quinta-feira, 8 de janeiro de 2004

Os feridos das festas

No dia 1º de janeiro, os prontos-socorros recebem sempre alguma vítima dos fogos de artifício do Réveillon.

Retomando o trabalho depois dos feriados, os psicoterapeutas e os psicanalistas também costumam atender os feridos da estação. São as vítimas de rojões tão explosivos quanto os outros: os encontros de família das festas de fim de ano.

Existe uma explicação básica para essa patologia: o Natal, em particular, idealiza a reunião de família a tal ponto que uma decepção é dificilmente evitável.

Desta vez, no meu consultório, compareceram, no mesmo dia, três adultos (entre 40 e 65 anos) acidentados no encontro com os pais idosos. Talvez, quando filhos e filhas já encaminhados na vida se sentam à mesa natalina com seus pais, uma eventual insatisfação seja mais provável e aguda, pois todos esperam viver um momento perfeito, que constitua uma lembrança, uma última foto feliz.

Seja como for, fiquei com as reflexões que seguem.

É raríssimo que os pais não transmitam nada a seus filhos. Mesmo quando um filho ou uma filha acreditam que inventaram sua vida a partir do zero, sem amparo e sem nenhuma herança material ou simbólica, descobre-se que existiu um legado. Pode ser, aparentemente, pouca coisa: um exemplo de coragem ou de humildade diante de adversidades e sofrimentos, uma palavra que manifestou uma ambição frustrada e deixada para os filhos e as filhas cumprirem.

Ora, quando paira no ar a sensação de que os pais não permanecerão para sempre na Terra, é frequente que o encontro de Natal seja assombrado pela tentação de fechar o balanço dessa transmissão (isso vale sobretudo se o Natal for a ocasião rara, anual, por exemplo, de uma reunião de toda a família). Como na famosa parábola, os pais idosos querem verificar se os filhos fizeram bom uso da herança. É uma contabilidade silenciosa, implícita em pequenas expressões de aprovação ou reprovação, mas facilmente explosiva.

Os pais querem consolar-se com a constatação de que imprimiram uma marca nos filhos e confirmar que foram indispensáveis. Mas é comum que seu legado seja ambíguo. Por exemplo, a herança que um pai destina a seus filhos é uma pequena loja que ele consolidou ao longo de 50 anos de esforços, mas, na verdade, seu sonho era mandar o negócio para o beleléu e sair velejando pelo mundo. A contragosto, a filha ficou com o comércio de família, convencida de satisfazer o desejo paterno, mas, no jantar natalino, constata que o preferido é o irmão, o qual leva uma vida de surfista pelas praias australianas. Quem ficou com a verdadeira herança? Quem é o conforto do pai no fim do dia? Difícil dizer.

Além disso, os filhos têm uma relação incerta com o legado que recebem. Receiam que, reconhecendo sua dívida, eles sacrificariam sua autonomia, ou melhor, comprometeriam a imagem de si mesmos (autônomos) que eles gostam de projetar nas telas de seu cinema de bolso.
Tudo isso não passa de ordinária administração. A pequena série de acidentados deste começo de ano trouxe algo mais. Nas cenas que me foram relatadas, todas emocional ou fisicamente violentas, manifestava-se uma espécie de rancor dos pais. O estranho é que em nenhum dos casos dava para dizer que os filhos não tivessem aceitado e hasteado a tocha de seus genitores, de uma maneira ou de outra. A raiva manifestada pelos pais parecia abstrata, sem objeto, e culminava regularmente com a promessa de "deserdar" filhas ou filhos. As ameaças não seriam levadas à frente; de qualquer forma, nada poderia abolir o legado simbólico. Também era óbvio que essas intenções dos pais, furibundas e pouco justificadas, durariam apenas um dia.

Mesmo assim, elas eram reveladoras: pareciam ser o modelo do comportamento de Deus com Jó, na Bíblia (para não falar da loucura do rei Lear de Shakespeare). Um belo dia, por provocação satânica, Deus suspeitou que Jó fosse devoto só pelos benefícios que o Criador lhe outorgava. E lhe tirou tudo. Claro, a desculpa era que convinha verificar a sinceridade da fé e da piedade de Jó.
Mas suspeito que, no caso dos pais idosos, não se trate de verificar se os filhos repudiados continuariam amando seus genitores. Há, na fantasia de deserdar no fim da vida, um verdadeiro ciúme de quem sobreviverá. A dificuldade de lidar com a hora dos adeus pode nos entregar a uma espécie de ódio por aqueles que ficarão mais um tempo. A ponto, aliás, de esquecer que eles são a única e tênue garantia de alguma permanência nossa.

Esse sentimento pouco nobre existe sempre nos pais e, pudicamente esquecido, é uma das causas de muitos desentendimentos entre gerações. No ocaso da vida, ele se torna mais furioso.
Os filhos, em geral, são menos pacientes que Jó. Descobrem-se odiados, e só lhes sobra desejar que os pais saiam mesmo de cena e os deixem viver em paz. Assim, tristemente, ao redor da mesa natalina, cada geração, por um instante, pode desejar a morte da outra. É paradoxal, pois cada geração deve à outra sua vida: os pais devem aos filhos sua possível continuidade no mundo, e os filhos devem aos pais, bem ou mal, o que eles são.

Nas próprias palavras de um dos feridos das festas, a verdadeira punição imposta pela ameaça ciumenta dos pais não é o repúdio, mas a reação de ódio que ele provoca nos filhos. Pois essa reação os priva de uma última chance de amar seus pais.

Moral da história: para sermos pais, importa aceitar que somos mortais.

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