você faz na vida?". Se eles tiverem uma intenção alegre, talvez tentem primeiro descobrir seu estado civil. Fora isso, o interesse pela sua identidade se apresentará como interesse por seu papel produtivo.
Ora, tanto você como seu vizinho (ou vizinha) viverão essa conversa inicial como um momento, de alguma forma, falso. Pois todos sabemos que somos mais do que nosso ofício: temos histórias, amores, esperanças, interesses, paixões e crenças que, de fato, expressariam muito melhor quem somos. Ao trocarmos cartões de visita, mentimos por omissão. Identifico-me como executivo, bancária, escritor, médica, mecânico, mas quem sou eu? A poeta da meia-noite? O sedutor das salas de bate-papo na internet? O piadista do bar da esquina? O pai preocupado com a doença do filho? A mulher que, a caminho do escritório, se agacha e conversa com o sem-teto que vive na calçada? O homem que cantarola Dorival Caymmi tomando banho?
Não é o caso de sermos nostálgicos. Num passado não muito remoto, cada um era definido por sua proveniência, e as perguntas iniciais diziam: quem foram seus pais e antepassados? Onde você nasceu? Quais são as dívidas que você herdou?
Prefiro os dias de hoje, em que são nossas próprias façanhas que nos definem. É uma escolha que deveria nos deixar mais livres, mas acontece que a praticamos de um jeito estranho: junto com os laços que nos prendiam a nossas origens e ao passado, nossa vida concreta também é silenciada na descrição de nossa identidade. E nos transformamos em sujeitos abstratos, resumidos por nossa função na produção e na circulação de mercadorias e serviços.
Conseqüência: o desemprego nos ameaça com uma perda radical de identidade. E não adianta observar que, afinal, nos sobra o resto, ou seja, toda a complexidade de nosso ser. Tipo: "Perdi meu emprego, mas ainda sou pai amoroso, amante, esposo, amigo, leitor de Saramago e corintiano ou palmeirense". Não adianta porque, em regra, já renunciamos há tempos a sermos representados por nossa vida concreta.
Não é por acaso que as mulheres lidam com o desemprego melhor que os homens, como mostra uma pesquisa recente de Lucia Artazcoz e outros, "Unemployment and Mental Health: Understanding the Interactions between Gender, Family Roles and Social Class" (Desemprego e Saúde Mental: Para Compreender as Interações entre Gênero, Papéis Familiares e Classe Social), "American Journal of Public Health", 2004, 94. Duas constatações de Artazcoz: 1) o impacto do desemprego é maior nos homens casados do que nos celibatários ("Se não traz o feijão, você ainda é o pai?"), 2) as mulheres casadas com filhos, ao perderem o emprego, sofrem menos que os homens e menos que as celibatárias. Explicação: para as mulheres, o exercício da maternidade ainda constitui uma identidade possível. "O que você faz na vida?" "Tomo conta de meus filhos." Para os homens, essa resposta não basta.
Enfim, espera-se que a economia crie empregos. Mas os poetas e os saltimbancos também têm uma tarefa crucial: são eles que podem, aos poucos, convencer a gente de que é nossa vida concreta que nos define, não nossa função produtiva.
P.S.: Um sonho recorrente propõe que reaprendamos a colocar raízes, ou seja, a definir nossa identidade por uma parcela de terra que nos sustentaria, que seria nossa e à qual pertenceríamos. Em 1932, Henry Ford, consternado pela crise que assolava os EUA, aderiu ao movimento da volta à terra. Declamou: "A terra! É lá que estão nossas raízes. Nenhum seguro-desemprego pode se comparar à aliança entre um homem e seu pedaço de terra". Curioso precursor de João Pedro Stedile, ele imaginava (e nisso tinha razão) que, se cada um mantivesse uma relação íntima com seu lote de terra, o desemprego poderia ser um aperto econômico, mas não uma queda no vazio. Pena, já era tarde demais para isso.
quinta-feira, 18 de março de 2004
A Paixão de Cristo
"A Paixão de Cristo", de Mel Gibson, estréia amanhã no Brasil.
1) Muitos perguntarão: por que representar a paixão de Cristo com tamanha violência e tanto sangue? O cristianismo não seria mais bem apresentado pelo Cristo da ressurreição e pela mensagem generosa dos Evangelhos?
Ora, em 1521, Lucas Cranach publicou um pequeno livro, "Passional Christi und Antichristi" (Paixão do Cristo e do Anticristo). A gravura em que o anticristo era coroado com muita pompa, como um papa ou um imperador, era contraposta à que representava o Cristo escarnecido e humilhado, com sua coroa de espinhos.
Como milhões de homens e mulheres ocidentais, passei minha infância sob o olhar protetor de dois tipos de imagens: de um lado, os heróis nacionais com faixas, gala, espada e bandeira; do outro, o crucifixo. Cuidado: não era o Cristo sentado à direita de Deus nem o Cristo conversando amavelmente com os apóstolos ou sarando leprosos e ressuscitando mortos. Era o Cristo na cruz. Seu poder era obviamente diferente do poder dos heróis a cavalo: ele parecia se originar no próprio martírio.
Em matéria de religião, prefiro conviver com perguntas que não têm resposta. Mas uma coisa me parece certa: sem o mistério (absurdo, como dizia Tertuliano) de um deus que teria aceitado viver um suplício horrível para redimir os pecados dos homens, o cristianismo não passaria de uma ideologia social-democrata. Ótimo e simpático, mas não precisa do Cristo para isso.
No filme de Mel Gibson, a paixão acontece na presença constante do demônio, que é o único derrotado. Se o Cristo desistisse de seu martírio e recorresse a uma mágica divina para evitar o sofrimento, o demônio triunfaria. E prevaleceria, em nossa cultura, uma única idéia do poder, a idéia da qual gosta o maligno e segundo a qual o poder está com o mais forte.
2) Vários críticos acusam Mel Gibson de ser hollywoodiano. Dizem que, na "Paixão de Cristo", o sangue escorre como num filme de ação de segundo escalão.
É uma inversão. O Cristo crucificado é a imagem que mais foi reproduzida e divulgada no segundo milênio do Ocidente. Não é estranho, por conseqüência, que um tema básico de nossas narrativas populares seja o seguinte: um homem é massacrado, surrado, deixado numa poça de sangue, mas ele é um justo e voltará um dia para ajustar as contas.
A paixão de Cristo não precisa do sangue falso de Hollywood, mas há muito sangue de Hollywood que seria impensável sem nosso fascínio pela paixão de Cristo. O próprio Mel Gibson, como ator, já foi "crucificado" mais de uma vez.
3) Ao achar que a violência do filme é excessiva, somos fiéis à modernidade. A partir da segunda metade do século 15, somem das praças da Europa as brutais encenações teatrais do suplício de Cristo, e as imagens da paixão na arte sagrada se tornam menos cruentas. O historiador suíço Valentin Groebner, num livro recente e admirável ("Defaced, the Visual Culture of Violence in the Late Middle Ages"; Desfigurado, a Cultura Visual da Violência na Idade Média Tardia, Zone Books), nota que, a partir de 1525, as representações de Jesus crucificado, em vez de mostrar a agonia de um torturado, começam a apresentar "um redentor delicadamente suspenso na cruz".
Há exceções: o barroco brasileiro produziu, por exemplo, algumas estátuas do corpo doloroso de Cristo que não ficam para trás de nenhum Mel Gibson. Mas, no conjunto, o Renascimento do século 16 (e a gente com ele) prefere esquecer pragas e dores para exaltar as potencialidades do homem. O que era o crucifixo para um sujeito medieval? Uma consolação? Um exemplo de resignação? Pode ser. Mas, quando os pestilentos, os supliciados em praça pública, os famintos e os destroçados das mil guerras olhavam para o crucifixo, eles deviam encontrar um curioso espelho. O que havia de mais real em seus corpos, o sofrimento e a fragilidade mortal, fora também o lote de Deus. Talvez, com isso, eles reconhecessem que sua desgraça não os excluía da humanidade.
A modernidade continua pendurando crucifixos nas paredes, mas prefere esquecer pudicamente a paixão representada. Se precisássemos da imagem de um corpo comum, seria mais um ginasta que um crucificado.
Mel Gibson nos lembra de algo incômodo. E também útil: não há como entender o que é um homem moderno sem considerar que, para muitos, desde a infância, a imagem de um jovem torturado e agonizante foi o primeiro símbolo (paradoxal) de grandeza e o primeiro ideal de um corpo masculino amável e venerável.
Notas
1) Alguns acham que "A Paixão" é um filme anti-semita. A obra confirmaria o antigo argumento segundo o qual "os judeus" quiseram supliciar o Cristo (argumento que, de fato, a Igreja Católica usou durante séculos para supliciar judeus). Ora, no conto evangélico como no filme, Caifás e o "establishment" judaico de Jerusalém (não "os judeus") pediram a crucifixão de um profeta de sucesso, que minava o poder religioso instituído. Esse profeta era Cristo, um judeu.
2) De fato, Tertuliano (terceiro século de nossa era), no "De Carne Christi", não disse "credo quia absurdum" (creio porque é absurdo), mas "credibile est, quia ineptum est": é acreditável porque é inepto, ou seja, porque é uma história fraca.
Aliás, a paixão serve para isto: para que acreditemos nos fracos.
1) Muitos perguntarão: por que representar a paixão de Cristo com tamanha violência e tanto sangue? O cristianismo não seria mais bem apresentado pelo Cristo da ressurreição e pela mensagem generosa dos Evangelhos?
Ora, em 1521, Lucas Cranach publicou um pequeno livro, "Passional Christi und Antichristi" (Paixão do Cristo e do Anticristo). A gravura em que o anticristo era coroado com muita pompa, como um papa ou um imperador, era contraposta à que representava o Cristo escarnecido e humilhado, com sua coroa de espinhos.
Como milhões de homens e mulheres ocidentais, passei minha infância sob o olhar protetor de dois tipos de imagens: de um lado, os heróis nacionais com faixas, gala, espada e bandeira; do outro, o crucifixo. Cuidado: não era o Cristo sentado à direita de Deus nem o Cristo conversando amavelmente com os apóstolos ou sarando leprosos e ressuscitando mortos. Era o Cristo na cruz. Seu poder era obviamente diferente do poder dos heróis a cavalo: ele parecia se originar no próprio martírio.
Em matéria de religião, prefiro conviver com perguntas que não têm resposta. Mas uma coisa me parece certa: sem o mistério (absurdo, como dizia Tertuliano) de um deus que teria aceitado viver um suplício horrível para redimir os pecados dos homens, o cristianismo não passaria de uma ideologia social-democrata. Ótimo e simpático, mas não precisa do Cristo para isso.
No filme de Mel Gibson, a paixão acontece na presença constante do demônio, que é o único derrotado. Se o Cristo desistisse de seu martírio e recorresse a uma mágica divina para evitar o sofrimento, o demônio triunfaria. E prevaleceria, em nossa cultura, uma única idéia do poder, a idéia da qual gosta o maligno e segundo a qual o poder está com o mais forte.
2) Vários críticos acusam Mel Gibson de ser hollywoodiano. Dizem que, na "Paixão de Cristo", o sangue escorre como num filme de ação de segundo escalão.
É uma inversão. O Cristo crucificado é a imagem que mais foi reproduzida e divulgada no segundo milênio do Ocidente. Não é estranho, por conseqüência, que um tema básico de nossas narrativas populares seja o seguinte: um homem é massacrado, surrado, deixado numa poça de sangue, mas ele é um justo e voltará um dia para ajustar as contas.
A paixão de Cristo não precisa do sangue falso de Hollywood, mas há muito sangue de Hollywood que seria impensável sem nosso fascínio pela paixão de Cristo. O próprio Mel Gibson, como ator, já foi "crucificado" mais de uma vez.
3) Ao achar que a violência do filme é excessiva, somos fiéis à modernidade. A partir da segunda metade do século 15, somem das praças da Europa as brutais encenações teatrais do suplício de Cristo, e as imagens da paixão na arte sagrada se tornam menos cruentas. O historiador suíço Valentin Groebner, num livro recente e admirável ("Defaced, the Visual Culture of Violence in the Late Middle Ages"; Desfigurado, a Cultura Visual da Violência na Idade Média Tardia, Zone Books), nota que, a partir de 1525, as representações de Jesus crucificado, em vez de mostrar a agonia de um torturado, começam a apresentar "um redentor delicadamente suspenso na cruz".
Há exceções: o barroco brasileiro produziu, por exemplo, algumas estátuas do corpo doloroso de Cristo que não ficam para trás de nenhum Mel Gibson. Mas, no conjunto, o Renascimento do século 16 (e a gente com ele) prefere esquecer pragas e dores para exaltar as potencialidades do homem. O que era o crucifixo para um sujeito medieval? Uma consolação? Um exemplo de resignação? Pode ser. Mas, quando os pestilentos, os supliciados em praça pública, os famintos e os destroçados das mil guerras olhavam para o crucifixo, eles deviam encontrar um curioso espelho. O que havia de mais real em seus corpos, o sofrimento e a fragilidade mortal, fora também o lote de Deus. Talvez, com isso, eles reconhecessem que sua desgraça não os excluía da humanidade.
A modernidade continua pendurando crucifixos nas paredes, mas prefere esquecer pudicamente a paixão representada. Se precisássemos da imagem de um corpo comum, seria mais um ginasta que um crucificado.
Mel Gibson nos lembra de algo incômodo. E também útil: não há como entender o que é um homem moderno sem considerar que, para muitos, desde a infância, a imagem de um jovem torturado e agonizante foi o primeiro símbolo (paradoxal) de grandeza e o primeiro ideal de um corpo masculino amável e venerável.
Notas
1) Alguns acham que "A Paixão" é um filme anti-semita. A obra confirmaria o antigo argumento segundo o qual "os judeus" quiseram supliciar o Cristo (argumento que, de fato, a Igreja Católica usou durante séculos para supliciar judeus). Ora, no conto evangélico como no filme, Caifás e o "establishment" judaico de Jerusalém (não "os judeus") pediram a crucifixão de um profeta de sucesso, que minava o poder religioso instituído. Esse profeta era Cristo, um judeu.
2) De fato, Tertuliano (terceiro século de nossa era), no "De Carne Christi", não disse "credo quia absurdum" (creio porque é absurdo), mas "credibile est, quia ineptum est": é acreditável porque é inepto, ou seja, porque é uma história fraca.
Aliás, a paixão serve para isto: para que acreditemos nos fracos.
quinta-feira, 11 de março de 2004
Os Estados Desunidos da mente
Há mais de quatro décadas, o La MaMa, no East Village de Manhattan, é o templo nova-iorquino do teatro experimental. No sábado passado, no La MaMa, estreou uma peça escrita e dirigida por Gerald Thomas: "Anchor Pectoris, The United States of the Mind" (Anchor Pectoris, os Estados Unidos da Mente).
A expressão conhecida é "angina pectoris": designa uma dor violenta e opressiva atrás do esterno, que nos aflige quando o oxigênio que chega ao coração é insuficiente. "Anchor pectoris", uma âncora no peito, é uma boa metáfora: evoca o sofrimento (uma espécie de facada no coração e um peso que, esmagando-nos, impede a respiração), mas também, paradoxalmente, promete uma cura. Afinal, estamos (ou somos) todos um pouco perdidos, navegando à deriva: lamentamos o porto seguro do qual saímos um dia e sonhamos com uma âncora que possa nos prender a um lugar ou a uma idéia certa e clara.
A peça nasceu como um "tour de force". Gerald Thomas, de passagem por Nova York em janeiro, visitou Ellen Stewart, a diretora artística do La MaMa. E Ellen, de repente, lhe propôs de montar e encenar um espetáculo em 30 dias.
O resultado é intenso, engraçado e tocante: o diretor nos apresenta a atual encruzilhada de sua vida num instantâneo que é também um inventário tragicômico da subjetividade contemporânea.
Como personagens de Beckett, erramos por um terreno baldio, em que circulam lembranças, pensamentos, esperanças e fragmentos obcecantes de discursos políticos vazios (os de George W. Bush, no caso). A musa que poderia nos inspirar (surpreendente Fabiana Guglielmetti) ora parece morta, ora dança zombando da gente. Stephen Nisbet e Tom Walker são os (ótimos) atores que encarnam o próprio Gerald Thomas. Há um momento em que Nisbet pergunta: será que alguém encontrará o tempo para juntar a sucata em que se partiu nossa subjetividade? E será que valeria a pena? O ator, nessa hora, se parece com um boneco que tivesse desmontado a si mesmo para compreender melhor seu funcionamento e, então, perplexo no meio de um quebra-cabeça de braços e pernas, não encontrasse mais o jeito de se reconstruir.
Surge a tentação de juntar-se ao coro das viúvas do "Meu Deus, que horror, tudo o que é sólido se desmancha no ar". É fácil ser mais uma voz chorando o fim dos ideais, do claro sentido da história, do respeito absoluto pelos mestres etc.
Cuidado: certo, o boneco pós-moderno não consegue rejuntar a sucata em que foi transformado por sua própria curiosidade, no entanto ele oferece algumas compensações. Ele é capaz, por exemplo, de escrever a peça de Gerald Thomas, ou seja, de se enxergar com lucidez e ironia atormentadas. Você acha que essa qualidade não levanta pirâmides nem redige sistemas filosóficos? Pode ser. Mas é a qualidade crucial para aqueles que querem (e ousam) mudar.
Um dos livros mais interessantes que li nos últimos anos é "The Protean Self, Human Resilience in an Age of Fragmentation" (O Sujeito Protéico, a Resistência Humana numa Época de Fragmentação), de Robert Jay Lifton, o grande psicanalista e psiquiatra americano que escreveu sobre a Guerra do Vietnã, as conseqüências psíquicas da ameaça nuclear etc. Protéico, no título, não tem nada a ver com as proteínas; é uma referência a Proteus, um deus da mitologia grega que tinha a faculdade de adotar infinitas formas diferentes (de leão, de serpente, de árvore e mesmo de água), sobretudo para evitar que fosse encurralado e obrigado a responder a perguntas sobre o passado e o futuro (sendo que sobre ambos ele sabia mais do que queria dizer). Proteus é o padroeiro das mudanças.
Entre os mil ensaios sobre a pós-modernidade e a subjetividade contemporânea, "The Protean Self", publicado em 1993, é um dos poucos que não se resumem num lamento da consistência perdida. Para Lifton, a novidade pós-moderna é que, claro, vivemos num mundo inquietante, fluido e múltiplo, mas a contrapartida positiva dessa inconsistência é a extraordinária e constante possibilidade de nos outorgar segundas, terceiras e quartas chances.
O sujeito contemporâneo é um imigrante, um órfão e um sobrevivente: perdeu seu lugar de origem, a proteção da autoridade paterna e a fé tanto na imortalidade de sua alma quanto no progresso infinito da espécie. Essas perdas nos definem e nos mantêm num luto constante, mas elas são as condições de nossa plasticidade, ou seja, de uma capacidade, inédita e gloriosa, de mudança. Quem não tem país, não tem pai e não conta com a eternidade atreve-se facilmente a transformar radicalmente sua vida.
Para Lifton, a subjetividade contemporânea é uma agonia que acarreta seu próprio remédio: a experiência do desamparo é a mola de nossas reinvenções.
É a época sonhada por qualquer terapeuta: nunca houve tanto sofrimento para curar, mas também nunca houve tanta possibilidade de curar, pois nunca houve tanta disponibilidade para mudar.
É também uma boa época para pensar, pois é permitido (ou mesmo encorajado) descuidar autoridades e doutrinas para aceitar as incoerências que são impostas pela realidade.
sexta-feira, 5 de março de 2004
Admiráveis mulheres
Na Folha de domingo passado, uma reportagem de Gilmar Penteado, "Dobra o número de meninas na Febem". O texto apontava que, nos últimos três anos, dobrou o número de meninas cumprindo "medidas socioeducativas" na Febem, enquanto o número de garotos aumentou apenas 49,3%. Além disso, com esse entusiasmo inédito, as meninas se encaminham para os mesmos crimes que são preferidos pelos garotos (roubo qualificado e tráfico de drogas).
Você pensava o quê? As mulheres deixaram de se preocupar só com as panelas e o repouso sexual do guerreiro. Participam da dita "vida ativa" (ou seja, da produção) tanto quanto o homem. Portanto, acabou a época em que as mulheres cometiam lânguidos crimes por paixão ou eram cúmplices fiéis de seus companheiros ladrões. Chegou a época da igualdade: as meninas assaltam como garotos.
Nostalgia das mulheres que se dedicavam só ao lar e à tarefa de seduzir? Seria estranho, pois os homens de hoje não gostam especialmente de amélias. Então nostalgia de quê?
Os homens ingressaram na modernidade se transformando em puros agentes econômicos: a profissão nos define, os bens acumulados e a renda nos qualificam socialmente, o lucro nos motiva, e o consumo expressa nossos desejos.
É simples, mas custoso, pois essa transformação pede, em princípio, que os homens descuidem de seus vínculos afetivos e passionais. Nada de lar, pátrias e amores: somente o mercado. Idealmente, o produtor-consumidor, sedento de bens e status, é órfão, apátrida e desdenhoso de sentimentos complexos.
No começo, as mulheres foram poupadas pela modernidade. Sobrou-lhes a tarefa de cuidar dos homens e de reproduzi-los. Com isso, elas se tornaram, para todos (inclusive para elas mesmas), o símbolo do que os homens perdiam, do lar, da terra, da sensualidade do corpo, dos transportes da paixão, enfim, da vida concreta. Nos últimos 50 anos, as coisas mudaram. Será que as mulheres de hoje, como as meninas da Febem, se parecem com os garotos?
Começou, na semana passada (e permanece até 30 de maio), no Itaú Cultural (avenida Paulista, 149), a exposição "O Preço da Sedução, do Espartilho ao Silicone". Sem pedantismo, com quadros, roupas, acessórios, revistas da época (que podem efetivamente ser folheadas) e trechos de filmes, a curadora, Denise Mattar, esboçou uma bonita história da sedução feminina nos últimos 200 anos.
Em reverência obrigatória ao senso comum, é difícil não criticar a servidão das mulheres, "forçadas" a modelar seus corpos segundo o desejo masculino. Mas, percorrendo as salas da exposição, pensei algo um pouco diferente.
É extraordinário que, desde os anos 50, as mulheres consigam produzir como os homens sem abandonar a arte da sedução e (embora esse não seja o tema da exposição) sem deixar de ser mães: elas continuam sendo guardiãs do lar, representantes da paixão e símbolos da sensualidade dos corpos.
É uma missão impossível a cada dia: leve as crianças para a escola, corra para o trabalho, ao meio-dia depilação e almoço executivo, volte para o escritório, encontre a orientadora do colégio do filho, aproveite aquela liquidação de lingerie, escreva o relatório para a conferência anual e esteja em casa a tempo para tomar banho, secar o cabelo e acolher os convidados para o jantar. No meio disso, faça o necessário para que fechem as contas do mês. Admiráveis mulheres.
Logicamente, para a mulher que se tornou agente econômico (e que assalta como um garoto), as antigas exigências da sedução, da paixão e do lar soam como uma imposição violenta. "Além de trabalhar, olhe o que me toca fazer enquanto meu suposto companheiro volta do serviço como um viking voltava da guerra. Alega suas feridas para descuidar de si, dos filhos, da casa e de mim. E ainda pede que Salomé dance para ele, com ou sem os sete véus."
É grande a tentação de entender a história dos artifícios da sedução como uma história das alienações impostas às mulheres pelas fantasias dos homens. Os homens do século passado deviam gostar de cintura fina, e as mulheres se deixavam sufocar nos espartilhos. Muitos homens hoje devem gostar de peitos fartos, e as mulheres passam na faca. Será que é isso?
Talvez. Mas pensar assim não é diminuir o mérito das mulheres? Afinal, foram elas que, no mundo abstrato dos agentes econômicos, souberam e ainda sabem inventar mil maneiras de manter vivo o desejo concreto.
A história da sedução não é só uma história de violências sofridas e de sujeição às fantasias dos homens. É também a história de como, nas margens das fábricas e dos escritórios, as mulheres conseguiram resguardar um tempo e um lugar para as paixões ou para as vontades marotas.
O preço da sedução, do espartilho ao silicone, não é só o preço pago pelas mulheres submissas ao desejo masculino. É também o custo de um projeto, o preço que elas pagam por querer que a vida seja diferente, menos pobre e menos aborrecida.
Certo, parece um despropósito: a arte da sedução como meio para mudar o mundo? Mas veja só. Várias propagandas antigas são reproduzidas na exposição. Por que usar a Lugolina do dr. Eduardo França? Pois é, declara a modelo, "estou convencida de que, para ser bela e dominar o mundo, deve-se usar só Lugolina".
Você pensava o quê? As mulheres deixaram de se preocupar só com as panelas e o repouso sexual do guerreiro. Participam da dita "vida ativa" (ou seja, da produção) tanto quanto o homem. Portanto, acabou a época em que as mulheres cometiam lânguidos crimes por paixão ou eram cúmplices fiéis de seus companheiros ladrões. Chegou a época da igualdade: as meninas assaltam como garotos.
Nostalgia das mulheres que se dedicavam só ao lar e à tarefa de seduzir? Seria estranho, pois os homens de hoje não gostam especialmente de amélias. Então nostalgia de quê?
Os homens ingressaram na modernidade se transformando em puros agentes econômicos: a profissão nos define, os bens acumulados e a renda nos qualificam socialmente, o lucro nos motiva, e o consumo expressa nossos desejos.
É simples, mas custoso, pois essa transformação pede, em princípio, que os homens descuidem de seus vínculos afetivos e passionais. Nada de lar, pátrias e amores: somente o mercado. Idealmente, o produtor-consumidor, sedento de bens e status, é órfão, apátrida e desdenhoso de sentimentos complexos.
No começo, as mulheres foram poupadas pela modernidade. Sobrou-lhes a tarefa de cuidar dos homens e de reproduzi-los. Com isso, elas se tornaram, para todos (inclusive para elas mesmas), o símbolo do que os homens perdiam, do lar, da terra, da sensualidade do corpo, dos transportes da paixão, enfim, da vida concreta. Nos últimos 50 anos, as coisas mudaram. Será que as mulheres de hoje, como as meninas da Febem, se parecem com os garotos?
Começou, na semana passada (e permanece até 30 de maio), no Itaú Cultural (avenida Paulista, 149), a exposição "O Preço da Sedução, do Espartilho ao Silicone". Sem pedantismo, com quadros, roupas, acessórios, revistas da época (que podem efetivamente ser folheadas) e trechos de filmes, a curadora, Denise Mattar, esboçou uma bonita história da sedução feminina nos últimos 200 anos.
Em reverência obrigatória ao senso comum, é difícil não criticar a servidão das mulheres, "forçadas" a modelar seus corpos segundo o desejo masculino. Mas, percorrendo as salas da exposição, pensei algo um pouco diferente.
É extraordinário que, desde os anos 50, as mulheres consigam produzir como os homens sem abandonar a arte da sedução e (embora esse não seja o tema da exposição) sem deixar de ser mães: elas continuam sendo guardiãs do lar, representantes da paixão e símbolos da sensualidade dos corpos.
É uma missão impossível a cada dia: leve as crianças para a escola, corra para o trabalho, ao meio-dia depilação e almoço executivo, volte para o escritório, encontre a orientadora do colégio do filho, aproveite aquela liquidação de lingerie, escreva o relatório para a conferência anual e esteja em casa a tempo para tomar banho, secar o cabelo e acolher os convidados para o jantar. No meio disso, faça o necessário para que fechem as contas do mês. Admiráveis mulheres.
Logicamente, para a mulher que se tornou agente econômico (e que assalta como um garoto), as antigas exigências da sedução, da paixão e do lar soam como uma imposição violenta. "Além de trabalhar, olhe o que me toca fazer enquanto meu suposto companheiro volta do serviço como um viking voltava da guerra. Alega suas feridas para descuidar de si, dos filhos, da casa e de mim. E ainda pede que Salomé dance para ele, com ou sem os sete véus."
É grande a tentação de entender a história dos artifícios da sedução como uma história das alienações impostas às mulheres pelas fantasias dos homens. Os homens do século passado deviam gostar de cintura fina, e as mulheres se deixavam sufocar nos espartilhos. Muitos homens hoje devem gostar de peitos fartos, e as mulheres passam na faca. Será que é isso?
Talvez. Mas pensar assim não é diminuir o mérito das mulheres? Afinal, foram elas que, no mundo abstrato dos agentes econômicos, souberam e ainda sabem inventar mil maneiras de manter vivo o desejo concreto.
A história da sedução não é só uma história de violências sofridas e de sujeição às fantasias dos homens. É também a história de como, nas margens das fábricas e dos escritórios, as mulheres conseguiram resguardar um tempo e um lugar para as paixões ou para as vontades marotas.
O preço da sedução, do espartilho ao silicone, não é só o preço pago pelas mulheres submissas ao desejo masculino. É também o custo de um projeto, o preço que elas pagam por querer que a vida seja diferente, menos pobre e menos aborrecida.
Certo, parece um despropósito: a arte da sedução como meio para mudar o mundo? Mas veja só. Várias propagandas antigas são reproduzidas na exposição. Por que usar a Lugolina do dr. Eduardo França? Pois é, declara a modelo, "estou convencida de que, para ser bela e dominar o mundo, deve-se usar só Lugolina".
quinta-feira, 4 de março de 2004
A arte do retrato
Terça -feira, em Nova York. Hoje, uma grande rodada de eleições primárias escolherá o candidato democrata à Presidência americana. É um bom dia para tomar café e discutir política no clube da Universidade Yale, na rua Vanderbilt: na sala principal, ao lado do bar, tronam os retratos dos ex-alunos da universidade que foram presidentes dos EUA, Gerald Ford, George Bush (o pai) e Bill Clinton. O retrato de George W. Bush (o filho), também ex-aluno, chegará no fim do mandato.
Os ex-presidentes são representados à paisana: nada de pingüim, nada de faixa, nem mesmo uma gravata com as cores da bandeira. Os retratos são acadêmicos e não fazem o meu gosto. Mas não é só isso: eles são pouco palatáveis por uma outra razão.
Todos nós temos, no mínimo, dois corpos: um corpo público ou político e um corpo privado. O primeiro é o corpo que apresentamos aos outros no exercício de nossas funções sociais: o enfermeiro e a médica de jaleco branco, o homem de negócios de terno escuro, o professor de paletó xadrez e gravata borboleta, a roqueira de calça apertada e cabelo punk. O segundo é o corpo que veste a camiseta do domingo, o couro e a lingerie da noite licenciosa ou a nudez dos enlaces amorosos. E é banal que tenhamos mais de um corpo público e mais de um corpo privado. Nota: aprendi a reconhecer a pluralidade de corpos que habitamos lendo (anos atrás, sorte minha) "Os Dois Corpos do Rei", de Ernest Kantorowicz (felizmente traduzido pela Companhia das Letras).
Mas voltemos ao clube nova-iorquino: os retratos dos três ex-presidentes são medíocres porque, apesar de não mostrarem explicitamente as fardas e os atributos do poder, eles conseguem a duvidosa façanha de apresentar corpos perfeitamente políticos. Quem se der o trabalho de contemplá-los receberá apenas esta mensagem: os três aqui retratados foram poderosos do jeito discreto e austero que convém a um ex-aluno de Yale. Para um olhar moderno, não basta; hoje, espera-se que qualquer retrato levante a suspeita de que, atrás do corpo público, há o enigma de desejos privados. Estamos interessados em indivíduos que sejam gente, não em fardas, que nos parecem sempre vazias.
Aliás, é por isto que todos os candidatos exibem filhos, mulheres e parentes: querem nos mostrar que eles têm um corpo privado, como nós. Claro, há corpos privados que a opinião média julga incompatíveis com certos corpos públicos: será que aceitaríamos um presidente que, à noite, vestisse calcinha e cinta-liga para encontrar seu amante? Provavelmente não, mas é indubitável que desconfiaríamos de um sujeito que quisesse nos convencer de que seu corpo é inteiramente político e público.
Por essas razões, um retrato que apresenta só o corpo público do retratado é, aos nossos olhos, simplesmente ruim.
Acabo de ler "Portraits, A History" (retratos, uma história), de Andreas Beyer. O original em alemão saiu em 2002; a tradução em inglês é do fim do ano passado.
O livro, que é maravilhosamente ilustrado e pesa seis quilos, narra de maneira magistral a evolução da arte do retrato.
Beyer confirma esta tese estabelecida em 1860 por Jacob Burkhardt (em "Cultura do Renascimento na Itália"): até o começo do Renascimento (primeiras décadas do século 15), a pintura ocidental não produziu retratos de indivíduos. Para os gregos, os romanos e os homens medievais, retratar significava mostrar não a unicidade do sujeito retratado, mas sua função social, seu status, seu lugar na hierarquia do poder. Por exemplo, o retrato de um imperador romano não se preocupava com a reprodução dos traços distintivos de sua pessoa, mas tentava criar uma imagem que expressasse a majestade da autoridade absoluta, da sabedoria e talvez do sagrado. Reconhecer o imperador no retrato significava reconhecer seu poder, muito mais que suas feições.
A partir do século 15, os retratos começam a insistir na singularidade dos sujeitos retratados. A mudança se explica assim: a modernidade valoriza o indivíduo mais do que a comunidade. Portanto, espera-se que o retrato moderno revele a verdade do corpo privado, único e inconfundível. A função social do sujeito (seu corpo público), no melhor dos casos, é uma espécie de mentira necessária.
No retrato antigo, os atributos da função eram mais importantes que os traços singulares do sujeito porque, antes da modernidade, o sujeito parecia ser definido perfeitamente (ou quase) por sua função social. Se, ao retratar César, mostrei que ele é imperador, revelei o essencial de sua pessoa. Ao contrário, se, ao retratar um presidente de hoje, eu só conseguir mostrar que ele é presidente, o retrato será propriamente um fracasso.
Para nós, modernos, a função social não resume nem define o indivíduo que a preenche. Quando contemplamos um retrato, o que nos interessa é aquela parte do sujeito retratado que não cabe na farda do corpo público.
A Antigüidade era o reino das fardas. O homem clássico conhecia uma (suposta) paz de espírito porque sua função na ordem social lhe bastava para responder à pergunta: "Quem é você?".
A modernidade é o mal-estar produzido pela descoberta de que um corpo privado se agita atrás das fardas, que não definem mais nossa pessoa. A esse descompasso devemos nossa pequena liberdade.
quinta-feira, 26 de fevereiro de 2004
"Peixe Grande" e a paixão pela vida
Na semana passada, estreou "Peixe Grande", de Tim Burton.
O filme é maravilhoso e tocante. Conta como, de um pai para o filho, transmite-se um bem precioso: a paixão pela vida.
A história é a seguinte: um filho passa a infância boquiaberto, escutando o pai, que não pára de narrar suas aventuras mirabolantes. Ao tornar-se adulto, o filho não agüenta mais: as narrações paternas lhe parecem fanfarrices. Quando o pai está próximo da morte, o filho volta para casa, decidido a entender o tamanho e a razão das "mentiras" paternas.
Difícil dizer se as histórias contadas pelo pai eram mentiras ou não. Mas tanto faz: o que o filho descobre é outra coisa e mais importante. De que se trata?
Para termos vontade de viver, não basta dispor do famoso instinto de autopreservação. Claro, reagimos imediatamente a situações de perigo. Se o corrimão da sacada balançar de repente, evitaremos cair no vazio jogando nosso peso para trás. Fato notável, o reflexo funcionará mesmo se estivermos deprimidos e prestes a cometer suicídio, de revólver na mão.
Essa contradição sugere o seguinte: o instinto de autopreservação não se confunde com a vontade de viver. O gosto pela vida não vem com o pacote genético: é uma paixão que nos é transmitida de maneiras diferentes, segundo a cultura, a época e a família em que nascemos.
Os pais podem inculcar no filho a vontade de viver para que o rebento realize as ambições nas quais os genitores fracassaram: "Viva, filho, para nos dar uma segunda chance". Na mesma linha, encontra-se: "Viva e reproduza-se para que a família continue", "viva para honrar os preceitos dos antepassados ou da religião" e "viva feliz para mostrar ao mundo que nós, seus pais, fizemos um bom trabalho". Em todos esses casos, a vontade de viver é transmitida como um mandato que se justifica por razões externas à própria experiência da vida.
Ora, sou pai de três rapazes. Gostaria de lhes transmitir uma paixão pela vida que não dependesse da realização de sonho algum, ainda menos de um sonho meu. Gostaria que eles encontrassem sua razão de viver não alhures (numa obrigação ou mesmo nos grandes princípios que dirigem suas ações), mas na própria experiência da vida que levam, em seus momentos felizes ou tristes, jocosos ou duros.
Mas como transmitir uma paixão pela vida em si?
O pai de "Peixe Grande" responde: para amar a vida, é preciso saber romanceá-la, não necessariamente devaneando que cada peixe pescado seja Moby Dick, mas vivendo a vida como uma aventura maravilhosa.
É impossível sair do filme sem pensar no pai da gente. Meu pai não gostava de contar em público suas façanhas. No entanto, não parava de maravilhar-se com a vida.
Até os meus sete ou oito anos, a cada vez que meu pai atendia o telefonema de um de meus colegas da escola, ele declarava, seriíssimo: "Só um instante, Contardo está preparando a comida para a girafa" ou "Vou ver se pode, estava dando banho no hipopótamo, talvez tenha terminado".
Mais de uma vez, tive que lidar com amigos furiosos, convencidos de que eu escondia um zoológico em casa e inconformados com meu egoísmo. Por que não permitia que os amigos brincassem com meus bichos?
Na época, eu detestava essas brincadeiras do meu pai. Hoje, acho que ele tentava me transmitir um pouco de sua capacidade de temperar a existência com pitadas de fantasia.
Durante 50 anos, meu pai manteve um diário. Sob pretexto de que sua caligrafia era ilegível, ele ditava o texto para minha mãe. Às vezes, eu ficava escutando atrás da porta. Odiava (e me fascinava) a transformação que as palavras do diário impunham a acontecimentos que eu tinha presenciado e que foram, a meu ver, insignificantes. Na descrição do meu pai, a banalidade do cotidiano se tornava uma vasta produção teatral cujo tema maior era sempre, aliás, o seu amor pela minha mãe.
Por exemplo, num vilarejo perto de Milão, numa tarde de domingo, com um frio de cão e uma chuva de afogar rãs, meu pai procurava o sacristão fantasma que talvez tivesse a chave de uma capela meio destruída, onde, segundo constava, sobravam os restos de um afresco do século 15. Minha mãe devia estar de saco cheio tanto quanto nós.
Mas meu pai ditaria esse transtorno como o encontro encantado do céu cinzento de Lombardia com o sorriso de minha mãe (que ele era o único a ter entrevisto), com a dedicação do sacristão (que, provavelmente, maldisse esse erudito que aparecia num domingo de inverno), com o sublime gesto do pintor (do qual gesto não sobrava quase nada) e, enfim, com o tormento e a esperança dos soldados que, num momento da Segunda Guerra, deviam ter encontrado amparo na capela, cujos muros eram grafitados por balas de metralhadora. Tudo isso convergiria para compor um momento mágico nas páginas do diário e, de fato, na vida dele.
Quando meu pai morreu, fiquei com seus diários. Leio de vez em quando. Não procuro informações sobre sua vida, apenas o segredo de sua paixão de viver e de amar.
O filme é maravilhoso e tocante. Conta como, de um pai para o filho, transmite-se um bem precioso: a paixão pela vida.
A história é a seguinte: um filho passa a infância boquiaberto, escutando o pai, que não pára de narrar suas aventuras mirabolantes. Ao tornar-se adulto, o filho não agüenta mais: as narrações paternas lhe parecem fanfarrices. Quando o pai está próximo da morte, o filho volta para casa, decidido a entender o tamanho e a razão das "mentiras" paternas.
Difícil dizer se as histórias contadas pelo pai eram mentiras ou não. Mas tanto faz: o que o filho descobre é outra coisa e mais importante. De que se trata?
Para termos vontade de viver, não basta dispor do famoso instinto de autopreservação. Claro, reagimos imediatamente a situações de perigo. Se o corrimão da sacada balançar de repente, evitaremos cair no vazio jogando nosso peso para trás. Fato notável, o reflexo funcionará mesmo se estivermos deprimidos e prestes a cometer suicídio, de revólver na mão.
Essa contradição sugere o seguinte: o instinto de autopreservação não se confunde com a vontade de viver. O gosto pela vida não vem com o pacote genético: é uma paixão que nos é transmitida de maneiras diferentes, segundo a cultura, a época e a família em que nascemos.
Os pais podem inculcar no filho a vontade de viver para que o rebento realize as ambições nas quais os genitores fracassaram: "Viva, filho, para nos dar uma segunda chance". Na mesma linha, encontra-se: "Viva e reproduza-se para que a família continue", "viva para honrar os preceitos dos antepassados ou da religião" e "viva feliz para mostrar ao mundo que nós, seus pais, fizemos um bom trabalho". Em todos esses casos, a vontade de viver é transmitida como um mandato que se justifica por razões externas à própria experiência da vida.
Ora, sou pai de três rapazes. Gostaria de lhes transmitir uma paixão pela vida que não dependesse da realização de sonho algum, ainda menos de um sonho meu. Gostaria que eles encontrassem sua razão de viver não alhures (numa obrigação ou mesmo nos grandes princípios que dirigem suas ações), mas na própria experiência da vida que levam, em seus momentos felizes ou tristes, jocosos ou duros.
Mas como transmitir uma paixão pela vida em si?
O pai de "Peixe Grande" responde: para amar a vida, é preciso saber romanceá-la, não necessariamente devaneando que cada peixe pescado seja Moby Dick, mas vivendo a vida como uma aventura maravilhosa.
É impossível sair do filme sem pensar no pai da gente. Meu pai não gostava de contar em público suas façanhas. No entanto, não parava de maravilhar-se com a vida.
Até os meus sete ou oito anos, a cada vez que meu pai atendia o telefonema de um de meus colegas da escola, ele declarava, seriíssimo: "Só um instante, Contardo está preparando a comida para a girafa" ou "Vou ver se pode, estava dando banho no hipopótamo, talvez tenha terminado".
Mais de uma vez, tive que lidar com amigos furiosos, convencidos de que eu escondia um zoológico em casa e inconformados com meu egoísmo. Por que não permitia que os amigos brincassem com meus bichos?
Na época, eu detestava essas brincadeiras do meu pai. Hoje, acho que ele tentava me transmitir um pouco de sua capacidade de temperar a existência com pitadas de fantasia.
Durante 50 anos, meu pai manteve um diário. Sob pretexto de que sua caligrafia era ilegível, ele ditava o texto para minha mãe. Às vezes, eu ficava escutando atrás da porta. Odiava (e me fascinava) a transformação que as palavras do diário impunham a acontecimentos que eu tinha presenciado e que foram, a meu ver, insignificantes. Na descrição do meu pai, a banalidade do cotidiano se tornava uma vasta produção teatral cujo tema maior era sempre, aliás, o seu amor pela minha mãe.
Por exemplo, num vilarejo perto de Milão, numa tarde de domingo, com um frio de cão e uma chuva de afogar rãs, meu pai procurava o sacristão fantasma que talvez tivesse a chave de uma capela meio destruída, onde, segundo constava, sobravam os restos de um afresco do século 15. Minha mãe devia estar de saco cheio tanto quanto nós.
Mas meu pai ditaria esse transtorno como o encontro encantado do céu cinzento de Lombardia com o sorriso de minha mãe (que ele era o único a ter entrevisto), com a dedicação do sacristão (que, provavelmente, maldisse esse erudito que aparecia num domingo de inverno), com o sublime gesto do pintor (do qual gesto não sobrava quase nada) e, enfim, com o tormento e a esperança dos soldados que, num momento da Segunda Guerra, deviam ter encontrado amparo na capela, cujos muros eram grafitados por balas de metralhadora. Tudo isso convergiria para compor um momento mágico nas páginas do diário e, de fato, na vida dele.
Quando meu pai morreu, fiquei com seus diários. Leio de vez em quando. Não procuro informações sobre sua vida, apenas o segredo de sua paixão de viver e de amar.
quinta-feira, 19 de fevereiro de 2004
Ataque dos clones
Na semana passada, pesquisadores da Universidade Nacional de Seul, na Coréia do Sul, anunciaram ter conseguido uma proeza científica e técnica.
Eles convenceram células quaisquer de um organismo humano a comportar-se como células-tronco originárias, ou seja, como células não diferenciadas, prontas a transformar-se em todos os tecidos dos quais o organismo possa precisar.
As promessas terapêuticas da experiência são imensas. Um infartado, por exemplo, poderia implantar em seu coração células dispostas a regenerar o órgão ferido.
Claro, a experiência acarreta a possibilidade de que um dia consigamos clonar um sujeito humano a partir de qualquer uma de suas células.
Conseqüência: ninguém comentou a experiência sem manifestar preventivamente sua recusa da clonagem.
Cada vez que se fala em clonar seres humanos, primeiro declaramos nossa oposição. A clonagem tem esse mérito: graças a ela, por uma vez, todos parecemos concordar. A unanimidade e o caráter peremptório das reações me levam a perguntar: com quem estamos brigando?
Não gostamos da idéia de que seja possível reproduzir-se sem passar pelos prazeres e desprazeres do sexo, do amor e do casal. Mas onde está a novidade trazida pela clonagem? A instabilidade dos casamentos já tornou banal que haja homens e mulheres criando filhos sem parceiro; para ter uma prole, casais homossexuais recorrem a barrigas de aluguel ou ao esperma de doadores anônimos; o sexo virtual é, para alguns, a modalidade preferida de relacionamento erótico-amoroso: seus adeptos devem renunciar a maternidade e paternidade?
Desaprovamos o projeto de produzir um ser humano que teria exatamente a mesma carga genética de seu (único) genitor: "O que é isso de querer se duplicar? Cara, qual é a sua, está com medo de morrer?". É curioso: a mesma pergunta poderia ser colocada à grande maioria dos casais que se reproduzem segundo o cânone estabelecido. Já faz mais de dois séculos que fazemos filhos na esperança de corrigir nossa intolerável mortalidade e os amamos por eles representarem nossa segunda chance: quem sabe eles realizem os sonhos que não alcançamos no decorrer de nossa vida.
Alguns se indignam porque, clonando, estaríamos brincando de Deus; clonar, eles notam, não é "natural". Certo, mas tampouco é natural erradicar a peste bubônica, inventar a energia nuclear, modificar o tamanhos dos seios e transplantar rins.
Outros levantam o espantalho da eugenia nazista. Dizem que, se pudermos escolher, soltaremos nossos piores preconceitos, planejando uma raça de loiros de olhos azuis, altos, fortes e livres de estigmas hereditários. Fora o fato de que nem todos temos os mesmos preconceitos (há quem prefira corpos morenos e cabelos encaracolados), será que não estamos já engajados numa eugenia de bom tamanho? Para que servem os exames pré-conjugais? E o acompanhamento pré-natal? E os exames do líquido amniótico, sistemáticos em mulheres grávidas acima dos 40 anos?
Outros ainda se queixam de que a clonagem comprometeria nossa unicidade. Mas a queixa manifesta sobretudo nossa ciumenta vontade de sermos inconfundíveis, pois a identidade de patrimônio genético não ameaça a singularidade dos sujeitos: a vida já se encarrega de diferenciar os gêmeos.
Em suma, somos contra a clonagem de seres humanos. Certo, mas é bom reconhecer que essa oposição apenas renova conflitos ordinários em nossa cultura.
Voltemos à experiência sul-coreana. Os fundamentalistas religiosos (de Bush ao Vaticano, passando pelos evangélicos) desaprovam e querem proibir: consideram que, seja qual for o estágio de desenvolvimento de um embrião, ele já é uma vida humana. Destruí-lo para extrair células-tronco seria, para os fundamentalistas, a mesma coisa que matar um sujeito para transplantar seu coração para outro.
Ora, justamente o cristianismo nos convida a descobrir e a respeitar a humanidade em nossos semelhantes. Para que um embrião que contém uma centena de células-tronco me apareça como meu semelhante, é preciso que minha definição do humano seja biológica. Seria humana qualquer existência, em qualquer estágio, com a condição de que pertencesse à espécie. Por esse caminho, por que não chorar pelos espermatozóides sacrificados, não digo nas camisinhas e nas masturbações, mas na própria hora da fecundação? E por que não pedir que as mulheres enterrem com ritos religiosos cada óvulo expulso na menstruação?
Fora de brincadeira, vale a pena notar o caráter pós-moderno dessa posição moral aparentemente conservadora. Veja bem: se a humanidade é definida por via biológica, então o bem supremo é a sobrevivência. E nenhum valor moral pode situar-se acima do bom funcionamento dos órgãos. Há uma curiosa cumplicidade entre a idéia de que um embrião é nosso semelhante e a idéia de que é mais moral fazer regime balanceado do que ler o jornal tomando café. Se o Paraíso obedecer ao Vaticano, os mártires cristãos que se cuidem: afinal, eles foram para a morte "só" para defender uma idéia.
Quanto a mim, prefiro reconhecer a humanidade de meus semelhantes nas faíscas da emoção, do pensamento e, sobretudo, da dúvida, que talvez seja a atitude mais humana de todas.
Aliás, quando encontro sujeitos que só têm certezas (como, neste caso, os que se indignam com a experiência coreana), eles me parecem ser apenas embriões de sujeitos.
Eles convenceram células quaisquer de um organismo humano a comportar-se como células-tronco originárias, ou seja, como células não diferenciadas, prontas a transformar-se em todos os tecidos dos quais o organismo possa precisar.
As promessas terapêuticas da experiência são imensas. Um infartado, por exemplo, poderia implantar em seu coração células dispostas a regenerar o órgão ferido.
Claro, a experiência acarreta a possibilidade de que um dia consigamos clonar um sujeito humano a partir de qualquer uma de suas células.
Conseqüência: ninguém comentou a experiência sem manifestar preventivamente sua recusa da clonagem.
Cada vez que se fala em clonar seres humanos, primeiro declaramos nossa oposição. A clonagem tem esse mérito: graças a ela, por uma vez, todos parecemos concordar. A unanimidade e o caráter peremptório das reações me levam a perguntar: com quem estamos brigando?
Não gostamos da idéia de que seja possível reproduzir-se sem passar pelos prazeres e desprazeres do sexo, do amor e do casal. Mas onde está a novidade trazida pela clonagem? A instabilidade dos casamentos já tornou banal que haja homens e mulheres criando filhos sem parceiro; para ter uma prole, casais homossexuais recorrem a barrigas de aluguel ou ao esperma de doadores anônimos; o sexo virtual é, para alguns, a modalidade preferida de relacionamento erótico-amoroso: seus adeptos devem renunciar a maternidade e paternidade?
Desaprovamos o projeto de produzir um ser humano que teria exatamente a mesma carga genética de seu (único) genitor: "O que é isso de querer se duplicar? Cara, qual é a sua, está com medo de morrer?". É curioso: a mesma pergunta poderia ser colocada à grande maioria dos casais que se reproduzem segundo o cânone estabelecido. Já faz mais de dois séculos que fazemos filhos na esperança de corrigir nossa intolerável mortalidade e os amamos por eles representarem nossa segunda chance: quem sabe eles realizem os sonhos que não alcançamos no decorrer de nossa vida.
Alguns se indignam porque, clonando, estaríamos brincando de Deus; clonar, eles notam, não é "natural". Certo, mas tampouco é natural erradicar a peste bubônica, inventar a energia nuclear, modificar o tamanhos dos seios e transplantar rins.
Outros levantam o espantalho da eugenia nazista. Dizem que, se pudermos escolher, soltaremos nossos piores preconceitos, planejando uma raça de loiros de olhos azuis, altos, fortes e livres de estigmas hereditários. Fora o fato de que nem todos temos os mesmos preconceitos (há quem prefira corpos morenos e cabelos encaracolados), será que não estamos já engajados numa eugenia de bom tamanho? Para que servem os exames pré-conjugais? E o acompanhamento pré-natal? E os exames do líquido amniótico, sistemáticos em mulheres grávidas acima dos 40 anos?
Outros ainda se queixam de que a clonagem comprometeria nossa unicidade. Mas a queixa manifesta sobretudo nossa ciumenta vontade de sermos inconfundíveis, pois a identidade de patrimônio genético não ameaça a singularidade dos sujeitos: a vida já se encarrega de diferenciar os gêmeos.
Em suma, somos contra a clonagem de seres humanos. Certo, mas é bom reconhecer que essa oposição apenas renova conflitos ordinários em nossa cultura.
Voltemos à experiência sul-coreana. Os fundamentalistas religiosos (de Bush ao Vaticano, passando pelos evangélicos) desaprovam e querem proibir: consideram que, seja qual for o estágio de desenvolvimento de um embrião, ele já é uma vida humana. Destruí-lo para extrair células-tronco seria, para os fundamentalistas, a mesma coisa que matar um sujeito para transplantar seu coração para outro.
Ora, justamente o cristianismo nos convida a descobrir e a respeitar a humanidade em nossos semelhantes. Para que um embrião que contém uma centena de células-tronco me apareça como meu semelhante, é preciso que minha definição do humano seja biológica. Seria humana qualquer existência, em qualquer estágio, com a condição de que pertencesse à espécie. Por esse caminho, por que não chorar pelos espermatozóides sacrificados, não digo nas camisinhas e nas masturbações, mas na própria hora da fecundação? E por que não pedir que as mulheres enterrem com ritos religiosos cada óvulo expulso na menstruação?
Fora de brincadeira, vale a pena notar o caráter pós-moderno dessa posição moral aparentemente conservadora. Veja bem: se a humanidade é definida por via biológica, então o bem supremo é a sobrevivência. E nenhum valor moral pode situar-se acima do bom funcionamento dos órgãos. Há uma curiosa cumplicidade entre a idéia de que um embrião é nosso semelhante e a idéia de que é mais moral fazer regime balanceado do que ler o jornal tomando café. Se o Paraíso obedecer ao Vaticano, os mártires cristãos que se cuidem: afinal, eles foram para a morte "só" para defender uma idéia.
Quanto a mim, prefiro reconhecer a humanidade de meus semelhantes nas faíscas da emoção, do pensamento e, sobretudo, da dúvida, que talvez seja a atitude mais humana de todas.
Aliás, quando encontro sujeitos que só têm certezas (como, neste caso, os que se indignam com a experiência coreana), eles me parecem ser apenas embriões de sujeitos.
quinta-feira, 12 de fevereiro de 2004
Consumidores e assanhados
Na semana passada, assisti a alguns capítulos da novela das oito da Rede Globo, "Celebridade".
Um anúncio da Honda voltava seguidamente, intercalado na novela. No sábado, quando o anúncio não apareceu, senti sua falta: cadê a propaganda da Honda?
Era um breve filme em que um carro, rápido, altivo e solitário, percorria as ruas de uma cidade; o turbilhão produzido por sua passagem levantava as saias curtas e vaporosas de mulheres maravilhosas. O roteiro parecia ditado pelo espírito da "Motivational Research" (pesquisa das motivações) do pós-guerra americano.
Os estudos das motivações dos consumidores foram, se não introduzidos, no mínimo popularizados, nos anos 50, por psicólogos de formação psicanalítica.
O mais famoso foi o dr. Ernst Dichter, que nasceu em Viena e, criança, residiu perto da casa de Freud (curiosidade que não prova nada). Ele foi psicanalisado por Wilhelm Steckel e demonizado por Vance Packard, em 1957, num clássico da sociologia de esquerda americana, "The Hidden Persuaders" (os persuasores ocultos). Dichter saiu de Viena a tempo, passou pela França e fugiu para os EUA antes da invasão nazista. Nos EUA, ele fez fortuna no marketing recorrendo à psicanálise para apontar as razões inconscientes das escolhas dos consumidores.
Em 1995, visitei sua viúva, que vivia em Westchester, ao norte da cidade de Nova York. Tive acesso aos arquivos de Dichter e consegui uma cópia de sua tese de doutorado, que, confesso, ainda não estudei. Queria entender qual era a visão da subjetividade pelo dr. Dichter. Deixando de lado a hipótese do simples oportunismo, perguntava-me: qual otimismo de imigrante neo-americano podia levar o dr. Dichter a pensar que o uso comercial das motivações inconscientes não constituísse uma falha ética, mas talvez contribuísse à formação de uma sociedade de consumo "feliz"? Mas não é esse o tema de hoje.
Ao meu ver, os melhores trabalhos do dr. Dichter não são propriamente pesquisas (embora ele se servisse de entrevistas e grupos de foco). Eles são exercícios de interpretação livre. Por exemplo, num relatório famoso, ele sugeriu a uma fábrica de carros que as concessionárias colocassem sempre na vitrina um conversível, enquanto o carro de quatro portas, apesar de ser o modelo mais vendido, ficaria atrás. Dichter se valia do seguinte argumento (resumido): os homens (na época eram eles que compravam) sempre entram num lugar atrás de uma amante, embora acabem levando uma confortável esposa. Outro relatório salientava a relação íntima do sabonete com o corpo e propunha que a propaganda de sabão se baseasse na sensualidade da espuma e não na virtude higiênica.
Hoje, esses achados parecem ingênuos: como o dr. Dichter conseguia ser pago para "descobrir" trivialidades? No entanto, é preciso lembrar-se de que, antes da Segunda Guerra, a propaganda consistia, em geral, na apresentação do produto, acompanhada da lista de suas propriedades, eventualmente milagrosas. No marketing dos anos 50, era inovadora a idéia de que o consumidor teria duas motivações básicas -poder social e sucesso sexual- e que, portanto, uma propaganda eficiente deveria relacionar o produto a uma delas ou às duas.
Dichter podia dizer-se freudiano, pois Freud teria concordado: as motivações humanas cabem em duas categorias (relacionadas), sucesso social e sexual.
O que mudou desde a época de Dichter? O que fez que, aos poucos, ele fosse esquecido? As motivações não mudaram, mas mudou seu estatuto: elas não têm mais nada de inconsciente nem de vergonhoso ou escondido.
A propaganda da Honda que cativou minha atenção era apresentada, como já disse, no meio de "Celebridade". Na novela, as motivações explícitas de vários protagonistas (motivações que ninguém estranha) são as mesmas que, segundo Dichter, animam o consumidor potencial. De uma certa forma, a propaganda da Honda (deve ser por isso que senti sua falta no sábado) era uma síntese (parcial, claro) da novela.
Meio século depois de Dichter, parecemos continuar exatamente como ele supunha que fôssemos: consumidores sedentos pelo prestígio que as mercadorias conferem e assanhados. A única (e notável) diferença, aparentemente, é que, além de consumidores e assanhados, somos assumidos: sem grande resistência, concordamos com a suposição de Dichter.
Talvez o psicólogo vienense-americano pensasse que, revelando as motivações básicas do sujeito moderno, ele estivesse fazendo uma obra civilizadora, produzindo uma espécie de terapia coletiva. Afinal, graças a ele, motivações inconscientes se tornariam conscientes. Não é isso que se espera da psicanálise?
Pois é, a psicanálise como "ciência" das motivações é mesmo trivial: duas ou três pulsões, uma corrida atrás do desejo (sobretudo o dos outros) e por aí vai. Só que a psicanálise não é uma ciência das motivações, mas uma arte de explorar (e modificar) os meandros pelos quais cada um constrói uma existência singular (sofrível ou sofrida) negociando como pode com as tais motivações básicas triviais.
Sobra, portanto, uma pergunta: se o que nos define não é a banalidade das motivações, mas nossa capacidade de inventar a vida negando, deslocando e transformando as ditas motivações, então por que nos espelhamos docilmente nas idéias de Dichter? Por que aceitamos ser definidos sumariamente por cobiça e luxúria?
Um anúncio da Honda voltava seguidamente, intercalado na novela. No sábado, quando o anúncio não apareceu, senti sua falta: cadê a propaganda da Honda?
Era um breve filme em que um carro, rápido, altivo e solitário, percorria as ruas de uma cidade; o turbilhão produzido por sua passagem levantava as saias curtas e vaporosas de mulheres maravilhosas. O roteiro parecia ditado pelo espírito da "Motivational Research" (pesquisa das motivações) do pós-guerra americano.
Os estudos das motivações dos consumidores foram, se não introduzidos, no mínimo popularizados, nos anos 50, por psicólogos de formação psicanalítica.
O mais famoso foi o dr. Ernst Dichter, que nasceu em Viena e, criança, residiu perto da casa de Freud (curiosidade que não prova nada). Ele foi psicanalisado por Wilhelm Steckel e demonizado por Vance Packard, em 1957, num clássico da sociologia de esquerda americana, "The Hidden Persuaders" (os persuasores ocultos). Dichter saiu de Viena a tempo, passou pela França e fugiu para os EUA antes da invasão nazista. Nos EUA, ele fez fortuna no marketing recorrendo à psicanálise para apontar as razões inconscientes das escolhas dos consumidores.
Em 1995, visitei sua viúva, que vivia em Westchester, ao norte da cidade de Nova York. Tive acesso aos arquivos de Dichter e consegui uma cópia de sua tese de doutorado, que, confesso, ainda não estudei. Queria entender qual era a visão da subjetividade pelo dr. Dichter. Deixando de lado a hipótese do simples oportunismo, perguntava-me: qual otimismo de imigrante neo-americano podia levar o dr. Dichter a pensar que o uso comercial das motivações inconscientes não constituísse uma falha ética, mas talvez contribuísse à formação de uma sociedade de consumo "feliz"? Mas não é esse o tema de hoje.
Ao meu ver, os melhores trabalhos do dr. Dichter não são propriamente pesquisas (embora ele se servisse de entrevistas e grupos de foco). Eles são exercícios de interpretação livre. Por exemplo, num relatório famoso, ele sugeriu a uma fábrica de carros que as concessionárias colocassem sempre na vitrina um conversível, enquanto o carro de quatro portas, apesar de ser o modelo mais vendido, ficaria atrás. Dichter se valia do seguinte argumento (resumido): os homens (na época eram eles que compravam) sempre entram num lugar atrás de uma amante, embora acabem levando uma confortável esposa. Outro relatório salientava a relação íntima do sabonete com o corpo e propunha que a propaganda de sabão se baseasse na sensualidade da espuma e não na virtude higiênica.
Hoje, esses achados parecem ingênuos: como o dr. Dichter conseguia ser pago para "descobrir" trivialidades? No entanto, é preciso lembrar-se de que, antes da Segunda Guerra, a propaganda consistia, em geral, na apresentação do produto, acompanhada da lista de suas propriedades, eventualmente milagrosas. No marketing dos anos 50, era inovadora a idéia de que o consumidor teria duas motivações básicas -poder social e sucesso sexual- e que, portanto, uma propaganda eficiente deveria relacionar o produto a uma delas ou às duas.
Dichter podia dizer-se freudiano, pois Freud teria concordado: as motivações humanas cabem em duas categorias (relacionadas), sucesso social e sexual.
O que mudou desde a época de Dichter? O que fez que, aos poucos, ele fosse esquecido? As motivações não mudaram, mas mudou seu estatuto: elas não têm mais nada de inconsciente nem de vergonhoso ou escondido.
A propaganda da Honda que cativou minha atenção era apresentada, como já disse, no meio de "Celebridade". Na novela, as motivações explícitas de vários protagonistas (motivações que ninguém estranha) são as mesmas que, segundo Dichter, animam o consumidor potencial. De uma certa forma, a propaganda da Honda (deve ser por isso que senti sua falta no sábado) era uma síntese (parcial, claro) da novela.
Meio século depois de Dichter, parecemos continuar exatamente como ele supunha que fôssemos: consumidores sedentos pelo prestígio que as mercadorias conferem e assanhados. A única (e notável) diferença, aparentemente, é que, além de consumidores e assanhados, somos assumidos: sem grande resistência, concordamos com a suposição de Dichter.
Talvez o psicólogo vienense-americano pensasse que, revelando as motivações básicas do sujeito moderno, ele estivesse fazendo uma obra civilizadora, produzindo uma espécie de terapia coletiva. Afinal, graças a ele, motivações inconscientes se tornariam conscientes. Não é isso que se espera da psicanálise?
Pois é, a psicanálise como "ciência" das motivações é mesmo trivial: duas ou três pulsões, uma corrida atrás do desejo (sobretudo o dos outros) e por aí vai. Só que a psicanálise não é uma ciência das motivações, mas uma arte de explorar (e modificar) os meandros pelos quais cada um constrói uma existência singular (sofrível ou sofrida) negociando como pode com as tais motivações básicas triviais.
Sobra, portanto, uma pergunta: se o que nos define não é a banalidade das motivações, mas nossa capacidade de inventar a vida negando, deslocando e transformando as ditas motivações, então por que nos espelhamos docilmente nas idéias de Dichter? Por que aceitamos ser definidos sumariamente por cobiça e luxúria?
quinta-feira, 5 de fevereiro de 2004
Volta a Dogville
Muitos leitores me escreveram comentando a coluna de quinta passada, que tratava de "Dogville", de Lars von Trier. Agradeço a todos.
1) Alguns perguntam por que, ao avaliar um filme, daríamos peso às declarações do diretor: "Não seria melhor considerar a obra em si, sem interessar-se pelas intenções do autor?". No caso, pouco importaria que Von Trier anunciasse estar apresentando a "realidade" americana.
Problema: o que Von Trier declara em suas entrevistas não é ausente do filme. Dogville é um vilarejo americano. O protagonista masculino se chama Thomas Edison. As fotografias da miséria do mundo que acompanham os créditos do filme sugerem uma relação causal: olhem para os horrores produzidos pelo espírito de Dogville que estaria no âmago dos EUA. Essa mensagem está na obra.
Mas há uma questão mais geral. Com o estruturalismo dos anos 60, triunfou a idéia de que deveríamos entender as criações sem pensar nos autores. O objeto das ciências humanas não seria mais o sujeito com suas intenções confusas, absconsas e inexplicáveis, mas a matéria de seus produtos. Limitando-se a essa matéria (texto, filme, discurso etc.), seria possível operar com método e rigor. As ciências humanas alcançariam, enfim, as exatas.
O movimento (no qual militei) prosperou eliminando o que era refratário a seu projeto racionalista (não sei o que fazer com a complexidade das intenções, portanto elas não são relevantes). Com isso, ele se tornou imoral. Um caso foi decisivo para mim: o grupo Tel Quel decidiu que "Bagatelle pour un Massacre", de Louis-Ferdinand Céline, era uma obra de arte sublime e uma esperança da Revolução (sempre iminente). Pouco importava que o livro fosse uma expressão revoltante de racismo. As intenções do autor deviam ser desconsideradas, pois a materialidade do texto, por sua novidade estilística, nos transformaria em homens do futuro. Como dizem os cariocas quando querem sair de perto: a gente se vê na praia.
Hoje, leio, escuto, vejo e entendo levando em conta as intenções dos autores. Claro, a obra diz mais que essas intenções, mas, de qualquer forma, para mim, as intenções fazem parte da obra. A crítica é um exercício, ao mesmo tempo, estético e ético.
2) Outros leitores observam: "O filme repreende os EUA que Von Trier afirma não conhecer, e você parece concluir que "Dogville" é a expressão de um preconceito. Será que produzimos preconceitos a cada vez que falamos de algo que não conhecemos concretamente?".
Acho legítimo e interessante que proponhamos entendimentos ou interpretações de algo que não conhecemos por experiência. O preconceito é outra coisa. Explico.
É banal que, ao descrever uma reunião, digamos: "Havia cinco pessoas". No entanto, havia seis: a gente não se contou entre os presentes. Esse deslize exemplifica o oitavo pecado capital: tirar o corpo fora, ou seja, falar dos outros e do mundo como se nossa subjetividade não atrapalhasse nem o mundo nem nossa fala. O preconceito é filho desse pecado: se me esqueço de mim e de minha história na hora de falar dos outros, é provável que eu acabe lhes atribuindo exatamente aquela parte de mim ou de minha história que quis suprimir.
Isso acontece no caso do filme de Von Trier. Quem conhece as pequenas comunidades americanas e a história da Europa constata que Dogville é diferente das primeiras, mas encena um momento triste da segunda. Uma leitora, Anette Lewin, observou que, no vilarejo que evoca o drama de milhares de judeus escondidos pela Europa afora nos anos 40, o cachorro da cidade (a cidade do cão, Dogville) é chamado de Moisés: vingança do inconsciente.
Corolário. Se, ao contar uma história, tirarmos o corpo fora, a história contada será esquemática, pois só temos acesso à complexidade do humano reconhecendo nossa própria complexidade, ou seja, nos colocando em causa.
Aqui é oportuno que responda a uma leitora que não entende bem a razão de minha "ira". Ela é subjetiva. Nasci europeu (como Von Trier), italiano, filho de um militante antifascista: há esquecimentos com os quais não gosto de brincar e não gosto que alguém brinque.
Nota. Para quem não conhece a "América profunda", uma sugestão: para criticar a pequena comunidade americana, melhor ler Tocqueville que ver "Dogville". Agora, para criticar o racismo e o fechamento na sociedade européia, aí sim, é bom ver "Dogville".
Atenuante. O dito oitavo pecado capital está entre os mais praticados. Há o marido que quer pular a cerca e por isso se torna ciumento. Há o jovem que não tem a coragem de seguir seus desejos e por isso acha os pais conformistas. Somos todos Von Triers.
3) Um colega me dá a lição: o psicanalista não deveria, ele diz, interpretar, mas ajudar o sujeito a interpretar-se sozinho. É bem o que espero que Von Trier faça.
Escrevi sobre Von Trier a mesma coisa que eu diria, logo na primeira entrevista, a um paciente suíço que me contasse que acha o Brasil um horror porque os brasileiros são muito pontuais e ficaram com o dinheiro dos judeus durante a Segunda Guerra.
Morei bastante tempo em Porto Alegre e devo ter sido influenciado pelo analista de Bagé: quando é preciso, dou um joelhaço.
4) Outros leitores acham que minha apreciação negativa de "Dogville" seria um efeito de filoamericanismo. É o contrário. A crítica de Von Trier pratica o oitavo pecado capital, que consiste em atribuir aos outros as mazelas da gente. Não diz nada contra os outros e nos mantém na ignorância do que deveríamos criticar em nós mesmos. Seu maior defeito é de ser ineficaz.
quinta-feira, 29 de janeiro de 2004
Filme do cão
No inverno de 1994, na Universidade de Nova York, um painel de intelectuais franceses debatia os "malefícios" da internet. Alain Finkielkraut (que, apesar do que segue, é autor de livros respeitáveis) descreveu a net como um pesadelo totalitário. Um estudante lhe fez observar o óbvio: a net é tudo salvo uma estrutura totalitária centralizada. Finkielkraut respondeu que, de fato, ele desconhecia o funcionamento da net e nunca tinha estado on-line na vida. Levantando com brio sua caneta tinteiro, acrescentou que nem sabia se servir de um computador.
Uma minoria achou graça. A maioria foi embora. Meu vizinho de cadeira, ao levantar-se, disse a um amigo: "Não vou passar a noite escutando este babaca".
Concordo: quem fala do que não conhece com a intenção de ser levado a sério é um babaca. E quem fica para escutá-lo é duplamente babaca.
Ora, o diretor e autor do script de "Dogville", Lars von Trier, dinamarquês, declarou que seu filme é uma crítica dos Estados Unidos, onde, acrescentou orgulhosamente, ele nunca esteve. Numa entrevista ao "Guardian" de 15/ 5/2003, ele explicou que não precisa conhecer o país para criticá-lo e repreendê-lo, pois, afirmou expressa e literalmente, os EUA já são uma parte muito relevante de sua consciência, e isso pode bastar.
Lendo a entrevista, embora essa última afirmação me deixasse perplexo, pensei apenas que Von Trier era mais um babaca. Quando o filme estreasse, eu pouparia meus R$ 14.
Mas, recentemente, lembrei-me do seguinte: no inverno de 2002, um amigo, que vivia em Williamsburg (Brooklyn, Nova York), hospedou Lars von Trier em seu apartamento. Além disso, o mesmo amigo jura de pés juntos que o diretor dinamarquês passou meses em Los Angeles entre 1996 e 1997.
De repente, o filme me interessou: queria entender por que Von Trier sentiria a necessidade de nos contar abobrinhas.
Claro, há um oportunismo de marqueteiro: vocês, que, pelo mundo afora, não conhecem os EUA e estão indignados com a atual política norte-americana, bebam à fonte de meus preconceitos. Numa época de vivo antiamericanismo, a atitude garante ingressos.
Mas deve haver outras razões, além da bilheteria, para que Von Trier proponha "Dogville" como uma crítica aos EUA, e, ao mesmo tempo, ao custo de uma mentira (por pequena que seja), insista em declarar que sua crítica é o preconceito de quem não conhece.
A história do filme é a seguinte: nos anos 20, chega a um minúsculo vilarejo norte-americano uma moça perseguida por gângsteres. O vilarejo aceita protegê-la, mas, aos poucos, passa a escravizá-la perversamente.
O filme é pretensioso, o cenário e os diálogos gritando: "Sou o novo Godard, olhem como sou brilhante". Apesar dos esforços admiráveis dos atores, a complexidade das personagens é escassa.
Se o filme fosse uma meditação geral sobre a perversidade humana, ele seria só cínico. E o cinismo é o disfarce mais barato para simular inteligência: "revelar" que os homens são todos ruins é (quase sempre) apenas uma maneira de proclamar que a gente não é burro.
Se o filme quisesse apresentar os efeitos do ódio pelo diferente numa pequena comunidade isolada (e americana), seria inevitável pensar em "Deliverance" ("Amargo Pesadelo"), de John Boorman, 1972, que é incomparavelmente melhor.
De qualquer forma, a história evoca não os EUA dos anos 20, mas a época sombria em que, pela Europa invadida e ocupada, muitos judeus perseguidos pagaram caro a "generosidade" de quem os escondia.
O fim do filme (que não revelarei) é, aliás, estranhamente filoamericano e nos deixa com uma mensagem contraditória: os habitantes de Dogville (que seriam americanos) são horríveis, mas ainda bem que, de vez quando, os americanos chegam para acabar com Dogville. Esse paradoxo se explica se tentamos entender a origem do preconceito de Von Trier.
A Dinamarca foi ocupada pelos nazistas em 1940, em poucas horas; rei e governo se resignaram. A nação resgatou sua honra a partir de 1942, quando começou uma resistência heróica que, por exemplo, em 1943, garantiu a fuga de 7.000 judeus para a Suécia livre. Mas, antes disso, há uma página de história menos gloriosa. Cito uma fonte pouco suspeita, a história da Dinamarca contada pelo equivalente dinamarquês do Itamaraty: "Na ocasião da ofensiva alemã contra a União Soviética em 22 de junho de 1941, os alemães exigiram que os dirigentes comunistas dinamarqueses fossem internados, o que foi feito com um zelo que ultrapassava largamente as exigências alemãs".
Acontece que os pais de Von Trier eram comunistas militantes. Não sei como eles e seus camaradas viveram essa época. Mas duvido que tenha sido um momento feliz. Será que houve comunidades dinamarquesas que abusaram de seus comunistas escondidos como o vilarejo de Dogville abusa de Nicole Kidman, se não pior?
O mecanismo é banal: pelo preconceito, atribuo ao outro alguns traços meus ou de minha história que prefiro ignorar. Apontar a podridão alhures é mais simples que lidar com minhas tripas malcheirosas. E, no reino da Dinamarca, aconteceu algo podre que talvez Von Trier prefira silenciar.
Por isto, o filme, apesar de medíocre e desonesto, é interessante: porque é um exemplo esclarecedor de como nasce e funciona um preconceito.
O título, "Dogville", significa cidade do cão, e, de fato, há um cachorro na história. Mas, considerando que o filme fala das dificuldades de Von Trier com sua própria história e que Dogma é o nome do grupo que o diretor fundou, "Dogmaville" teria sido um título mais apropriado.
Uma minoria achou graça. A maioria foi embora. Meu vizinho de cadeira, ao levantar-se, disse a um amigo: "Não vou passar a noite escutando este babaca".
Concordo: quem fala do que não conhece com a intenção de ser levado a sério é um babaca. E quem fica para escutá-lo é duplamente babaca.
Ora, o diretor e autor do script de "Dogville", Lars von Trier, dinamarquês, declarou que seu filme é uma crítica dos Estados Unidos, onde, acrescentou orgulhosamente, ele nunca esteve. Numa entrevista ao "Guardian" de 15/ 5/2003, ele explicou que não precisa conhecer o país para criticá-lo e repreendê-lo, pois, afirmou expressa e literalmente, os EUA já são uma parte muito relevante de sua consciência, e isso pode bastar.
Lendo a entrevista, embora essa última afirmação me deixasse perplexo, pensei apenas que Von Trier era mais um babaca. Quando o filme estreasse, eu pouparia meus R$ 14.
Mas, recentemente, lembrei-me do seguinte: no inverno de 2002, um amigo, que vivia em Williamsburg (Brooklyn, Nova York), hospedou Lars von Trier em seu apartamento. Além disso, o mesmo amigo jura de pés juntos que o diretor dinamarquês passou meses em Los Angeles entre 1996 e 1997.
De repente, o filme me interessou: queria entender por que Von Trier sentiria a necessidade de nos contar abobrinhas.
Claro, há um oportunismo de marqueteiro: vocês, que, pelo mundo afora, não conhecem os EUA e estão indignados com a atual política norte-americana, bebam à fonte de meus preconceitos. Numa época de vivo antiamericanismo, a atitude garante ingressos.
Mas deve haver outras razões, além da bilheteria, para que Von Trier proponha "Dogville" como uma crítica aos EUA, e, ao mesmo tempo, ao custo de uma mentira (por pequena que seja), insista em declarar que sua crítica é o preconceito de quem não conhece.
A história do filme é a seguinte: nos anos 20, chega a um minúsculo vilarejo norte-americano uma moça perseguida por gângsteres. O vilarejo aceita protegê-la, mas, aos poucos, passa a escravizá-la perversamente.
O filme é pretensioso, o cenário e os diálogos gritando: "Sou o novo Godard, olhem como sou brilhante". Apesar dos esforços admiráveis dos atores, a complexidade das personagens é escassa.
Se o filme fosse uma meditação geral sobre a perversidade humana, ele seria só cínico. E o cinismo é o disfarce mais barato para simular inteligência: "revelar" que os homens são todos ruins é (quase sempre) apenas uma maneira de proclamar que a gente não é burro.
Se o filme quisesse apresentar os efeitos do ódio pelo diferente numa pequena comunidade isolada (e americana), seria inevitável pensar em "Deliverance" ("Amargo Pesadelo"), de John Boorman, 1972, que é incomparavelmente melhor.
De qualquer forma, a história evoca não os EUA dos anos 20, mas a época sombria em que, pela Europa invadida e ocupada, muitos judeus perseguidos pagaram caro a "generosidade" de quem os escondia.
O fim do filme (que não revelarei) é, aliás, estranhamente filoamericano e nos deixa com uma mensagem contraditória: os habitantes de Dogville (que seriam americanos) são horríveis, mas ainda bem que, de vez quando, os americanos chegam para acabar com Dogville. Esse paradoxo se explica se tentamos entender a origem do preconceito de Von Trier.
A Dinamarca foi ocupada pelos nazistas em 1940, em poucas horas; rei e governo se resignaram. A nação resgatou sua honra a partir de 1942, quando começou uma resistência heróica que, por exemplo, em 1943, garantiu a fuga de 7.000 judeus para a Suécia livre. Mas, antes disso, há uma página de história menos gloriosa. Cito uma fonte pouco suspeita, a história da Dinamarca contada pelo equivalente dinamarquês do Itamaraty: "Na ocasião da ofensiva alemã contra a União Soviética em 22 de junho de 1941, os alemães exigiram que os dirigentes comunistas dinamarqueses fossem internados, o que foi feito com um zelo que ultrapassava largamente as exigências alemãs".
Acontece que os pais de Von Trier eram comunistas militantes. Não sei como eles e seus camaradas viveram essa época. Mas duvido que tenha sido um momento feliz. Será que houve comunidades dinamarquesas que abusaram de seus comunistas escondidos como o vilarejo de Dogville abusa de Nicole Kidman, se não pior?
O mecanismo é banal: pelo preconceito, atribuo ao outro alguns traços meus ou de minha história que prefiro ignorar. Apontar a podridão alhures é mais simples que lidar com minhas tripas malcheirosas. E, no reino da Dinamarca, aconteceu algo podre que talvez Von Trier prefira silenciar.
Por isto, o filme, apesar de medíocre e desonesto, é interessante: porque é um exemplo esclarecedor de como nasce e funciona um preconceito.
O título, "Dogville", significa cidade do cão, e, de fato, há um cachorro na história. Mas, considerando que o filme fala das dificuldades de Von Trier com sua própria história e que Dogma é o nome do grupo que o diretor fundou, "Dogmaville" teria sido um título mais apropriado.
sexta-feira, 23 de janeiro de 2004
São Paulo 450 anos
Durante as Olimpíadas de 2000, eu estava em Sydney, Austrália.
Na noite do encerramento dos jogos, junto com alguns outros milhares de humanos, eu contribuía para abarrotar a península onde surge o esplêndido edifício da Ópera de Sydney. Todos contemplávamos uma festa de fogos de artifício.
Bem ao meu lado, um jovem casal se abraçava. No auge dos fogos, o rapaz apertou forte a moça e lhe disse, feliz: "And we live here", "E nós moramos aqui".
Gostaria que nestes dias, em São Paulo, houvesse ao menos um casal para viver um momento parecido, para sentir-se feliz de viver aqui. Talvez aconteça amanhã, na inauguração das fontes do parque Ibirapuera. Ou no sábado, quando Caetano cantará "Sampa" na esquina da Ipiranga com a São João. Ou, então, na avenida 23 de maio, domingo, durante a Parada São Paulo 450 anos.
Claro, Sydney compete na divisão do Rio de Janeiro, de Veneza, Roma, Paris, Londres, Nova York e por aí vai: é uma cidade excepcionalmente bonita. E, sobretudo, a frase do moço australiano devia expressar também a satisfação de viver numa cidade amiga, de andar por ruas animadas noite adentro, mas nunca ameaçadoras, de sentir-se amparado por uma comunidade que protege e assiste seus membros nas horas difíceis.
Não vamos perder ânimo. Afinal, não se sabe se primeiro vem o ovo ou a galinha. É certo que o orgulho e a alegria de viver numa cidade são o efeito dos direitos concretos que ela garante a seus cidadãos. Mas vale também o inverso: esse orgulho e essa alegria talvez sejam requisitos para que a cidade se transforme a ponto de merecer esses sentimentos.
Pensando, então, num casal paulistano que pudesse viver o mesmo momento encantado do casal de Sydney, sonhei com algumas festividades que não estão no programa.
1) Poderíamos ter proposto um concurso de poesia para poemas de, no máximo, três linhas (espécie de haicais japoneses), inspirados por São Paulo. Aliás, dois concursos: um para poetas publicados e outro aberto a quem quisesse concorrer. Uma comissão escolheria, sei lá, cem poemas. As agências de publicidade e seus clientes teriam sido contatados e, quem sabe, aceitassem que os outdoors da cidade, grandes e pequenos, fossem substituídos progressivamente por um fundo branco com, em destaque, o texto de um poema, sem o nome do autor. Para que ninguém ficasse triste, apareceria, em letras menores, o anunciante: cortesia do Banco Fulano. No meu devaneio, durante um mês no mínimo, TODOS os outdoors da cidade seriam poemas.
Haveria versos incompreensíveis, outros que provocariam o riso. Os analfabetos pediriam que alguém lhes dissesse o que está escrito. Mas, mesmo zombando, durante um mês, os paulistanos seriam todos leitores de poesia.
2) Não faltarão, nesses dias e durante o ano, exposições e concertos comemorativos. Mas teria gostado que os artistas e músicos paulistas tivessem sido comissionados para que pintassem, concebessem ou compusessem pensando na cidade. À força de respeitar o subjetivismo de nossa época e o mito da inspiração, esquecemos que, no passado, alguns dos melhores momentos da produção artística (a começar pela Renascença) foram efeito de encomendas. Nas praças da cidade, aconteceriam concertos públicos das obras (de jazz, música clássica, samba e MPB) compostas nesta ocasião. Quanto às obras de artes plásticas comissionadas, seriam exibidas numa mostra permanente, o ano todo, na Oca e nas salas da Bienal do Ibirapuera. Como já aconteceu, as escolas visitariam de manhã, e o acesso seria gratuito nos domingos.
3) Dois anos atrás, pois leva tempo, poderíamos ter pedido a Zé Celso e ao Teatro Oficina que, com a ajuda dos melhores historiadores paulistas, escrevessem e montassem uma peça sobre a história de São Paulo. Não uma peça para os espectadores que frequentam os teatros, mas um espetáculo em praça pública, no vale do Anhangabaú, na praça da Sé, embaixo do Minhocão com os espectadores em cima etc. A peça seria produzida num lugar diferente a cada semana, animando a cidade inteira com sua própria história, por truculenta que tenha sido.
As outras companhias paulistas de teatro, também comissionadas, encenariam peças sobre a vida em São Paulo, pelas ruas da cidade. O mesmo poderia acontecer com o balé e a dança moderna.
4) Falando em dança, tenho mais um sonho. Houve o baile do Réveillon na Paulista, que foi ótimo, e haverá outros. O problema dessas reuniões é que elas não juntam as diferentes camadas de nossa sociedade. Com o pretexto (justificado) da insegurança, a classe média não se aventura.
Ora, em Paris, eu gostava de frequentar os bailes do 14 de Julho, a festa nacional francesa. Havia bailes noite adentro nas casernas dos bombeiros e da gendarmaria. Essas veneráveis instituições ganhavam um dinheiro vendendo refrigerantes e cerveja, e todas as classes dançavam juntas numa segurança absoluta. Os bombeiros e policiais (homens e mulheres) que não estivessem de plantão dançavam com os cidadãos. Não seria mal se começássemos a perceber as forças da ordem não como inimigos ou como jagunços que nos protegem, mas como pessoas que nem a gente, a quem é delegada a função essencial de tornar nossas ruas acolhedoras e nossa vida mais pacífica. Adoraria valsar com uma PM em uniforme de gala na caserna da Rota da avenida Tiradentes. Depois disso, vindo do aeroporto, o edifício pararia de me parecer sinistro. E nós moraríamos aqui.
quinta-feira, 15 de janeiro de 2004
Quedas livres
A experiência sempre foi um valor. "Civilizados" ou "primitivos", antigos ou modernos, parece-nos óbvio prestigiar a quilometragem rodada e escutar quem já percorreu os caminhos pelos quais enveredamos.
No entanto, nos últimos 300 anos, em nossa cultura, a experiência adquiriu uma importância inédita. É fácil entender por quê: a herança do passado não nos define mais. Para dizer quem eu sou, não contarei a ilustre história do burgo em que nasci nem as façanhas de meus pais. Ao contrário, espera-se que eu conte como fui embora do berço e o que aconteceu depois. Ou seja, é à força de experiências que devo me construir.
A forma inicial e fundamental do romance (que é uma das grandes invenções modernas) é, justamente, o "romance de formação", a história de como um protagonista cresce de experiência em experiência. Os primeiros exemplos (maravilhosos) talvez sejam "Tom Jones", de Fielding (1749), e "Tristram Shandy", de Sterne (1759-67). O protótipo ainda é o "Wilhelm Meister" de Goethe (1795). Mas a forma atravessa o século 19 e chega até o gosto atual pelas autobiografias, que são uma versão hodierna do romance de formação. Um dia desses, escreverei uma, sério.
A idéia de que somos definidos por nossas experiências é uma garantia de liberdade. Graças a ela, nos tornamos inventores de nós mesmos: nosso valor depende do que ousamos fazer. Mas a liberdade tem alguns custos.
Primeiro, se a experiência é o critério da excelência do sujeito, a relação entre gerações se torna complicada: não é mais suficiente ser idoso para aparecer como um ancião sábio. É legítimo perguntar, antes de obedecer: "Papai, o que você fez durante a guerra?".
Um segundo problema é que a experiência é um valor abstrato: qualquer aventura pode valorizar o sujeito. Por exemplo, na aurora da modernidade, uma vez estabelecido que todos éramos definidos por nossos feitos, os românticos saíram pelo mundo afora dando um jeito para morrer quer fosse de tuberculose, o sublime mal do século (como Keats em Roma), quer fosse afogados, recusando socorro e desafiando os elementos (como Shelley na baía de Lérici), quer fosse numa guerra com a qual o sujeito não tinha nada a ver (como Byron lutando contra os turcos em Missolonghi, embora, azar dele, tenha morrido de febre e não de espada).
Outro exemplo. Quando era adolescente, seduzia-me qualquer experiência que fosse diferente da dos adultos ao redor de mim. "Fulano passou um ano na prisão", Fulano deve ser do caramba. "Sicrano injeta heroína", Sicrano é o máximo. Uma gíria confirma essa atitude: "ser da pesada" significa, ao mesmo tempo, topar qualquer parada e, como assinala o "Aurélio", impor respeito.
A modernidade nos deixa, em suma, numa grande perplexidade ética. Se a experiência, por sua variedade e intensidade, forma o sujeito e lhe dá valor, quem dirá qual é a experiência moralmente boa? Os anciões que se dizem sábios só porque são idosos? Claro que não. As normas estabelecidas? Ainda menos. Sobra idealizar, com a ajuda de Hollywood, os Fulanos e Sicranos mencionados acima.
Acontece, aliás, com a experiência, a mesma coisa que aconteceu com o livre mercado de homens e mercadorias. Ambos soltaram as amarras das origens e do passado, mas criaram outras. A idéia de valorizar a experiência devia ser um salva-todos: cada um sairia de seu esconderijo e iria pelo mundo, senhor de si. Mas a experiência produziu novas hierarquias: o sábio antigo foi substituído pelo sabido. "Você não tem densidade interior porque não esteve meses no meio do mar como um Amyr Klink." Por que não "Você não sabe da vida porque nunca matou ninguém"?
Ora, acabo de ler, de um fôlego, "Queda Livre", de Otavio Frias Filho (Companhia das Letras). O livro é composto de sete ensaios ou reportagens "de risco", nos quais o autor relata e comenta uma série de experiências às quais ele se submeteu.
Passo sobre o grande prazer da leitura e o interesse da informação transmitida. O que me importa aqui é que as reportagens-ensaios de "Queda Livre" propõem uma solução exemplar para a nossa perplexidade moral diante da valorização abstrata da experiência. Eis como.
No relato de Otavio, cada vivência é narrada a partir de uma falha do protagonista: o medo do avião e das alturas para o pára-quedista; a inquietação com a malária e com os efeitos do tóxico para quem experimenta o Santo Daime na sede do culto, na Amazônia; a fobia dos espaços fechados para o submarinista; a ânsia e o receio do ridículo para o ator improvisado; o silêncio divino e as bolhas no pé para o peregrino de Santiago de Compostela; o pudor e a dor da rejeição para o amante ocasional no universo do suingue; enfim, a tentação do suicídio para o samaritano que, durante um ano, no Centro de Valorização da Vida, recebe os apelos telefônicos dos desesperados.
O leitor, mesmo que não compartilhe as vivências narradas, se reconhece sempre no medo, no pudor e na ironia do protagonista que sabe rir de si mesmo. As experiências adquirem, assim, um valor propriamente moral não por serem "de risco", mas porque seu relato, longe de dividir o mundo entre adeptos e ignaros, revela sobretudo a humanidade do protagonista. E, nessa humanidade, damos de cara com a nossa. Pois nem todos pulamos de pára-quedas, mas todos vamos pela vida, de experiência em experiência, com o coração na mão, em queda livre.
É a mesma atitude que faz a extraordinária qualidade (literária e moral) de "Tom Jones" e "Tristram Shandy": a "formação" do protagonista vale como auxílio para a nossa porque, lendo, reconhecemo-nos humanos nas mesmas tragicômicas falhas.
quinta-feira, 8 de janeiro de 2004
Os feridos das festas
No dia 1º de janeiro, os prontos-socorros recebem sempre alguma vítima dos fogos de artifício do Réveillon.
Retomando o trabalho depois dos feriados, os psicoterapeutas e os psicanalistas também costumam atender os feridos da estação. São as vítimas de rojões tão explosivos quanto os outros: os encontros de família das festas de fim de ano.
Existe uma explicação básica para essa patologia: o Natal, em particular, idealiza a reunião de família a tal ponto que uma decepção é dificilmente evitável.
Desta vez, no meu consultório, compareceram, no mesmo dia, três adultos (entre 40 e 65 anos) acidentados no encontro com os pais idosos. Talvez, quando filhos e filhas já encaminhados na vida se sentam à mesa natalina com seus pais, uma eventual insatisfação seja mais provável e aguda, pois todos esperam viver um momento perfeito, que constitua uma lembrança, uma última foto feliz.
Seja como for, fiquei com as reflexões que seguem.
É raríssimo que os pais não transmitam nada a seus filhos. Mesmo quando um filho ou uma filha acreditam que inventaram sua vida a partir do zero, sem amparo e sem nenhuma herança material ou simbólica, descobre-se que existiu um legado. Pode ser, aparentemente, pouca coisa: um exemplo de coragem ou de humildade diante de adversidades e sofrimentos, uma palavra que manifestou uma ambição frustrada e deixada para os filhos e as filhas cumprirem.
Ora, quando paira no ar a sensação de que os pais não permanecerão para sempre na Terra, é frequente que o encontro de Natal seja assombrado pela tentação de fechar o balanço dessa transmissão (isso vale sobretudo se o Natal for a ocasião rara, anual, por exemplo, de uma reunião de toda a família). Como na famosa parábola, os pais idosos querem verificar se os filhos fizeram bom uso da herança. É uma contabilidade silenciosa, implícita em pequenas expressões de aprovação ou reprovação, mas facilmente explosiva.
Os pais querem consolar-se com a constatação de que imprimiram uma marca nos filhos e confirmar que foram indispensáveis. Mas é comum que seu legado seja ambíguo. Por exemplo, a herança que um pai destina a seus filhos é uma pequena loja que ele consolidou ao longo de 50 anos de esforços, mas, na verdade, seu sonho era mandar o negócio para o beleléu e sair velejando pelo mundo. A contragosto, a filha ficou com o comércio de família, convencida de satisfazer o desejo paterno, mas, no jantar natalino, constata que o preferido é o irmão, o qual leva uma vida de surfista pelas praias australianas. Quem ficou com a verdadeira herança? Quem é o conforto do pai no fim do dia? Difícil dizer.
Além disso, os filhos têm uma relação incerta com o legado que recebem. Receiam que, reconhecendo sua dívida, eles sacrificariam sua autonomia, ou melhor, comprometeriam a imagem de si mesmos (autônomos) que eles gostam de projetar nas telas de seu cinema de bolso.
Tudo isso não passa de ordinária administração. A pequena série de acidentados deste começo de ano trouxe algo mais. Nas cenas que me foram relatadas, todas emocional ou fisicamente violentas, manifestava-se uma espécie de rancor dos pais. O estranho é que em nenhum dos casos dava para dizer que os filhos não tivessem aceitado e hasteado a tocha de seus genitores, de uma maneira ou de outra. A raiva manifestada pelos pais parecia abstrata, sem objeto, e culminava regularmente com a promessa de "deserdar" filhas ou filhos. As ameaças não seriam levadas à frente; de qualquer forma, nada poderia abolir o legado simbólico. Também era óbvio que essas intenções dos pais, furibundas e pouco justificadas, durariam apenas um dia.
Mesmo assim, elas eram reveladoras: pareciam ser o modelo do comportamento de Deus com Jó, na Bíblia (para não falar da loucura do rei Lear de Shakespeare). Um belo dia, por provocação satânica, Deus suspeitou que Jó fosse devoto só pelos benefícios que o Criador lhe outorgava. E lhe tirou tudo. Claro, a desculpa era que convinha verificar a sinceridade da fé e da piedade de Jó.
Mas suspeito que, no caso dos pais idosos, não se trate de verificar se os filhos repudiados continuariam amando seus genitores. Há, na fantasia de deserdar no fim da vida, um verdadeiro ciúme de quem sobreviverá. A dificuldade de lidar com a hora dos adeus pode nos entregar a uma espécie de ódio por aqueles que ficarão mais um tempo. A ponto, aliás, de esquecer que eles são a única e tênue garantia de alguma permanência nossa.
Esse sentimento pouco nobre existe sempre nos pais e, pudicamente esquecido, é uma das causas de muitos desentendimentos entre gerações. No ocaso da vida, ele se torna mais furioso.
Os filhos, em geral, são menos pacientes que Jó. Descobrem-se odiados, e só lhes sobra desejar que os pais saiam mesmo de cena e os deixem viver em paz. Assim, tristemente, ao redor da mesa natalina, cada geração, por um instante, pode desejar a morte da outra. É paradoxal, pois cada geração deve à outra sua vida: os pais devem aos filhos sua possível continuidade no mundo, e os filhos devem aos pais, bem ou mal, o que eles são.
Nas próprias palavras de um dos feridos das festas, a verdadeira punição imposta pela ameaça ciumenta dos pais não é o repúdio, mas a reação de ódio que ele provoca nos filhos. Pois essa reação os priva de uma última chance de amar seus pais.
Moral da história: para sermos pais, importa aceitar que somos mortais.
Retomando o trabalho depois dos feriados, os psicoterapeutas e os psicanalistas também costumam atender os feridos da estação. São as vítimas de rojões tão explosivos quanto os outros: os encontros de família das festas de fim de ano.
Existe uma explicação básica para essa patologia: o Natal, em particular, idealiza a reunião de família a tal ponto que uma decepção é dificilmente evitável.
Desta vez, no meu consultório, compareceram, no mesmo dia, três adultos (entre 40 e 65 anos) acidentados no encontro com os pais idosos. Talvez, quando filhos e filhas já encaminhados na vida se sentam à mesa natalina com seus pais, uma eventual insatisfação seja mais provável e aguda, pois todos esperam viver um momento perfeito, que constitua uma lembrança, uma última foto feliz.
Seja como for, fiquei com as reflexões que seguem.
É raríssimo que os pais não transmitam nada a seus filhos. Mesmo quando um filho ou uma filha acreditam que inventaram sua vida a partir do zero, sem amparo e sem nenhuma herança material ou simbólica, descobre-se que existiu um legado. Pode ser, aparentemente, pouca coisa: um exemplo de coragem ou de humildade diante de adversidades e sofrimentos, uma palavra que manifestou uma ambição frustrada e deixada para os filhos e as filhas cumprirem.
Ora, quando paira no ar a sensação de que os pais não permanecerão para sempre na Terra, é frequente que o encontro de Natal seja assombrado pela tentação de fechar o balanço dessa transmissão (isso vale sobretudo se o Natal for a ocasião rara, anual, por exemplo, de uma reunião de toda a família). Como na famosa parábola, os pais idosos querem verificar se os filhos fizeram bom uso da herança. É uma contabilidade silenciosa, implícita em pequenas expressões de aprovação ou reprovação, mas facilmente explosiva.
Os pais querem consolar-se com a constatação de que imprimiram uma marca nos filhos e confirmar que foram indispensáveis. Mas é comum que seu legado seja ambíguo. Por exemplo, a herança que um pai destina a seus filhos é uma pequena loja que ele consolidou ao longo de 50 anos de esforços, mas, na verdade, seu sonho era mandar o negócio para o beleléu e sair velejando pelo mundo. A contragosto, a filha ficou com o comércio de família, convencida de satisfazer o desejo paterno, mas, no jantar natalino, constata que o preferido é o irmão, o qual leva uma vida de surfista pelas praias australianas. Quem ficou com a verdadeira herança? Quem é o conforto do pai no fim do dia? Difícil dizer.
Além disso, os filhos têm uma relação incerta com o legado que recebem. Receiam que, reconhecendo sua dívida, eles sacrificariam sua autonomia, ou melhor, comprometeriam a imagem de si mesmos (autônomos) que eles gostam de projetar nas telas de seu cinema de bolso.
Tudo isso não passa de ordinária administração. A pequena série de acidentados deste começo de ano trouxe algo mais. Nas cenas que me foram relatadas, todas emocional ou fisicamente violentas, manifestava-se uma espécie de rancor dos pais. O estranho é que em nenhum dos casos dava para dizer que os filhos não tivessem aceitado e hasteado a tocha de seus genitores, de uma maneira ou de outra. A raiva manifestada pelos pais parecia abstrata, sem objeto, e culminava regularmente com a promessa de "deserdar" filhas ou filhos. As ameaças não seriam levadas à frente; de qualquer forma, nada poderia abolir o legado simbólico. Também era óbvio que essas intenções dos pais, furibundas e pouco justificadas, durariam apenas um dia.
Mesmo assim, elas eram reveladoras: pareciam ser o modelo do comportamento de Deus com Jó, na Bíblia (para não falar da loucura do rei Lear de Shakespeare). Um belo dia, por provocação satânica, Deus suspeitou que Jó fosse devoto só pelos benefícios que o Criador lhe outorgava. E lhe tirou tudo. Claro, a desculpa era que convinha verificar a sinceridade da fé e da piedade de Jó.
Mas suspeito que, no caso dos pais idosos, não se trate de verificar se os filhos repudiados continuariam amando seus genitores. Há, na fantasia de deserdar no fim da vida, um verdadeiro ciúme de quem sobreviverá. A dificuldade de lidar com a hora dos adeus pode nos entregar a uma espécie de ódio por aqueles que ficarão mais um tempo. A ponto, aliás, de esquecer que eles são a única e tênue garantia de alguma permanência nossa.
Esse sentimento pouco nobre existe sempre nos pais e, pudicamente esquecido, é uma das causas de muitos desentendimentos entre gerações. No ocaso da vida, ele se torna mais furioso.
Os filhos, em geral, são menos pacientes que Jó. Descobrem-se odiados, e só lhes sobra desejar que os pais saiam mesmo de cena e os deixem viver em paz. Assim, tristemente, ao redor da mesa natalina, cada geração, por um instante, pode desejar a morte da outra. É paradoxal, pois cada geração deve à outra sua vida: os pais devem aos filhos sua possível continuidade no mundo, e os filhos devem aos pais, bem ou mal, o que eles são.
Nas próprias palavras de um dos feridos das festas, a verdadeira punição imposta pela ameaça ciumenta dos pais não é o repúdio, mas a reação de ódio que ele provoca nos filhos. Pois essa reação os priva de uma última chance de amar seus pais.
Moral da história: para sermos pais, importa aceitar que somos mortais.
quinta-feira, 1 de janeiro de 2004
Adeus, ano velho
Quando era moleque, em Milão, nos anos 50 e ainda no começo dos anos 60, era perigoso passear pelas ruas perto da meia-noite do dia 31 de dezembro. É que, apesar de repetidas exortações e ameaças de polícia e bombeiros, permanecia em vigor um antigo costume: na hora da passagem do ano, jogava-se louça pela janela.
Não era de todo raro, portanto, que chovessem pratos e sopeiras. As pessoas guardavam, durante o ano, os restos de serviços incompletos, as terrinas rachadas e as vasilhas lascadas, para que se espatifassem festivamente na calçada na noite de são Silvestre.
Era um jeito de declarar que a gente fazia tábula rasa, recomeçava do zero. Nada de muito original nisso; em quase todas as culturas, existiram e existem festividades da passagem de ano que celebram a esperança de um início radical.
Originalmente, aliás, as festas romanas das Saturnalia e Bacanalia (antepassadas do Carnaval) aconteciam nesta época: eram festas de inversão (ou seja, o mestre se fazia de escravo e o escravo podia se fazer de mestre) e manifestavam uma espécie de volta à confusão inicial, a partir da qual tudo seria de novo possível. Em 336 de nossa era, a cristandade decidiu colocar a celebração do Natal na mesma época do ano, para que a chegada do Messias valesse como o símbolo definitivo da renovação da vida.
Mas a celebração moderna, a nossa, tem um sentido, ou melhor, um alcance um pouco diferente do da antiga.
O melhor guia, nessa matéria, é a pequena obra-prima de Mircea Eliade, "O Mito do Eterno Retorno", livro escrito logo depois da Segunda Guerra Mundial (versão recente em português pelas Edições 70), uma leitura perfeita para o começo do ano.
Eliade opõe a modernidade às sociedades tradicionais. Nestas, a experiência do tempo é feita de ciclos que se repetem, e os acontecimentos têm sentido porque aparecem como variantes de mitos conhecidos por todos. A guerra, a doença, a morte, as separações e as perdas são tão explicáveis quanto as estações do ano. O homem tradicional carece de futuro, não se define por seus projetos, mas, em compensação, pode, de vez em quando, jogar alegremente seu passado pela janela, pois não é o passado, mas a repetição que dá sentido à sua vida.
Nós, modernos, ao contrário, acreditamos na mudança, na novidade, na história. Vivemos o tempo como teatro de uma liberdade potencialmente infinita. Não acreditamos em ciclos inelutáveis, mas num progresso que deveríamos aos nossos próprios atos.
Essa suposta liberdade encontra (ao menos) dois limites.
Primeiro, obviamente, existem os outros. Escreve Eliade: "A liberdade de fazer a história, privilégio conclamado do homem moderno, é um engano para quase toda a espécie humana. Os homens, de fato, são livres para escolher entre duas posições: opor-se à história que é feita por uma pequena minoria (e, nesse caso, exercer a liberdade de optar entre o suicídio e a deportação) ou então refugiar-se numa existência subuma na ou na fuga". Embora os horrores da Segunda Guerra Mundial se projetem sobre as páginas de Eliade, há de se convir que seu texto não está muito longe de nossa realidade.
Mas o que mais nos interessa aqui é o outro problema da pretensa liberdade moderna. A história não é apenas o resultado de nossas ações; em grande parte, ela "se faz sozinha, como resultado das sementes lançadas pelos atos do passado".
O passado assombra nossa liberdade; é sempre ele que coloca limites aos sonhos futuros. O tempo, para nós, não é uma repetição que recomeça periodicamente como um ciclo, mas uma linha, um percurso. Sua continuidade acarreta uma consequência: avançamos carregando o peso do que já foi. Viver é construir um passado que decide nossos futuros possíveis.
Preferiríamos esquecer. E não é só no fim de ano que acreditamos poder jogar a louça velha pela janela. O adolescente imagina que, saindo de casa, começará uma vida nova, sem as imposições de sua antiga existência de filho ou de filha. O adulto imagina que, separando-se do parceiro ou da parceira, criará novas relações, diferentes, prazerosas e respeitosas do outro. Muitos imaginam que, ao se mudarem para uma cidade distante ou para outro país onde ninguém os conheça, se reinventarão completamente, aproveitando toda a sua sabedoria acumulada. O lema é : "Desta vez, será diferente".
Horácio, que talvez seja o mais moderno dos poetas romanos, já dizia que "os que atravessam o mar mudam de céu, não de alma". Seu verso vale para qualquer mudança.
A fé ilusória nos novos começos, atributo da modernidade, alimentou (e ainda alimenta) cada tipo de sonho, desde as utopias sociais do século 19 até o mito do "self-made man".
Na aurora do século 20, a psicanálise, estraga-prazeres, veio lembrar que viajamos sempre com mais malas do que é preciso e que não adianta jogá-las pela janela. Para diminuir o excesso de peso, melhor abri-las, repertoriar o conteúdo e decidir o que fazer com ele.
Na passagem de ano, em suma, a dificuldade está em lidar com os restos do ano que acaba (e dos que o antecederam). Por desgastados e puídos que sejam, não são tirados de nossas costas pela simples defenestração.
A todos os que querem mudança, desejo um "adeus, ano velho" feliz e eficaz.
Não era de todo raro, portanto, que chovessem pratos e sopeiras. As pessoas guardavam, durante o ano, os restos de serviços incompletos, as terrinas rachadas e as vasilhas lascadas, para que se espatifassem festivamente na calçada na noite de são Silvestre.
Era um jeito de declarar que a gente fazia tábula rasa, recomeçava do zero. Nada de muito original nisso; em quase todas as culturas, existiram e existem festividades da passagem de ano que celebram a esperança de um início radical.
Originalmente, aliás, as festas romanas das Saturnalia e Bacanalia (antepassadas do Carnaval) aconteciam nesta época: eram festas de inversão (ou seja, o mestre se fazia de escravo e o escravo podia se fazer de mestre) e manifestavam uma espécie de volta à confusão inicial, a partir da qual tudo seria de novo possível. Em 336 de nossa era, a cristandade decidiu colocar a celebração do Natal na mesma época do ano, para que a chegada do Messias valesse como o símbolo definitivo da renovação da vida.
Mas a celebração moderna, a nossa, tem um sentido, ou melhor, um alcance um pouco diferente do da antiga.
O melhor guia, nessa matéria, é a pequena obra-prima de Mircea Eliade, "O Mito do Eterno Retorno", livro escrito logo depois da Segunda Guerra Mundial (versão recente em português pelas Edições 70), uma leitura perfeita para o começo do ano.
Eliade opõe a modernidade às sociedades tradicionais. Nestas, a experiência do tempo é feita de ciclos que se repetem, e os acontecimentos têm sentido porque aparecem como variantes de mitos conhecidos por todos. A guerra, a doença, a morte, as separações e as perdas são tão explicáveis quanto as estações do ano. O homem tradicional carece de futuro, não se define por seus projetos, mas, em compensação, pode, de vez em quando, jogar alegremente seu passado pela janela, pois não é o passado, mas a repetição que dá sentido à sua vida.
Nós, modernos, ao contrário, acreditamos na mudança, na novidade, na história. Vivemos o tempo como teatro de uma liberdade potencialmente infinita. Não acreditamos em ciclos inelutáveis, mas num progresso que deveríamos aos nossos próprios atos.
Essa suposta liberdade encontra (ao menos) dois limites.
Primeiro, obviamente, existem os outros. Escreve Eliade: "A liberdade de fazer a história, privilégio conclamado do homem moderno, é um engano para quase toda a espécie humana. Os homens, de fato, são livres para escolher entre duas posições: opor-se à história que é feita por uma pequena minoria (e, nesse caso, exercer a liberdade de optar entre o suicídio e a deportação) ou então refugiar-se numa existência subuma na ou na fuga". Embora os horrores da Segunda Guerra Mundial se projetem sobre as páginas de Eliade, há de se convir que seu texto não está muito longe de nossa realidade.
Mas o que mais nos interessa aqui é o outro problema da pretensa liberdade moderna. A história não é apenas o resultado de nossas ações; em grande parte, ela "se faz sozinha, como resultado das sementes lançadas pelos atos do passado".
O passado assombra nossa liberdade; é sempre ele que coloca limites aos sonhos futuros. O tempo, para nós, não é uma repetição que recomeça periodicamente como um ciclo, mas uma linha, um percurso. Sua continuidade acarreta uma consequência: avançamos carregando o peso do que já foi. Viver é construir um passado que decide nossos futuros possíveis.
Preferiríamos esquecer. E não é só no fim de ano que acreditamos poder jogar a louça velha pela janela. O adolescente imagina que, saindo de casa, começará uma vida nova, sem as imposições de sua antiga existência de filho ou de filha. O adulto imagina que, separando-se do parceiro ou da parceira, criará novas relações, diferentes, prazerosas e respeitosas do outro. Muitos imaginam que, ao se mudarem para uma cidade distante ou para outro país onde ninguém os conheça, se reinventarão completamente, aproveitando toda a sua sabedoria acumulada. O lema é : "Desta vez, será diferente".
Horácio, que talvez seja o mais moderno dos poetas romanos, já dizia que "os que atravessam o mar mudam de céu, não de alma". Seu verso vale para qualquer mudança.
A fé ilusória nos novos começos, atributo da modernidade, alimentou (e ainda alimenta) cada tipo de sonho, desde as utopias sociais do século 19 até o mito do "self-made man".
Na aurora do século 20, a psicanálise, estraga-prazeres, veio lembrar que viajamos sempre com mais malas do que é preciso e que não adianta jogá-las pela janela. Para diminuir o excesso de peso, melhor abri-las, repertoriar o conteúdo e decidir o que fazer com ele.
Na passagem de ano, em suma, a dificuldade está em lidar com os restos do ano que acaba (e dos que o antecederam). Por desgastados e puídos que sejam, não são tirados de nossas costas pela simples defenestração.
A todos os que querem mudança, desejo um "adeus, ano velho" feliz e eficaz.
domingo, 28 de dezembro de 2003
O governo somos nós
Acabou o primeiro ano do novo governo, e quase ninguém está satisfeito com a situação do país. No entanto, fato curioso, o governo mantém o mesmo índice de aprovação do primeiro trimestre.
Certo, a gestão é criticada, mas a forma básica de grande parte das críticas recorrentes é peculiar. Numa estranha frente unida (que vai da esquerda militante até a direita conservadora, incluindo os que aprovam a gestão), muitos acusam o governo de não fazer o que ele se propunha fazer. Ou seja, apontando contradições entre o espírito do projeto e a realidade da política econômica e social, essas críticas não adotam a forma usual: "Vocês não fazem o que nós gostaríamos". Mas afirmam: "Vocês não fazem o que vocês mesmos gostariam".
O sentido das queixas é diferente segundo a proveniência. Por exemplo, a extrema esquerda exige uma fidelidade absoluta à promessa de justiça social, a esquerda moderada pede apenas um maior respeito dessa promessa na hora dos compromissos necessários e os conservadores agitam a contradição entre promessa e realidade para desacreditar o governo ("Eles enganaram vocês: dobram-se às necessidades do neoliberalismo pior que a gente e distribuem ilusões como pães quentes"). Mas, além das diferenças, a forma é a mesma. O governo não é acusado de defender interesses escusos que tornariam nossa vida miserável.
Ele é acusado de ser, de alguma forma, infiel a si mesmo. Nisso, as ditas críticas ao governo federal se parecem com nossa autocrítica mais banal.
Afinal, somos constantemente divididos entre uma aventurosa vontade de mudança e escolhas conformistas que são as nossas, mas que nos frustram e com as quais não concordamos. Ou, então, entre grandes princípios nos quais acreditamos firmemente e comportamentos que adotamos (com uma certa vergonha) para proteger nossos interesses.
Quero justiça social já, mas não sou nenhum São Francisco, e a simples redistribuição não resolveria nada. Quero reforma agrária já, mas meu sítio é produtivo e, de qualquer forma, não basta assentar famílias; seria preciso criar uma rede de cooperativas, e isso é complicado.
Quero uma sociedade igualitária, mas três salários mínimos para a faxineira não tem como; se eu for obrigado a dispensar seus serviços, não vai ser pior?
Para explicar a dissonância entre nossos anseios e nossa realidade, acusamos a dureza impiedosa do mundo: gostaríamos de ser generosos e revolucionários, mas, se fôssemos, a realidade nos atropelaria. A desculpa não é maquiavélica. De fato, o mundo não é mole: ele nos força a desistir do que nos parece certo e racional em favor do que é apenas razoável.
Em geral, aguentamos os compromissos aos quais nos resignamos graças a um reforço retórico, a uma dose extra de declarações de intenções e de princípios.
Somos todos (ou quase) José Dirceu ou Palocci na hora dos apertos do fim do mês. Somos todos (ou quase) Lula na hora de declarar guerra à fome ou ao desemprego e de chorar evocando o homem do lixão que come melancia descartada.
Exatamente como o governo, quando apresentamos nossa face ao mundo (e a nós mesmos), esquecemos nosso pragmatismo (ele nos é imposto, não é bem "nosso") e nos imaginamos e proclamamos grandiosamente generosos, embora impedidos.
A oscilação entre entusiasmos revoltados e inércia conformista é uma herança de nossa adolescência. Tivemos que decidir (e talvez estejamos eternamente decidindo) se, para nos tornarmos adultos, é melhor imitar os genitores, sacrificando nossa individualidade, ou contrariá-los, encontrando a prova de nossa autonomia na decepção e no desespero dos pais.
A solução mais popular consiste em tomar o caminho de uma "normalidade" que nos garante algum conforto e que corrigimos com sobressaltos de rebeldia espetacular.
Por exemplo, estudo, sei lá, direito constitucional, mas, à noite, saio na balada com os Gaddafis da vida. Por mais que estejamos infelizes com a situação, o governo atual nos satisfaz, não por suas realizações, mas porque ele encena nossas próprias contradições.
É um conforto constatar que as mulheres e os homens que elegemos se dobram às mesmas necessidades que nós acusamos de frear nossos impulsos generosos e libertários.
Claro, a contradição não nos deixa tranquilos. Na hora dos compromissos, somos atormentados pela voz da consciência. Talvez por isso surja uma simpatia quase unânime (inclusive nas fileiras da direita) pelos excluídos e demissionários do PT.
Aproveitamo-nos dessa ocasião para tomar as dores de nossa parte rebelde. Podemos torcer por nossas Heloísas Helenas e nossos Gabeiras internos sem risco algum, pois o governo (e não nós) se encarrega de silenciá-los e, portanto, leva a culpa.
A mesmice social-democrata não satisfazia nosso anseios radicais de mudança e de justiça. Um regime que seguisse só esses anseios seria provavelmente catastrófico.
O governo do PT inventa uma nova fórmula, adequada à nossa divisão subjetiva: a social democracia neoliberal com retórica radical da esperança.
Estamos insatisfeitos com o governo assim como estamos insatisfeitos com nossas próprias contradições. E o governo está próximo do povo como nunca, pois, pela felicidade da nação, ele é nosso retrato.
Certo, a gestão é criticada, mas a forma básica de grande parte das críticas recorrentes é peculiar. Numa estranha frente unida (que vai da esquerda militante até a direita conservadora, incluindo os que aprovam a gestão), muitos acusam o governo de não fazer o que ele se propunha fazer. Ou seja, apontando contradições entre o espírito do projeto e a realidade da política econômica e social, essas críticas não adotam a forma usual: "Vocês não fazem o que nós gostaríamos". Mas afirmam: "Vocês não fazem o que vocês mesmos gostariam".
O sentido das queixas é diferente segundo a proveniência. Por exemplo, a extrema esquerda exige uma fidelidade absoluta à promessa de justiça social, a esquerda moderada pede apenas um maior respeito dessa promessa na hora dos compromissos necessários e os conservadores agitam a contradição entre promessa e realidade para desacreditar o governo ("Eles enganaram vocês: dobram-se às necessidades do neoliberalismo pior que a gente e distribuem ilusões como pães quentes"). Mas, além das diferenças, a forma é a mesma. O governo não é acusado de defender interesses escusos que tornariam nossa vida miserável.
Ele é acusado de ser, de alguma forma, infiel a si mesmo. Nisso, as ditas críticas ao governo federal se parecem com nossa autocrítica mais banal.
Afinal, somos constantemente divididos entre uma aventurosa vontade de mudança e escolhas conformistas que são as nossas, mas que nos frustram e com as quais não concordamos. Ou, então, entre grandes princípios nos quais acreditamos firmemente e comportamentos que adotamos (com uma certa vergonha) para proteger nossos interesses.
Quero justiça social já, mas não sou nenhum São Francisco, e a simples redistribuição não resolveria nada. Quero reforma agrária já, mas meu sítio é produtivo e, de qualquer forma, não basta assentar famílias; seria preciso criar uma rede de cooperativas, e isso é complicado.
Quero uma sociedade igualitária, mas três salários mínimos para a faxineira não tem como; se eu for obrigado a dispensar seus serviços, não vai ser pior?
Para explicar a dissonância entre nossos anseios e nossa realidade, acusamos a dureza impiedosa do mundo: gostaríamos de ser generosos e revolucionários, mas, se fôssemos, a realidade nos atropelaria. A desculpa não é maquiavélica. De fato, o mundo não é mole: ele nos força a desistir do que nos parece certo e racional em favor do que é apenas razoável.
Em geral, aguentamos os compromissos aos quais nos resignamos graças a um reforço retórico, a uma dose extra de declarações de intenções e de princípios.
Somos todos (ou quase) José Dirceu ou Palocci na hora dos apertos do fim do mês. Somos todos (ou quase) Lula na hora de declarar guerra à fome ou ao desemprego e de chorar evocando o homem do lixão que come melancia descartada.
Exatamente como o governo, quando apresentamos nossa face ao mundo (e a nós mesmos), esquecemos nosso pragmatismo (ele nos é imposto, não é bem "nosso") e nos imaginamos e proclamamos grandiosamente generosos, embora impedidos.
A oscilação entre entusiasmos revoltados e inércia conformista é uma herança de nossa adolescência. Tivemos que decidir (e talvez estejamos eternamente decidindo) se, para nos tornarmos adultos, é melhor imitar os genitores, sacrificando nossa individualidade, ou contrariá-los, encontrando a prova de nossa autonomia na decepção e no desespero dos pais.
A solução mais popular consiste em tomar o caminho de uma "normalidade" que nos garante algum conforto e que corrigimos com sobressaltos de rebeldia espetacular.
Por exemplo, estudo, sei lá, direito constitucional, mas, à noite, saio na balada com os Gaddafis da vida. Por mais que estejamos infelizes com a situação, o governo atual nos satisfaz, não por suas realizações, mas porque ele encena nossas próprias contradições.
É um conforto constatar que as mulheres e os homens que elegemos se dobram às mesmas necessidades que nós acusamos de frear nossos impulsos generosos e libertários.
Claro, a contradição não nos deixa tranquilos. Na hora dos compromissos, somos atormentados pela voz da consciência. Talvez por isso surja uma simpatia quase unânime (inclusive nas fileiras da direita) pelos excluídos e demissionários do PT.
Aproveitamo-nos dessa ocasião para tomar as dores de nossa parte rebelde. Podemos torcer por nossas Heloísas Helenas e nossos Gabeiras internos sem risco algum, pois o governo (e não nós) se encarrega de silenciá-los e, portanto, leva a culpa.
A mesmice social-democrata não satisfazia nosso anseios radicais de mudança e de justiça. Um regime que seguisse só esses anseios seria provavelmente catastrófico.
O governo do PT inventa uma nova fórmula, adequada à nossa divisão subjetiva: a social democracia neoliberal com retórica radical da esperança.
Estamos insatisfeitos com o governo assim como estamos insatisfeitos com nossas próprias contradições. E o governo está próximo do povo como nunca, pois, pela felicidade da nação, ele é nosso retrato.
quinta-feira, 25 de dezembro de 2003
É Natal
Os primeiros Natais de minha infância foram momentos encantados. Ou, ao menos, é assim que me lembro deles.
No dia 24, de tarde, cada escrivaninha e console da casa era levado para a sala de jantar e servia para encompridar a mesa, de maneira a acomodar os 20 e tantos familiares e amigos de sempre. Logo começava a preparação do peixe. Meu irmão e eu ajudávamos meu avô na tarefa selvagem de tirar a pele das enguias, que eram o prato tradicional e que nenhum de nós gostava de comer. Antes de ir para a cama, nós, as crianças, preparávamos, perto da árvore, uma mesinha: um copo de vinho branco, um prato com uma fatia de bolo e um pequeno guardanapo. No chão da entrada, colocávamos uma bacia com água e outra com duas ou três cenouras. O bolo e o vinho eram para o menino Jesus. A água e as cenouras eram para a mula que o carregava.
Acordávamos de madrugada, pela ânsia de ver os presentes e de constatar a mágica passagem do menino Jesus. A casa estava deserta, os presentes brilhavam embaixo da árvore, o copo de vinho tinha sido em parte (só em parte) bebido, a fatia de bolo tinha sido mordida, assim como as cenouras. Havia, sempre, em algum lugar do corredor, uma poça: a mula, coitadinha, tinha feito xixi. Da porta de entrada até a árvore, espalhava-se um rasto de folhas e pétalas de flores, que, aparentemente, o menino Jesus deixava atrás de si, por onde passasse.
Não sei por que, na nossa família, era o menino Jesus, e não Papai Noel, que trazia os presentes. A coisa era ainda mais curiosa por meu pai ser declarada e ferozmente ateu. E minha mãe o acompanhava.
Menino Jesus ou não, era bom fazer de conta: o ritual era um segredo de família que celebrava o milagre de estarmos juntos. Também era um alívio constatar que nem todos os presentes vinham de meus pais. E era gostoso acreditar numa certa benevolência do mundo ou de seu criador: havia ao menos um dia no ano em que, indo para a cama cedo e forçando-se a fechar os olhos, alguém, no meio da noite, faria o necessário para que acordássemos felizes.
Houve Natais em que o encanto se perdeu. Num deles, bem perto da meia-noite, morreu de repente o pai de meu melhor amigo. Meu pai saiu correndo com sua bolsa de médico; a festa parou. Nós descobrimos que, às vezes, não só a mula, mas o próprio menino Jesus se esquecia (de alguém, no caso). Os presentes, na manhã seguinte, estavam lá; mas eu não sabia o que fazer com eles. Também estava lá Alessandro, meu amigo do peito, órfão.
E houve outros Natais em que explodiram brigas de família incompreensíveis (para nós). Um tio que saiu batendo a porta porque não gostou do lugar que sua mulher ocupava na mesa ou uma nora que não se dava com a sogra. Esperávamos demais e, à força de querer (e simular) harmonia para a família e o mundo inteiro, vivíamos decepções fellinianas se algum detalhe atrapalhasse o cartão-postal natalino.
Mais tarde, chegaram os anti-Natais da adolescência. Eram proclamações indignadas contra a família. Valia qualquer coisa para contrariar o espírito dos Natais da infância: Natal numa boate? Natal num prostíbulo? Natal jogando pôquer num boteco?
Ou, então, eram proclamações políticas: Natal numa célula de militantes, Natal com amigos e companheiros, sem festa, sem árvore e cheio de conversas sobre as armadilhas "alienantes" do consumo.
Alguns anos atrás, no dia 25, acordei muito cedo, embora soubesse que ninguém viera, no meio da noite, depositar presentes embaixo da árvore. O apartamento estava deserto, todos dormiam ainda. Atravessei a sala assim como costumo dormir, de camiseta, sem pijama. Olhei com carinho para os restos do jantar da noite anterior e liguei a máquina do café. Não sei por que, achei graça enfiar na cabeça um chapéu de Papai Noel que estava em cima da mesa. Logo fui buscar o jornal na porta de casa, caso ele já tivesse chegado.
Por precaução pudica e por preguiça de vestir uma calça ou mesmo uma cueca, tentei inventar um jeito de apanhar o jornal sem impor minha nudez aos (improváveis) vizinhos que estivessem circulando pelo prédio às 6h do dia de Natal. Ajoelhado, abri a porta e estendi o braço; o jornal estava lá, mas longe demais. Insinuei o ombro na abertura, mas não bastou. Avancei mais, sempre ajoelhado, até que, empurrado pela própria porta, que é comandada por uma mola que a fecha automaticamente, estava mais fora do que dentro do apartamento. Por sorte, o batente não fechou atrás de mim. No instante em que, enfim, coloquei a mão no jornal, escutei um barulho. Levantei os olhos: bem na minha frente, um vizinho, também ajoelhado e seminu, era vítima da mesma manobra. Ficamos imóveis um longo momento, até que, de jornal na mão, desejei-lhe "feliz Natal" e recuei.
Cinco minutos depois, sentado contra a porta fechada do meu apartamento, ainda estava rindo, constatando que, durante esse estranho encontro, ficara não só meio nu, de camiseta, mas também de chapéu de Papai Noel.
É um bom retrato de meus Natais de hoje. O chapéu representa uma certa fé no ritual que afirma a permanência dos afetos familiares e das amizades, mas sem esquecer que o espírito de Natal não ganha das notícias do dia (o jornal na mão) nem dos desejos que nascem abaixo da cintura (às vezes estamos sem cueca).
Feliz Natal a todos.
No dia 24, de tarde, cada escrivaninha e console da casa era levado para a sala de jantar e servia para encompridar a mesa, de maneira a acomodar os 20 e tantos familiares e amigos de sempre. Logo começava a preparação do peixe. Meu irmão e eu ajudávamos meu avô na tarefa selvagem de tirar a pele das enguias, que eram o prato tradicional e que nenhum de nós gostava de comer. Antes de ir para a cama, nós, as crianças, preparávamos, perto da árvore, uma mesinha: um copo de vinho branco, um prato com uma fatia de bolo e um pequeno guardanapo. No chão da entrada, colocávamos uma bacia com água e outra com duas ou três cenouras. O bolo e o vinho eram para o menino Jesus. A água e as cenouras eram para a mula que o carregava.
Acordávamos de madrugada, pela ânsia de ver os presentes e de constatar a mágica passagem do menino Jesus. A casa estava deserta, os presentes brilhavam embaixo da árvore, o copo de vinho tinha sido em parte (só em parte) bebido, a fatia de bolo tinha sido mordida, assim como as cenouras. Havia, sempre, em algum lugar do corredor, uma poça: a mula, coitadinha, tinha feito xixi. Da porta de entrada até a árvore, espalhava-se um rasto de folhas e pétalas de flores, que, aparentemente, o menino Jesus deixava atrás de si, por onde passasse.
Não sei por que, na nossa família, era o menino Jesus, e não Papai Noel, que trazia os presentes. A coisa era ainda mais curiosa por meu pai ser declarada e ferozmente ateu. E minha mãe o acompanhava.
Menino Jesus ou não, era bom fazer de conta: o ritual era um segredo de família que celebrava o milagre de estarmos juntos. Também era um alívio constatar que nem todos os presentes vinham de meus pais. E era gostoso acreditar numa certa benevolência do mundo ou de seu criador: havia ao menos um dia no ano em que, indo para a cama cedo e forçando-se a fechar os olhos, alguém, no meio da noite, faria o necessário para que acordássemos felizes.
Houve Natais em que o encanto se perdeu. Num deles, bem perto da meia-noite, morreu de repente o pai de meu melhor amigo. Meu pai saiu correndo com sua bolsa de médico; a festa parou. Nós descobrimos que, às vezes, não só a mula, mas o próprio menino Jesus se esquecia (de alguém, no caso). Os presentes, na manhã seguinte, estavam lá; mas eu não sabia o que fazer com eles. Também estava lá Alessandro, meu amigo do peito, órfão.
E houve outros Natais em que explodiram brigas de família incompreensíveis (para nós). Um tio que saiu batendo a porta porque não gostou do lugar que sua mulher ocupava na mesa ou uma nora que não se dava com a sogra. Esperávamos demais e, à força de querer (e simular) harmonia para a família e o mundo inteiro, vivíamos decepções fellinianas se algum detalhe atrapalhasse o cartão-postal natalino.
Mais tarde, chegaram os anti-Natais da adolescência. Eram proclamações indignadas contra a família. Valia qualquer coisa para contrariar o espírito dos Natais da infância: Natal numa boate? Natal num prostíbulo? Natal jogando pôquer num boteco?
Ou, então, eram proclamações políticas: Natal numa célula de militantes, Natal com amigos e companheiros, sem festa, sem árvore e cheio de conversas sobre as armadilhas "alienantes" do consumo.
Alguns anos atrás, no dia 25, acordei muito cedo, embora soubesse que ninguém viera, no meio da noite, depositar presentes embaixo da árvore. O apartamento estava deserto, todos dormiam ainda. Atravessei a sala assim como costumo dormir, de camiseta, sem pijama. Olhei com carinho para os restos do jantar da noite anterior e liguei a máquina do café. Não sei por que, achei graça enfiar na cabeça um chapéu de Papai Noel que estava em cima da mesa. Logo fui buscar o jornal na porta de casa, caso ele já tivesse chegado.
Por precaução pudica e por preguiça de vestir uma calça ou mesmo uma cueca, tentei inventar um jeito de apanhar o jornal sem impor minha nudez aos (improváveis) vizinhos que estivessem circulando pelo prédio às 6h do dia de Natal. Ajoelhado, abri a porta e estendi o braço; o jornal estava lá, mas longe demais. Insinuei o ombro na abertura, mas não bastou. Avancei mais, sempre ajoelhado, até que, empurrado pela própria porta, que é comandada por uma mola que a fecha automaticamente, estava mais fora do que dentro do apartamento. Por sorte, o batente não fechou atrás de mim. No instante em que, enfim, coloquei a mão no jornal, escutei um barulho. Levantei os olhos: bem na minha frente, um vizinho, também ajoelhado e seminu, era vítima da mesma manobra. Ficamos imóveis um longo momento, até que, de jornal na mão, desejei-lhe "feliz Natal" e recuei.
Cinco minutos depois, sentado contra a porta fechada do meu apartamento, ainda estava rindo, constatando que, durante esse estranho encontro, ficara não só meio nu, de camiseta, mas também de chapéu de Papai Noel.
É um bom retrato de meus Natais de hoje. O chapéu representa uma certa fé no ritual que afirma a permanência dos afetos familiares e das amizades, mas sem esquecer que o espírito de Natal não ganha das notícias do dia (o jornal na mão) nem dos desejos que nascem abaixo da cintura (às vezes estamos sem cueca).
Feliz Natal a todos.
Assinar:
Postagens (Atom)