quinta-feira, 26 de julho de 2001

"Valet Parking" e cidadania

Durante o fim de semana passado encontrei um amigo e li um livro.

Não direi o nome do amigo por razões óbvias. Conheci X nos anos 80, quando ele era segurança num hotel onde eu me hospedava com frequência. Desde então, trocamos regularmente notícias sobre família, trabalho etc.

Um ano atrás, depois de um penoso período de desemprego e bicos, X conseguiu um cargo mais estável, como motorista de "valet parking". Aprendi nessa ocasião que, em São Paulo, o "valet parking" é frequentemente um serviço terceirizado. O vínculo dos motoristas não é com os estabelecimentos onde exercem seu ofício, mas com empresas prestadoras de serviço.
X tem dois filhos. Seu salário está por volta de R$ 280 por mês -sua mulher não pode trabalhar em tempo integral e ganha menos do que ele. As gorjetas que ele recebe não são muito significativas: quando o serviço é cobrado e não oferecido, os clientes acham que já pagaram o devido. O horário de trabalho vai do meio-dia à madrugada. No caso dos restaurantes (o mais frequente), há poucos clientes entre o almoço e o jantar. Portanto, a empresa outorga um generoso intervalo de três ou quatro horas. Os motoristas moram longe demais para voltar para casa, descansar, ver os filhos etc. Ficam numa parada forçada que é chamada de repouso e serve para que não surja a questão das horas extras.

Apesar dessas condições que nos parecem pouco ideais, X estava feliz de ter conseguido, enfim, um trabalho fixo. Eis que, acidentalmente, ele danificou um carro. O seguro das empresas de "valet parking" tem uma franquia, geralmente, de R$ 1.000. Em caso de acidente, quem você acha que pagará os danos até o valor da franquia? Você deve ter adivinhado: o funcionário.
Disseram a X que, com a crise, não havia como a empresa assumir a fatura, mas que (de novo, "generosamente') deixariam que ele pagasse aos poucos. Durante os próximos meses, o salário de X será a metade do que era, até o reembolso completo dos danos.

É normal que a empresa prefira que os funcionários não batam os carros que lhes são confiados. Seria compreensível que ela instituísse regras do tipo: quem bate duas vezes num mês procure um emprego diferente. Mas aqui trata-se de outra coisa: a atividade empresarial repassa sistematicamente seus riscos ordinários e sua responsabilidade para os funcionários.
X poderia recorrer à Justiça do Trabalho. Ganharia, mas acabaria perdendo seu emprego. E a reputação de encrenqueiro fecharia qualquer possibilidade de trabalho no ramo. Melhor deixar uma eventual ação trabalhista para depois da aposentadoria, mas será tarde para as necessidades imediatas de seus filhos pequenos.

Com o salário cortado pela metade e sobretudo com a sensação de que a lei existe e pode até ser justa, mas não vale para ele, por que X não escolheria a delinquência? Afinal, ele é vítima de um abuso contra o qual a lei quer e pode ampará-lo, mas descobre que a sociedade, no seu caso, torna a lei inoperante. Ou seja, há um pacto social, mas do qual ele é excluído à força. Por que, então, respeitar as regras?

O relato dos apertos de X acompanharam minha leitura de "Cidadania no Brasil o Longo Caminho", de José Murilo de Carvalho (Civilização Brasileira), que, de maneira concisa, clara e indispensável, percorre a história dos direitos civis, políticos e sociais no Brasil.

No fim do livro, esta declaração: "José Bonifácio afirmou que a escravidão era um câncer que corroía nossa vida cívica e impedia a construção da nação. A desigualdade é a escravidão de hoje, o novo câncer que impede a constituição de uma sociedade democrática".

A desigualdade da qual se trata não é apenas de renda. Também, hoje, não é propriamente uma desigualdade civil ou política, pois, segundo a letra da lei, não há mais, entre nós, cidadãos de segunda classe.

O lugar de nosso maior mal-estar social parece estar no descompasso entre esse princípio formal e a realidade concreta. Acontece que os cidadãos das camadas mais pobres estão mudando a imagem que eles têm de si mesmos. X, por exemplo, sabe que ele não é nem servo nem escravo: ele tem direitos. Mas, ao mesmo tempo, ele é levado a tolerar uma punição e a mostrar gratidão, como um escravo. Por quê? Será que a lei não é clara? Precisa melhorá-la ou implementá-la melhor? Infelizmente, o problema, nessa altura, parece ser de solução mais difícil, pois ele é cultural ou mesmo francamente psicológico: reside na representação das classes "inferiores" no espírito de uma boa parte das elites. Coquetel complicado: os desfavorecidos começam a acreditar na igualdade dos direitos e a se ver como possíveis cidadãos. No entanto, muitos favorecidos seguem percebendo ao redor (e abaixo) de si apenas um exército de servos e escravos -para os quais imaginam e querem, por exemplo, que valha a regra: "Quebrou um prato? Leva açoite e fica sem comida!".

A violência que assola as últimas décadas não precisaria de outra causa. Bastaria esta contradição.

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