Em outubro passado, foi publicado nos EUA "The Emerging Democratic Majority" (a maioria democrata emergente), de J. Judis, R. Teixeira e R. A. Teixeira.
Os autores prometem que, a curto prazo, os EUA serão um país progressista: nas próximas décadas, o Partido Democrata governará incontestado. Para chegar a essa conclusão, eles recortaram o país em "ideópoles", grupos definidos pelas idéias que neles prevalecem. Logo, mostram que os grupos em que dominam as idéias próprias aos eleitores democratas crescem demograficamente mais que as "ideópoles" republicanas. Por exemplo, cresce a população hispânica, aumentam as mulheres que trabalham, assim como cresce o número de cidadãos que passam por uma universidade. E esses grupos tendem a pensar como democratas. Rapidamente, eles constituirão uma maioria esmagadora.
Gosto da previsão, mas as idéias que supostamente definem os eleitores como democratas me inspiram um vago mal-estar. Identifico-me com muitas delas, compartilho-as, acho-as importantes, mas elas não definem exatamente uma escolha política.
Para explicar minha perplexidade, recorro a uma história que foi evocada várias vezes no debate ao redor do livro. Em 1996, a campanha pela reeleição de Bill Clinton se serviu de uma sondagem peculiar. Para saber como os eleitores votariam, eram colocadas cinco perguntas: 1) Você pensa que a homossexualidade seja moralmente errada? 2) Você faz uso pessoal de pornografia? 3) Você consideraria com desprezo alguém que tivesse uma relação extraconjugal? 4) Você acredita que o sexo antes do casamento seja moralmente errado? 5) A religião é importante na sua vida? Quem respondia "não" a todas as perguntas, exceto a segunda, era um eleitor de Clinton. Quem respondia "sim" a todas e "não" à segunda era um eleitor de Bob Dole.
As respostas eram um indicador de voto mais confiável do que a posição econômica e social do eleitor. Conclusão possível: o que domina a vida política americana, hoje, não seriam nem as diferenças de posses e lucros nem os projetos contrapostos de organização política, mas as opções morais.
Cuidado: não se trata de uma anomalia dos eleitores americanos. Estamos um pouco no mesmo barco. Por exemplo, eu sou favorável à liberalização do aborto; no mínimo, não quero que a prática seja acessível apenas a quem pode pagar por baixo da mesa. Ora, se pudesse escolher entre um partido progressista que não se preocupasse com isso e um partido centrista que defendesse a liberalização, em quem votaria? Situação parecida para um católico progressista: se seu partido de esquerda preferido promovesse a liberalização, ele, oposto ao aborto, talvez votasse com os conservadores.
Se essa não for uma aposta significativa para você, substitua a liberalização do aborto por qualquer coisa que seja central na sua vida privada: o acesso à pornografia, a existência de bares gay ou de clubes de swing, a prática de suas fantasias sexuais preferidas etc. E veja se isso não seria, para você, uma razão de decidir seu voto.
Em suma, Judis, os Teixeiras e os conselheiros de Clinton se serviram de um fato cultural que é, hoje, comum: nossas escolhas políticas dependem bastante de opções morais na esfera da vida privada. Votamos e militamos por motivações, em grande parte, íntimas e subjetivas: a generosidade, a vontade de gozar do jeito que gostamos e por aí vai.
Durante as últimas quatro décadas, essa mudança apareceu como uma conquista. E foi mesmo. Desde os anos 60, as escolhas da vida privada invadiram os debates de política pública; não é mais possível fazer política sem levar em conta as exigências da intimidade. Aliás, pode-se argumentar que o último grande projeto político (o socialista) dançou porque, onde se realizou, não quis escutar essas exigências.
Sem nenhuma ironia, eu consideraria politicamente progressista um governo que transformasse o Ibirapuera numa cópia (melhorada) do Bois de Boulogne, com cantos reservados para os prazeres noturnos ao ar livre de cada gosto. Mas seria estranho que essa consideração resumisse minha orientação política. Cadê as idéias sobre, sei lá, a organização do trabalho, a propriedade, as decisões coletivas, as responsabilidades e as recompensas sociais?
O que aconteceu com nossa capacidade de inventar projetos propriamente políticos?
A resposta habitual é, de fato, uma constatação do triunfo do liberalismo: o modelo dominante funciona, não há outro projeto. Portanto, vamos aprimorá-lo com enfeites de sentimentos e tripas.
Poderia concordar. Mas sobra uma dúvida: talvez a explosão das exigências subjetivas seja responsável por nossa crescente incapacidade de pensar propostas propriamente políticas.
Talvez ela nos obrigue a conceber a coletividade só a partir do indivíduo. Talvez, em suma, o triunfo contemporâneo da subjetividade tenha produzido um eclipse da razão política.
P.S.: Michel Foucault dizia que os discursos da liberação certamente libertam, mas também renovam (e aprimoram) a máquina do poder.
quinta-feira, 30 de janeiro de 2003
quinta-feira, 23 de janeiro de 2003
Nostalgia dos tubarões
No último número da revista "Science" (vol. 299, nº 5.605), Julia K. Baum e outros pesquisadores da Universidade Dalhousie (Nova Escócia, Canadá) apresentam uma pesquisa sobre "Colapso e Conservação das Populações de Tubarões no Atlântico Noroeste".
Entre 1986 e 2000, os tubarões, da Terra Nova a Recife, declinaram brutalmente. Os números são diferentes segundo as espécies, mas, com raras exceções, sempre significativos. O tubarão-martelo quase sumiu (diminuição de 89%), e o tubarão-branco (comedor de banhistas e protagonista do filme "Tubarão") perdeu 79% de seus efetivos.
Chegou-se a esses resultados acompanhando as variações no número de tubarões capturados acidentalmente pelos pescadores de atum e de peixe-espada. Nesse tipo de pesca, as linhas carregam centenas de iscas que qualquer peixe morde com apetite. Ora, essas linhas trazem de volta cada vez menos tubarões.
O próprio caráter não seletivo da pesca deve ser responsável pelo declínio dos tubarões. A isso se adiciona, hoje, a captura intencional: nos EUA, a pesca do tubarão é regulamentada, mas os pescadores europeus trabalham livremente, encorajados pela popularidade da carne de tubarão nos restaurantes da Europa.
Os pesquisadores manifestam sua preocupação. Afinal, os tubarões levam de 12 a 18 anos para atingir a maturidade reprodutiva, e as fêmeas, no decorrer de sua vida, criam, no máximo, dois tubarõezinhos. Será difícil inverter a tendência, mesmo com fortes políticas de proteção.
O tom preocupado do artigo desperta uma certa vontade de zombar. Afinal, danem-se os tubarões. Se querem sobreviver, é fácil: tornem-se vegetarianos. Evitarão as iscas e, assim, pararão de encher (ou morder) o saco da gente. Os pesquisadores canadenses, consternados, nos lembrariam que o fenômeno compromete o equilíbrio ecológico. Sem tubarões, seremos invadidos pelas focas, que ninguém comeria mais, e, na pança de tantas focas, sumiriam as sardinhas. Ora, sem sardinhas, como almoçar no porto de Lisboa? Pois bem, responderão os zombadores, que volte a moda dos casacos de pele, reabra-se a caça aos "bebês" de foca e, pronto, as sardinhas estarão salvas.
O declínio dos tubarões produzirá uma certa alegria entre banhistas e surfistas. Embora os ataques sejam raros, não duvido que, logo em janeiro, muitos achem ótimo que haja menos bichos dentuços nadando no fundo do mar. Comentarão que, para preocupar-se com o declínio dos tubarões, só os canadenses mesmo, que não entram na água do mar nem no verão.
Mas estou também convencido de que, entre os próprios surfistas que expõem assiduamente suas pernas apetitosas aos tubarões, muitos vão se manifestar contra a pesca industrial e seus estragos nas fileiras dos predadores do Atlântico.
É uma contradição constante. Acreditamos em nossa capacidade de transformar o mundo. Mas essa fé convive sempre com a nostalgia do cosmo imutável, ordenado pela bondade divina ou pela sabedoria da própria natureza.
Ora, os dinossauros não sumiram por culpa nossa, e uma enorme parte da evolução se fez em nossa ausência. Além disso, as formigas, ao construir colônias de formigueiros, não se preocupam com o plano da natureza. Idem para os castores quando constroem seus diques. Sem falar nos tubarões, que não se preocupam nem um pouco com a extinção dos surfistas e dos turistas em nossas praias. Ou seja, em princípio, as espécies "normais" modificam o hábitat e tentam impor suas necessidades sem grandes tormentos de consciência.
Essa era também a posição dos homens até, mais ou menos, dois séculos atrás. Paradoxalmente, a modernidade levou ao paroxismo a vontade de adaptar o mundo ao nosso capricho e, ao mesmo tempo, as lágrimas (de crocodilo) que choram os encantos perdidos de um mundo preservado. A história se acelerou, mas foram inventados os museus, a preservação dos monumentos históricos e os parques naturais. Com novas armas e armadilhas, exterminamos os lobos que ameaçavam nossos rebanhos; logo, criamos lobos em cativeiro e tentamos reintroduzi-los em nossas montanhas. O Ocidente colonizou (ou pós-colonizou) quase o mundo inteiro e agora lamenta a variedade perdida das culturas. Só falta recriar e reintroduzir os sioux nas planícies do oeste americano e os tupis-guaranis na mata atlântica.
Admiro o heroísmo preservacionista, mas desconfio um pouco dele. Há o sublime sacrifício: em nome da ordem cósmica, amo os tubarões, embora me mordam. Há a aparente abnegação: queria que o mundo não fosse sujo pela minha própria presença.
E há, atrás desses nobres sentimentos, um extremo narcisismo. Pois a abnegação afirma que somos completamente diferentes das outras espécies: seríamos os únicos que podem colocar o bem do ecossistema acima de nossos interesses imediatos.
Alguém responderá: nada disso, cuidamos da ordem do mundo apenas para garantir nossa sobrevivência. Pois é, lobos e tubarões agem diferente: não estão preocupados com sua morte a ponto de querer se consolar planejando a eternidade do planeta.
Entre 1986 e 2000, os tubarões, da Terra Nova a Recife, declinaram brutalmente. Os números são diferentes segundo as espécies, mas, com raras exceções, sempre significativos. O tubarão-martelo quase sumiu (diminuição de 89%), e o tubarão-branco (comedor de banhistas e protagonista do filme "Tubarão") perdeu 79% de seus efetivos.
Chegou-se a esses resultados acompanhando as variações no número de tubarões capturados acidentalmente pelos pescadores de atum e de peixe-espada. Nesse tipo de pesca, as linhas carregam centenas de iscas que qualquer peixe morde com apetite. Ora, essas linhas trazem de volta cada vez menos tubarões.
O próprio caráter não seletivo da pesca deve ser responsável pelo declínio dos tubarões. A isso se adiciona, hoje, a captura intencional: nos EUA, a pesca do tubarão é regulamentada, mas os pescadores europeus trabalham livremente, encorajados pela popularidade da carne de tubarão nos restaurantes da Europa.
Os pesquisadores manifestam sua preocupação. Afinal, os tubarões levam de 12 a 18 anos para atingir a maturidade reprodutiva, e as fêmeas, no decorrer de sua vida, criam, no máximo, dois tubarõezinhos. Será difícil inverter a tendência, mesmo com fortes políticas de proteção.
O tom preocupado do artigo desperta uma certa vontade de zombar. Afinal, danem-se os tubarões. Se querem sobreviver, é fácil: tornem-se vegetarianos. Evitarão as iscas e, assim, pararão de encher (ou morder) o saco da gente. Os pesquisadores canadenses, consternados, nos lembrariam que o fenômeno compromete o equilíbrio ecológico. Sem tubarões, seremos invadidos pelas focas, que ninguém comeria mais, e, na pança de tantas focas, sumiriam as sardinhas. Ora, sem sardinhas, como almoçar no porto de Lisboa? Pois bem, responderão os zombadores, que volte a moda dos casacos de pele, reabra-se a caça aos "bebês" de foca e, pronto, as sardinhas estarão salvas.
O declínio dos tubarões produzirá uma certa alegria entre banhistas e surfistas. Embora os ataques sejam raros, não duvido que, logo em janeiro, muitos achem ótimo que haja menos bichos dentuços nadando no fundo do mar. Comentarão que, para preocupar-se com o declínio dos tubarões, só os canadenses mesmo, que não entram na água do mar nem no verão.
Mas estou também convencido de que, entre os próprios surfistas que expõem assiduamente suas pernas apetitosas aos tubarões, muitos vão se manifestar contra a pesca industrial e seus estragos nas fileiras dos predadores do Atlântico.
É uma contradição constante. Acreditamos em nossa capacidade de transformar o mundo. Mas essa fé convive sempre com a nostalgia do cosmo imutável, ordenado pela bondade divina ou pela sabedoria da própria natureza.
Ora, os dinossauros não sumiram por culpa nossa, e uma enorme parte da evolução se fez em nossa ausência. Além disso, as formigas, ao construir colônias de formigueiros, não se preocupam com o plano da natureza. Idem para os castores quando constroem seus diques. Sem falar nos tubarões, que não se preocupam nem um pouco com a extinção dos surfistas e dos turistas em nossas praias. Ou seja, em princípio, as espécies "normais" modificam o hábitat e tentam impor suas necessidades sem grandes tormentos de consciência.
Essa era também a posição dos homens até, mais ou menos, dois séculos atrás. Paradoxalmente, a modernidade levou ao paroxismo a vontade de adaptar o mundo ao nosso capricho e, ao mesmo tempo, as lágrimas (de crocodilo) que choram os encantos perdidos de um mundo preservado. A história se acelerou, mas foram inventados os museus, a preservação dos monumentos históricos e os parques naturais. Com novas armas e armadilhas, exterminamos os lobos que ameaçavam nossos rebanhos; logo, criamos lobos em cativeiro e tentamos reintroduzi-los em nossas montanhas. O Ocidente colonizou (ou pós-colonizou) quase o mundo inteiro e agora lamenta a variedade perdida das culturas. Só falta recriar e reintroduzir os sioux nas planícies do oeste americano e os tupis-guaranis na mata atlântica.
Admiro o heroísmo preservacionista, mas desconfio um pouco dele. Há o sublime sacrifício: em nome da ordem cósmica, amo os tubarões, embora me mordam. Há a aparente abnegação: queria que o mundo não fosse sujo pela minha própria presença.
E há, atrás desses nobres sentimentos, um extremo narcisismo. Pois a abnegação afirma que somos completamente diferentes das outras espécies: seríamos os únicos que podem colocar o bem do ecossistema acima de nossos interesses imediatos.
Alguém responderá: nada disso, cuidamos da ordem do mundo apenas para garantir nossa sobrevivência. Pois é, lobos e tubarões agem diferente: não estão preocupados com sua morte a ponto de querer se consolar planejando a eternidade do planeta.
quinta-feira, 16 de janeiro de 2003
A guerra que vem
Não sei se a segunda guerra do Iraque acontecerá ou não. Soldados, aviões e navios saem para o Oriente Médio, e fala-se, aqui nos EUA, na possibilidade de instituir o alistamento obrigatório.
Embora o entusiasmo da população vacile um pouco, a oposição à guerra é fraca. O clima dominante é: "Pouco importa o que dirão os inspetores da ONU, agora é tarde para recuar. Depois pegaremos a Coréia do Norte".
Claro, os regimes do Iraque e da Coréia do Norte são odiosos. Mas duvido que o governo americano queira transformar os EUA em polícia do iluminismo político. Duvido ainda mais que essa seja a vontade do americano médio.
Claro, o petróleo iraquiano é uma isca apetitosa, mas a invasão produziria, no Oriente Médio, uma onda de ódio mais nociva do que a perda do dito petróleo. Além disso, os americanos achariam imoral, hoje, uma guerra justificada só por interesses econômicos.
No ideário americano, a democracia requer duas condições indissociáveis: autonomia e possibilidades ilimitadas de consumo. Só há democracia se vivemos num supermercado constantemente abastecido por uma infinidade de produtos e no qual circulamos, mercadorias entre as mercadorias, arriscadamente livres, vendendo nosso serviço ao melhor preço.
O anseio libertário repudia invasões e intromissões. Mas a necessidade de acesso infinito a bens de consumo pode exigir intervenções para que seja mantida a abundância, que é uma condição do ideal democrático. Ora, a penúria não é a situação do dia; o preço da gasolina continua igual.
Então por que a pouca resistência aos preparativos? Por que a guerra é popular?
A modernidade, no começo, era avara de identidades de grupo: a proposta era que cada um fosse simplesmente ele mesmo. A religião, o vilarejo, a classe social, em princípio, não contavam mais: você é mão-de-obra errante e vale por seu sucesso no supermercado da vida. Nessa nova imensidade, a referência nacional oferecia conforto.
Como se definiam as nações? Pela guerra. Quando sabemos quem odiamos e quem nos quer mal, pertencemos enfim a um grupo. As guerras nos fizeram franceses, ingleses, italianos etc., numa época em que as identificações coletivas perdiam sentido.
Queremos ser apenas membros da mesma espécie humana, e tanto faz que sejamos católicos ou muçulmanos, brancos ou morenos. Mas sentimos a nostalgia de um círculo mais restrito do que a humanidade. Para constituí-lo, nada melhor do que definir nosso grupo por seus inimigos.
Depois da Segunda Guerra Mundial e da catástrofe dos impérios coloniais, as nações começaram a definir-se por outros meios. Ainda existem coletividades reunidas pela guerra; a Bósnia e a Sérvia são exemplos recentes, e talvez o Iraque ou a Coréia do Norte sejam outros. Mas são fenômenos periféricos. As nações européias, em poucas décadas, perderam sua inspiração armipotente e encaminharam-se para uma identidade supranacional e pacífica. A União Soviética juntou a vocação guerreira às suas aspirações ideológicas; quando estas desmoronaram, sobrou uma Rússia decidida, aparentemente, a reinventar-se como nação animada por outra aspiração que não a guerra. A Austrália e o Canadá, há tempo, sustentam-se pelo projeto infinito de conquistar sua própria fronteira interna: o deserto ou o grande norte.
Das grandes nações modernas, só os EUA continuam sendo, propriamente, uma nação fascinada com sua própria belicosidade. Não é uma intenção expansionista, mas um traço identificador: ser americano é comprar brigas armadas, assim como ser brasileiro é desconfiar do Estado ou ser malandro.
Uma série de contingências históricas explicam essa particularidade: os EUA nasceram de uma revolução e se aperfeiçoaram numa série ininterrupta de conflitos. Em 1945, na hora em que derrotas ou vitórias demasiado custosas levavam outras nações a esquecer suas vocações combativas, os EUA festejaram uma vitória militar que coincidia com o triunfo mundial da liberdade.
Em suma, nos EUA, o apelo à guerra estimula diretamente um traço crucial do espírito nacional. Desculpe a irreverência: é como tocar axé num boteco de Salvador, todo mundo começa a se mexer.
É difícil que os americanos mudem, pois constatam que sua belicosidade alimenta os sonhos do mundo inteiro. Nas salas de cinema, a cultura guerreira dos EUA seduz as mesmas platéias que, eventualmente, descem às ruas protestando contra o militarismo "ianque". Os EUA são amados e odiados (ou seja, invejados) por serem a nação militar que muitos deixaram de ser e que outros querem e não conseguem constituir. Renunciar a definir-se pelo poder militar seria, para eles, abdicar de sua própria força de sedução.
Uma mudança na identidade americana talvez acontecesse se a nação se diluísse, um dia, num conjunto supranacional, como foi o caso dos países europeus. Ora, a Alca é apenas um acordo comercial. Mas talvez estivesse na hora de enxergar, entre as linhas das contas alfandegárias, a possibilidade de um sonho político. Afinal, a União Européia começou assim.
Embora o entusiasmo da população vacile um pouco, a oposição à guerra é fraca. O clima dominante é: "Pouco importa o que dirão os inspetores da ONU, agora é tarde para recuar. Depois pegaremos a Coréia do Norte".
Claro, os regimes do Iraque e da Coréia do Norte são odiosos. Mas duvido que o governo americano queira transformar os EUA em polícia do iluminismo político. Duvido ainda mais que essa seja a vontade do americano médio.
Claro, o petróleo iraquiano é uma isca apetitosa, mas a invasão produziria, no Oriente Médio, uma onda de ódio mais nociva do que a perda do dito petróleo. Além disso, os americanos achariam imoral, hoje, uma guerra justificada só por interesses econômicos.
No ideário americano, a democracia requer duas condições indissociáveis: autonomia e possibilidades ilimitadas de consumo. Só há democracia se vivemos num supermercado constantemente abastecido por uma infinidade de produtos e no qual circulamos, mercadorias entre as mercadorias, arriscadamente livres, vendendo nosso serviço ao melhor preço.
O anseio libertário repudia invasões e intromissões. Mas a necessidade de acesso infinito a bens de consumo pode exigir intervenções para que seja mantida a abundância, que é uma condição do ideal democrático. Ora, a penúria não é a situação do dia; o preço da gasolina continua igual.
Então por que a pouca resistência aos preparativos? Por que a guerra é popular?
A modernidade, no começo, era avara de identidades de grupo: a proposta era que cada um fosse simplesmente ele mesmo. A religião, o vilarejo, a classe social, em princípio, não contavam mais: você é mão-de-obra errante e vale por seu sucesso no supermercado da vida. Nessa nova imensidade, a referência nacional oferecia conforto.
Como se definiam as nações? Pela guerra. Quando sabemos quem odiamos e quem nos quer mal, pertencemos enfim a um grupo. As guerras nos fizeram franceses, ingleses, italianos etc., numa época em que as identificações coletivas perdiam sentido.
Queremos ser apenas membros da mesma espécie humana, e tanto faz que sejamos católicos ou muçulmanos, brancos ou morenos. Mas sentimos a nostalgia de um círculo mais restrito do que a humanidade. Para constituí-lo, nada melhor do que definir nosso grupo por seus inimigos.
Depois da Segunda Guerra Mundial e da catástrofe dos impérios coloniais, as nações começaram a definir-se por outros meios. Ainda existem coletividades reunidas pela guerra; a Bósnia e a Sérvia são exemplos recentes, e talvez o Iraque ou a Coréia do Norte sejam outros. Mas são fenômenos periféricos. As nações européias, em poucas décadas, perderam sua inspiração armipotente e encaminharam-se para uma identidade supranacional e pacífica. A União Soviética juntou a vocação guerreira às suas aspirações ideológicas; quando estas desmoronaram, sobrou uma Rússia decidida, aparentemente, a reinventar-se como nação animada por outra aspiração que não a guerra. A Austrália e o Canadá, há tempo, sustentam-se pelo projeto infinito de conquistar sua própria fronteira interna: o deserto ou o grande norte.
Das grandes nações modernas, só os EUA continuam sendo, propriamente, uma nação fascinada com sua própria belicosidade. Não é uma intenção expansionista, mas um traço identificador: ser americano é comprar brigas armadas, assim como ser brasileiro é desconfiar do Estado ou ser malandro.
Uma série de contingências históricas explicam essa particularidade: os EUA nasceram de uma revolução e se aperfeiçoaram numa série ininterrupta de conflitos. Em 1945, na hora em que derrotas ou vitórias demasiado custosas levavam outras nações a esquecer suas vocações combativas, os EUA festejaram uma vitória militar que coincidia com o triunfo mundial da liberdade.
Em suma, nos EUA, o apelo à guerra estimula diretamente um traço crucial do espírito nacional. Desculpe a irreverência: é como tocar axé num boteco de Salvador, todo mundo começa a se mexer.
É difícil que os americanos mudem, pois constatam que sua belicosidade alimenta os sonhos do mundo inteiro. Nas salas de cinema, a cultura guerreira dos EUA seduz as mesmas platéias que, eventualmente, descem às ruas protestando contra o militarismo "ianque". Os EUA são amados e odiados (ou seja, invejados) por serem a nação militar que muitos deixaram de ser e que outros querem e não conseguem constituir. Renunciar a definir-se pelo poder militar seria, para eles, abdicar de sua própria força de sedução.
Uma mudança na identidade americana talvez acontecesse se a nação se diluísse, um dia, num conjunto supranacional, como foi o caso dos países europeus. Ora, a Alca é apenas um acordo comercial. Mas talvez estivesse na hora de enxergar, entre as linhas das contas alfandegárias, a possibilidade de um sonho político. Afinal, a União Européia começou assim.
quinta-feira, 9 de janeiro de 2003
Made in Brazil
O economista Alfredo Behrens, de São Paulo, planeja uma interessante pesquisa sobre "a competitividade das exportações de tecnologia e o medo de concorrer". Ele constata que várias empresas brasileiras concebem softwares valiosos, mas, na hora de exportar, encontram resistências que não são só de ordem econômica ou administrativa.
Existem, no Brasil, muitas razões que dificultam a exportação. Na segunda metade do século 20, o protecionismo comercial foi acompanhado pelo fim da imigração. Prevaleceu o modelo patrimonialista da riqueza. Ou seja, ganhou a idéia do bolo que seria melhor dividir entre poucos, e foi derrotada a idéia de que a riqueza é o fruto do trabalho de cérebros e braços (idéia que orientou a política de imigração aberta do Canadá, dos EUA e da Austrália). Consequência: em média, explica Behrens, no Brasil dos anos 40, era preciso conhecer apenas 30 pessoas para que uma fosse um estrangeiro; "já na última década do milênio, era necessário conhecer 200 pessoas antes de esbarrar em um estrangeiro residente no Brasil". Também, coletivamente, os brasileiros telefonam para o exterior menos que outros povos cujo Produto Interno Bruto é igual ou inferior ao do Brasil. Lidar com o estrangeiro é, no Brasil, uma prática pouco familiar.
No caso da alta tecnologia, parece haver mais um problema: quase "uma sensação de inferioridade quanto ao trabalho intelectual". Às vezes, os brasileiros desistiriam ou fracassariam, apesar da qualidade de sua produção, por serem atrapalhados pela sensação de que os produtos da inteligência não são coisa de brasileiro.
Questão de baixa auto-estima, dirão alguns, culpando-se. Questão de imagem, dirão outros, responsabilizando a caricatura exótica do Brasil, na qual o país é ótimo para matérias-primas, biquínis e parangolés, mas certamente não para tecnologia.
Na verdade, não há diferença entre a auto-estima e a imagem que os outros têm de nós. O que encontramos no espelho é o que os outros apreciam ou desprezam em nós. Isso vale para cada sujeito, assim como para as identidades coletivas.
Portanto, para melhorar a pretensa auto-estima, não adianta sobrepor ao espelho um retrato mais avantajado. Podemos, a longo prazo, tentar modificar nossas relações com os outros e influenciar assim seus olhares. Mas, antes disso, é urgente aceitar a imagem que é a nossa e descobrir ou desenvolver seus charmes possíveis.
A missão da Apex (Agência de Promoção de Exportações) é promover as exportações e a imagem do Brasil. A equipe da Apex acaba de publicar um pequeno livro ("A Primeira Exportação a Gente Nunca Esquece", ed. Qualitymark) em que um capítulo é dedicado à necessidade de propor uma imagem do país que motive os compradores de produtos brasileiros e que não iniba os brasileiros vendedores. Aprende-se que, no ano passado, a pedido do Ministério do Desenvolvimento, a agência McCann Erickson fez um "levantamento de como as pessoas, especialmente os importadores e empresários (estrangeiros), "percebem" o Brasil". Foi efetuada uma pesquisa nos dez países prioritários para as exportações brasileiras. As respostas foram cinco "S": soccer (futebol), sound (música), sand (praia), sexiness (sensualidade) e sun (sol, trópicos).
Muitos devem achar esse resultado previsível e desanimador. Prefeririam que o Brasil fosse conhecido pela precisão alemã (a Engesa seria a BMW do futuro) ou pelo requinte culinário francês (nas delicatessens do mundo, o feijão tropeiro enlatado seria substituído pelo "foie gras" mineiro).
Entendo, mas discordo. Já disse que a arte de melhorar a auto-estima, ou seja, de modificar a opinião que os outros têm da gente não passa por uma mudança radical e veleidosa. Como se verifica em qualquer psicoterapia, não adianta recusar nossas caretas. Mesmo que elas nos pareçam grotescas, é melhor aceitá-las, assumi-las, examiná-las com carinho e enxergar nelas as razões possíveis de um apreço. Ou seja, em vez de querer ser outro, é mais interessante inventar o que podemos fazer com o que somos.
Nos anos 80, viajei à Itália para apresentar minha mulher, brasileira, à minha família. Ao conhecê-la, meu irmão, que não sabia nada do Brasil e procurava algo cativante para dizer, comentou: "Ah, o Brasil! Aqui em Milão está cheio de travestis brasileiros competindo com as prostitutas". Minha mulher, gaúcha e afiada, não deixou por menos e respondeu: "Se vêm aqui, é que há freguesia; os milaneses devem gostar". Ou seja, os travestis eram, para meu irmão, a imagem do Brasil; então, que sua complexa sensualidade e suas vidas corajosas valessem não como fonte de vergonha, mas pelo desejo suscitado (que sempre se esconde atrás do escárnio).
Na semana passada, o ministro do Desenvolvimento, Luiz Fernando Furlan, propôs que os brasileiros reconhecidos internacionalmente, por exemplo os jogadores de futebol e as modelos, promovessem o país e seus produtos. Alguns podem torcer o nariz, mas, sem ironia, o ministro está certo.
Existem, no Brasil, muitas razões que dificultam a exportação. Na segunda metade do século 20, o protecionismo comercial foi acompanhado pelo fim da imigração. Prevaleceu o modelo patrimonialista da riqueza. Ou seja, ganhou a idéia do bolo que seria melhor dividir entre poucos, e foi derrotada a idéia de que a riqueza é o fruto do trabalho de cérebros e braços (idéia que orientou a política de imigração aberta do Canadá, dos EUA e da Austrália). Consequência: em média, explica Behrens, no Brasil dos anos 40, era preciso conhecer apenas 30 pessoas para que uma fosse um estrangeiro; "já na última década do milênio, era necessário conhecer 200 pessoas antes de esbarrar em um estrangeiro residente no Brasil". Também, coletivamente, os brasileiros telefonam para o exterior menos que outros povos cujo Produto Interno Bruto é igual ou inferior ao do Brasil. Lidar com o estrangeiro é, no Brasil, uma prática pouco familiar.
No caso da alta tecnologia, parece haver mais um problema: quase "uma sensação de inferioridade quanto ao trabalho intelectual". Às vezes, os brasileiros desistiriam ou fracassariam, apesar da qualidade de sua produção, por serem atrapalhados pela sensação de que os produtos da inteligência não são coisa de brasileiro.
Questão de baixa auto-estima, dirão alguns, culpando-se. Questão de imagem, dirão outros, responsabilizando a caricatura exótica do Brasil, na qual o país é ótimo para matérias-primas, biquínis e parangolés, mas certamente não para tecnologia.
Na verdade, não há diferença entre a auto-estima e a imagem que os outros têm de nós. O que encontramos no espelho é o que os outros apreciam ou desprezam em nós. Isso vale para cada sujeito, assim como para as identidades coletivas.
Portanto, para melhorar a pretensa auto-estima, não adianta sobrepor ao espelho um retrato mais avantajado. Podemos, a longo prazo, tentar modificar nossas relações com os outros e influenciar assim seus olhares. Mas, antes disso, é urgente aceitar a imagem que é a nossa e descobrir ou desenvolver seus charmes possíveis.
A missão da Apex (Agência de Promoção de Exportações) é promover as exportações e a imagem do Brasil. A equipe da Apex acaba de publicar um pequeno livro ("A Primeira Exportação a Gente Nunca Esquece", ed. Qualitymark) em que um capítulo é dedicado à necessidade de propor uma imagem do país que motive os compradores de produtos brasileiros e que não iniba os brasileiros vendedores. Aprende-se que, no ano passado, a pedido do Ministério do Desenvolvimento, a agência McCann Erickson fez um "levantamento de como as pessoas, especialmente os importadores e empresários (estrangeiros), "percebem" o Brasil". Foi efetuada uma pesquisa nos dez países prioritários para as exportações brasileiras. As respostas foram cinco "S": soccer (futebol), sound (música), sand (praia), sexiness (sensualidade) e sun (sol, trópicos).
Muitos devem achar esse resultado previsível e desanimador. Prefeririam que o Brasil fosse conhecido pela precisão alemã (a Engesa seria a BMW do futuro) ou pelo requinte culinário francês (nas delicatessens do mundo, o feijão tropeiro enlatado seria substituído pelo "foie gras" mineiro).
Entendo, mas discordo. Já disse que a arte de melhorar a auto-estima, ou seja, de modificar a opinião que os outros têm da gente não passa por uma mudança radical e veleidosa. Como se verifica em qualquer psicoterapia, não adianta recusar nossas caretas. Mesmo que elas nos pareçam grotescas, é melhor aceitá-las, assumi-las, examiná-las com carinho e enxergar nelas as razões possíveis de um apreço. Ou seja, em vez de querer ser outro, é mais interessante inventar o que podemos fazer com o que somos.
Nos anos 80, viajei à Itália para apresentar minha mulher, brasileira, à minha família. Ao conhecê-la, meu irmão, que não sabia nada do Brasil e procurava algo cativante para dizer, comentou: "Ah, o Brasil! Aqui em Milão está cheio de travestis brasileiros competindo com as prostitutas". Minha mulher, gaúcha e afiada, não deixou por menos e respondeu: "Se vêm aqui, é que há freguesia; os milaneses devem gostar". Ou seja, os travestis eram, para meu irmão, a imagem do Brasil; então, que sua complexa sensualidade e suas vidas corajosas valessem não como fonte de vergonha, mas pelo desejo suscitado (que sempre se esconde atrás do escárnio).
Na semana passada, o ministro do Desenvolvimento, Luiz Fernando Furlan, propôs que os brasileiros reconhecidos internacionalmente, por exemplo os jogadores de futebol e as modelos, promovessem o país e seus produtos. Alguns podem torcer o nariz, mas, sem ironia, o ministro está certo.
quinta-feira, 2 de janeiro de 2003
Comilanças, bebedeiras e outros excessos
A comida tradicional das festas de Natal não é arrebatadora: o peru assado é quase sempre seco, e o presunto, por caramelizado que seja, continua sendo um presunto. Apesar disso, no dia seguinte, ressoa uma litania: comi demais, extrapolei, a partir de amanhã meus nomes são esteira e regime.
Alguns festejam duas vezes: na véspera é o jantar da família e, no dia de Natal, é o almoço na casa dos sogros ou dos pais. A 12 horas de distância, encaram os mesmos pratos; a repetição deveria sugerir moderação. Nada disso, os excessos se repetem.
Para quem sofre de distúrbios alimentares, é um momento trágico. Uma bulimia que parecia curada pode despertar na camaradagem da mesa: "Todos comiam, eu também comi até não poder mais. Depois, fui para o banheiro e forcei o vômito. Voltei para a mesa, comi de novo... fazia anos que isso não me acontecia".
Às vezes, a mesa é puxada por um irmão ou um primo comilões que lideram o abarrotamento. Outras vezes, é a solicitude de uma mãe para quem o apetite dos comensais é a prova certeira do amor.
Mas os casos que me interessam hoje são aqueles em que nenhum comensal, quando senta na mesa, quer comer demais. Ninguém é um glutão, e nenhuma mãe abusiva enche os pratos. Apesar disso, todos acabam amaldiçoando seus próprios excessos e sonhando com a mágica do bicarbonato.
Histórias parecidas acontecerão de novo no fim do ano. Apesar de a bebida ser eventualmente péssima, muitos beberão mais do que queriam e começarão o ano praguejando contra a noite anterior.
Em suma, regularmente escuto sujeitos que se perguntam por quais forças misteriosas foram possuídos naquela infausta mesa em que ninguém queria comer e beber tanto. A cada vez, lembro-me das experiências que David Myers, um psicólogo social americano, realizou no final dos anos 70. Myers quis entender os mecanismos pelos quais pequenos grupos de pessoas chegam a decisões e condutas comuns.
Ele descobriu o seguinte. Quando, num pequeno grupo, existem opiniões diferentes, o grupo pode, é claro, quebrar. Você quer comer carne, eu sou vegetariano e Fulano está de jejum: desistiremos de almoçar juntos, cada um volte para sua casa. Mas, se o grupo não quebrar, se conseguir estabelecer um projeto comum, é bem provável que um acordo seja encontrado ao redor de uma posição MAIS extrema do que a posição de qualquer membro do grupo.
Ou seja, você quer comer uma picanha inteira, eu quero comer uma fatia transparente de lombinho, ele mal aguenta o cheiro da comida, e acabaremos todos comendo um boi inteiro. A tendência é que a unanimidade se faça graças a uma escolha radical que nem existia antes de o grupo concordar.
Para quem acredita no poder da razão discursiva para resolver conflitos, as pesquisas de Myers são uma pedra no sapato (ou no estômago).
Elas se aplicam a casos menos engraçados do que comilanças e bebedeiras. Imagine (é só um exemplo) três jovens que, de noite, passeiam pelas ruas de Brasília. Eles encontram um índio que dorme debaixo de um abrigo de ônibus. Um dos jovens acha que é melhor deixar o homem tranquilo e seguir em frente, outro acharia graça em dar um susto no índio gritando no seu ouvido de repente e o terceiro gostaria de dar-lhe uma ducha com um balde de água gelada. Seria razoável que os três negociassem uma espécie de média, ao redor da posição do segundo, não é? Pois é, as experiências de Myers mostram que eles tenderão a concordar em dar um banho não de água gelada, mas de gasolina, e em tocar fogo no homem. Como é possível? Por que o grupo não é um lugar de debate racional ou razoável?
Em qualquer grupo, grande ou pequeno, a coesão e, portanto, a sensação de pertencer ao conjunto são as coisas mais gratificantes para os membros. No caso, uma escolha extrema oferece uma grande consistência de grupo. Encontraremos nossa unidade por sermos os empanturrados, os doentes de amanhã de manhã ou, mais radicalmente, os cúmplices de um assassinato.
Além disso, num grupo pequeno, a corrida para a liderança é, por assim dizer, inflacionária. Imaginemos "A", "B" e "C" querendo festejar. "A" propõe que se coma peixe e carne; se "B" concordar, "C" não vai contentar-se com a posição de terceiro aderente. Ele proporá que se coma peixe, carne e ovos fritos. "A", para manter a liderança, aceitará com entusiasmo, mas agregará a salada de batatas. Como "B" resistiria à tentação de propor um antepasto? Não é uma discussão: é um pôquer em que todos seguem aumentando as apostas até a catástrofe final, gastrodigestiva ou outra.
A idéia de que agiríamos como sujeitos racionais está em baixa. Em 2002, um psicólogo, Daniel Kahneman, ganhou o Prêmio Nobel de Economia por mostrar que nosso comportamento econômico não é racional.
Também, fora as comilanças, há suficientes mortos e feridos pelo mundo afora para lembrar que os mecanismos de nossa vida de grupo são imperiosos, exigentes e pouco razoáveis.
Para o Ano Novo, talvez seja prudente contar menos com a razão e mais com a boa vontade dos indivíduos.
Alguns festejam duas vezes: na véspera é o jantar da família e, no dia de Natal, é o almoço na casa dos sogros ou dos pais. A 12 horas de distância, encaram os mesmos pratos; a repetição deveria sugerir moderação. Nada disso, os excessos se repetem.
Para quem sofre de distúrbios alimentares, é um momento trágico. Uma bulimia que parecia curada pode despertar na camaradagem da mesa: "Todos comiam, eu também comi até não poder mais. Depois, fui para o banheiro e forcei o vômito. Voltei para a mesa, comi de novo... fazia anos que isso não me acontecia".
Às vezes, a mesa é puxada por um irmão ou um primo comilões que lideram o abarrotamento. Outras vezes, é a solicitude de uma mãe para quem o apetite dos comensais é a prova certeira do amor.
Mas os casos que me interessam hoje são aqueles em que nenhum comensal, quando senta na mesa, quer comer demais. Ninguém é um glutão, e nenhuma mãe abusiva enche os pratos. Apesar disso, todos acabam amaldiçoando seus próprios excessos e sonhando com a mágica do bicarbonato.
Histórias parecidas acontecerão de novo no fim do ano. Apesar de a bebida ser eventualmente péssima, muitos beberão mais do que queriam e começarão o ano praguejando contra a noite anterior.
Em suma, regularmente escuto sujeitos que se perguntam por quais forças misteriosas foram possuídos naquela infausta mesa em que ninguém queria comer e beber tanto. A cada vez, lembro-me das experiências que David Myers, um psicólogo social americano, realizou no final dos anos 70. Myers quis entender os mecanismos pelos quais pequenos grupos de pessoas chegam a decisões e condutas comuns.
Ele descobriu o seguinte. Quando, num pequeno grupo, existem opiniões diferentes, o grupo pode, é claro, quebrar. Você quer comer carne, eu sou vegetariano e Fulano está de jejum: desistiremos de almoçar juntos, cada um volte para sua casa. Mas, se o grupo não quebrar, se conseguir estabelecer um projeto comum, é bem provável que um acordo seja encontrado ao redor de uma posição MAIS extrema do que a posição de qualquer membro do grupo.
Ou seja, você quer comer uma picanha inteira, eu quero comer uma fatia transparente de lombinho, ele mal aguenta o cheiro da comida, e acabaremos todos comendo um boi inteiro. A tendência é que a unanimidade se faça graças a uma escolha radical que nem existia antes de o grupo concordar.
Para quem acredita no poder da razão discursiva para resolver conflitos, as pesquisas de Myers são uma pedra no sapato (ou no estômago).
Elas se aplicam a casos menos engraçados do que comilanças e bebedeiras. Imagine (é só um exemplo) três jovens que, de noite, passeiam pelas ruas de Brasília. Eles encontram um índio que dorme debaixo de um abrigo de ônibus. Um dos jovens acha que é melhor deixar o homem tranquilo e seguir em frente, outro acharia graça em dar um susto no índio gritando no seu ouvido de repente e o terceiro gostaria de dar-lhe uma ducha com um balde de água gelada. Seria razoável que os três negociassem uma espécie de média, ao redor da posição do segundo, não é? Pois é, as experiências de Myers mostram que eles tenderão a concordar em dar um banho não de água gelada, mas de gasolina, e em tocar fogo no homem. Como é possível? Por que o grupo não é um lugar de debate racional ou razoável?
Em qualquer grupo, grande ou pequeno, a coesão e, portanto, a sensação de pertencer ao conjunto são as coisas mais gratificantes para os membros. No caso, uma escolha extrema oferece uma grande consistência de grupo. Encontraremos nossa unidade por sermos os empanturrados, os doentes de amanhã de manhã ou, mais radicalmente, os cúmplices de um assassinato.
Além disso, num grupo pequeno, a corrida para a liderança é, por assim dizer, inflacionária. Imaginemos "A", "B" e "C" querendo festejar. "A" propõe que se coma peixe e carne; se "B" concordar, "C" não vai contentar-se com a posição de terceiro aderente. Ele proporá que se coma peixe, carne e ovos fritos. "A", para manter a liderança, aceitará com entusiasmo, mas agregará a salada de batatas. Como "B" resistiria à tentação de propor um antepasto? Não é uma discussão: é um pôquer em que todos seguem aumentando as apostas até a catástrofe final, gastrodigestiva ou outra.
A idéia de que agiríamos como sujeitos racionais está em baixa. Em 2002, um psicólogo, Daniel Kahneman, ganhou o Prêmio Nobel de Economia por mostrar que nosso comportamento econômico não é racional.
Também, fora as comilanças, há suficientes mortos e feridos pelo mundo afora para lembrar que os mecanismos de nossa vida de grupo são imperiosos, exigentes e pouco razoáveis.
Para o Ano Novo, talvez seja prudente contar menos com a razão e mais com a boa vontade dos indivíduos.
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