quinta-feira, 12 de julho de 2001

A face maléfica dos adultos

A comissão de suspensão das penas do Estado de Massachusetts, EUA, acaba de pronunciar-se a favor da liberação antecipada de Gerald Amirault, 47 anos (os últimos 15 na cadeia). É o epílogo de um vasto fenômeno cultural dos anos 80.

Amirault, sua irmã e sua mãe animavam a escolinha de Fells Acres, em Malden, MA. Num belo dia de 1984, um aluno de cinco anos disse à sua mãe que fora molestado por Gerald Amirault. Depois de uma orgia de interrogatórios, Gerald foi condenado pelo estupro de seis meninas e três meninos, enquanto sua irmã e sua mãe teriam estuprado três meninas e um menino.

Seguiram-se muitos processos parecidos pelo país afora. As crianças contavam abusos saídos de uma versão pornô dos contos de Grimm. Houve o palhaço que levava as crianças para o quarto mágico e mandava comer o almoço na ponta de seu peru. E a bruxa nua que tocava "Jingle Bells" no piano. A escassez de provas materiais competia com a incompetência (ou má-fé) dos procuradores durante os interrogatórios das crianças.

Até os meados dos anos 90, as fantasias sexuais infantis condenaram dezenas de professores, padrastos, madrastas, pais, avós etc.

Na mesma época, afirmou-se a Teoria da Memória Recuperada, segundo a qual muitas aflições psíquicas dos adultos seriam causadas por abusos reais sofridos durante a infância.
Em suma, de 1985 a 1995, nossa cultura -em sua matriz norte-americana- decidiu que as crianças, quando acusavam os adultos de maluquices sádicas, deveriam estar falando a verdade. E, ao mesmo tempo, autorizou-nos a atribuir sistematicamente nossos sofrimentos à suposta crueldade dos que teriam abusado de nós enquanto éramos crianças.

Em 1995, Frances Hill, no livro "A Delusion of Satan" (Um Delírio de Satã), comparou esses processos por abuso de crianças com a caça às bruxas de Salem no século 17 (as acusações provinham de um coro de meninas). Hill lembrava que, desde 1985, nos EUA, 60 pessoas, acusadas de múltiplos abusos, tinham sido condenadas a passar suas vidas na prisão. E 2,5 milhões de americanos maduros ou idosos foram acusados por seus filhos ou netos já adultos que haviam "recuperado" a lembrança de terem sido vítimas de abuso na infância.

Duplo estrago: milhares de famílias destruídas e, por outro lado, a extrema dificuldade, nessa loucura, de reconhecer os abusos verdadeiros, que, naturalmente, continuaram existindo.

Por que tudo isso? Há uma série de hipóteses. Por exemplo, nota-se, na maioria dos casais de classe média, que, durante os anos 70 e 80, ambos os cônjuges passaram a trabalhar. A culpa por deixar as crianças pequenas aos cuidados de outros devia alimentar fantasias sobre os horrores que poderiam acontecer. Ao denunciarem professores e "babysitters", as crianças adotariam as fantasias produzidas pelo sentimento de culpa de seus pais.

Outra hipótese: os anos 80 foram um momento de reação à liberação sexual dos 60. Nesse quadro, era interessante mostrar que a sexualidade chegava às crianças só pela violência de adultos corruptores.

As várias explicações são todas plausíveis, mas não esgotam a significação das acusações lançadas pelas crianças e pelos adultos que "se lembraram" de abusos sofridos na infância.
É óbvio que a grande maioria das acusações não correspondia aos fatos. Mas a massa de denúncias representava um protesto coletivo. Como se, nos anos 80, a infância se revoltasse ao descobrir alguma face maléfica dos adultos.

É frequente que os adultos modernos sejam acusados de desejar o bem de seus rebentos apenas por razões narcisistas, ou seja, por considerá-los como extensões de suas próprias vidas. Tipo: "Seja feliz por mim! Realize meus sonhos!". Esse amor narcisista pode provocar consequências nefastas nas crianças. Mesmo assim, é um tipo de amor.

Mas é raro que se levante a questão da inveja (inconsciente ou não) que os adultos e os pais podem sentir das crianças. Ou então que se fale do ódio produzido nos adultos pelo fato de que os rebentos, por existirem, tomam nosso lugar e tocam o sino de nossa morte.

Do mesmo jeito, estamos sempre dispostos a desvendar as paixões de Édipo e a reconhecer que as crianças podem alimentar fantasias mais ou menos torpes com um adulto desejado ou podem querer que ele morra. Mas evitamos interrogar as ambivalências e os cantos escuros das fantasias dos adultos com as crianças. Jocasta, por exemplo, caiu na jogada de Édipo só por engano?

Ora, nos anos 80, os adultos dedicaram-se como nunca a seu próprio projeto de bem-estar. Propuseram-se a ser eles mesmos felizes em vez de seguir planejando a felicidade futura de suas crianças. Logo estas devem ter percebido que eram vistas como rivais e usurpadoras mais do que como preciosas encarnações das esperanças dos pais. Eram, portanto, objetos de menos amor, mais inveja, mais ódio e mais violência. Com isso as crianças espernearam e, sobretudo, acusaram.

Com razão, pois, de fato, os sentimentos que os adultos lhes reservavam não eram todos confessáveis. A coisa mudou?

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