quinta-feira, 5 de fevereiro de 2004

Volta a Dogville



Muitos leitores me escreveram comentando a coluna de quinta passada, que tratava de "Dogville", de Lars von Trier. Agradeço a todos.

1) Alguns perguntam por que, ao avaliar um filme, daríamos peso às declarações do diretor: "Não seria melhor considerar a obra em si, sem interessar-se pelas intenções do autor?". No caso, pouco importaria que Von Trier anunciasse estar apresentando a "realidade" americana.
Problema: o que Von Trier declara em suas entrevistas não é ausente do filme. Dogville é um vilarejo americano. O protagonista masculino se chama Thomas Edison. As fotografias da miséria do mundo que acompanham os créditos do filme sugerem uma relação causal: olhem para os horrores produzidos pelo espírito de Dogville que estaria no âmago dos EUA. Essa mensagem está na obra.

Mas há uma questão mais geral. Com o estruturalismo dos anos 60, triunfou a idéia de que deveríamos entender as criações sem pensar nos autores. O objeto das ciências humanas não seria mais o sujeito com suas intenções confusas, absconsas e inexplicáveis, mas a matéria de seus produtos. Limitando-se a essa matéria (texto, filme, discurso etc.), seria possível operar com método e rigor. As ciências humanas alcançariam, enfim, as exatas.

O movimento (no qual militei) prosperou eliminando o que era refratário a seu projeto racionalista (não sei o que fazer com a complexidade das intenções, portanto elas não são relevantes). Com isso, ele se tornou imoral. Um caso foi decisivo para mim: o grupo Tel Quel decidiu que "Bagatelle pour un Massacre", de Louis-Ferdinand Céline, era uma obra de arte sublime e uma esperança da Revolução (sempre iminente). Pouco importava que o livro fosse uma expressão revoltante de racismo. As intenções do autor deviam ser desconsideradas, pois a materialidade do texto, por sua novidade estilística, nos transformaria em homens do futuro. Como dizem os cariocas quando querem sair de perto: a gente se vê na praia.

Hoje, leio, escuto, vejo e entendo levando em conta as intenções dos autores. Claro, a obra diz mais que essas intenções, mas, de qualquer forma, para mim, as intenções fazem parte da obra. A crítica é um exercício, ao mesmo tempo, estético e ético.

2) Outros leitores observam: "O filme repreende os EUA que Von Trier afirma não conhecer, e você parece concluir que "Dogville" é a expressão de um preconceito. Será que produzimos preconceitos a cada vez que falamos de algo que não conhecemos concretamente?".

Acho legítimo e interessante que proponhamos entendimentos ou interpretações de algo que não conhecemos por experiência. O preconceito é outra coisa. Explico.

É banal que, ao descrever uma reunião, digamos: "Havia cinco pessoas". No entanto, havia seis: a gente não se contou entre os presentes. Esse deslize exemplifica o oitavo pecado capital: tirar o corpo fora, ou seja, falar dos outros e do mundo como se nossa subjetividade não atrapalhasse nem o mundo nem nossa fala. O preconceito é filho desse pecado: se me esqueço de mim e de minha história na hora de falar dos outros, é provável que eu acabe lhes atribuindo exatamente aquela parte de mim ou de minha história que quis suprimir.

Isso acontece no caso do filme de Von Trier. Quem conhece as pequenas comunidades americanas e a história da Europa constata que Dogville é diferente das primeiras, mas encena um momento triste da segunda. Uma leitora, Anette Lewin, observou que, no vilarejo que evoca o drama de milhares de judeus escondidos pela Europa afora nos anos 40, o cachorro da cidade (a cidade do cão, Dogville) é chamado de Moisés: vingança do inconsciente.

Corolário. Se, ao contar uma história, tirarmos o corpo fora, a história contada será esquemática, pois só temos acesso à complexidade do humano reconhecendo nossa própria complexidade, ou seja, nos colocando em causa.

Aqui é oportuno que responda a uma leitora que não entende bem a razão de minha "ira". Ela é subjetiva. Nasci europeu (como Von Trier), italiano, filho de um militante antifascista: há esquecimentos com os quais não gosto de brincar e não gosto que alguém brinque.

Nota. Para quem não conhece a "América profunda", uma sugestão: para criticar a pequena comunidade americana, melhor ler Tocqueville que ver "Dogville". Agora, para criticar o racismo e o fechamento na sociedade européia, aí sim, é bom ver "Dogville".

Atenuante. O dito oitavo pecado capital está entre os mais praticados. Há o marido que quer pular a cerca e por isso se torna ciumento. Há o jovem que não tem a coragem de seguir seus desejos e por isso acha os pais conformistas. Somos todos Von Triers.

3) Um colega me dá a lição: o psicanalista não deveria, ele diz, interpretar, mas ajudar o sujeito a interpretar-se sozinho. É bem o que espero que Von Trier faça.

Escrevi sobre Von Trier a mesma coisa que eu diria, logo na primeira entrevista, a um paciente suíço que me contasse que acha o Brasil um horror porque os brasileiros são muito pontuais e ficaram com o dinheiro dos judeus durante a Segunda Guerra.

Morei bastante tempo em Porto Alegre e devo ter sido influenciado pelo analista de Bagé: quando é preciso, dou um joelhaço.

4) Outros leitores acham que minha apreciação negativa de "Dogville" seria um efeito de filoamericanismo. É o contrário. A crítica de Von Trier pratica o oitavo pecado capital, que consiste em atribuir aos outros as mazelas da gente. Não diz nada contra os outros e nos mantém na ignorância do que deveríamos criticar em nós mesmos. Seu maior defeito é de ser ineficaz.

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