domingo, 1 de julho de 2001

Fratura Americana


Contardo Calligaris
Manifestação contra a pena de morte no dia da execução de McVeigh


por Contardo Calligaris



Decadência econômica das pequenas cidades dos EUA causada pela globalização e a imigração faz ressurgir a defesa dos ideais fundadores da nação americana, que para muitos se encarnam no discurso de Timothy McVeigh, executado no último dia 11


Ao lado do entrada da Penitenciária Federal de Terre Haute, Indiana, dois dias antes da execução de Timothy McVeigh (que ocorreu em 11/ 6), piscava um painel luminoso: "A favor: encaminhem-se para Voorhees Park; contra, para Fairbanks Park". A polícia queria evitar brigas entre manifestantes. Mas o painel também orquestrava as questões levantadas pela execução, prevendo que só haveria opiniões a propósito da pena de morte: a favor ou contra, tanto faz. A cobertura de imprensa confirmou a previsão: foi excessiva e denegatória. Falava-se de execução e pena de morte, no entanto ninguém estava a fim de perguntar por que McVeigh matou e morreria. Para outra execução, uma semana depois, estiveram em Terre Haute 75 jornalistas credenciados. Para McVeigh, houve mais de mil. Certo, há a magnitude do crime: o atentado contra o edifício federal de Oklahoma City, em 1995, matou 168 pessoas, entre as quais 19 crianças. Mas suspeito que a comoção nacional em torno da execução de McVeigh tivesse também outro fundamento. McVeigh não era um criminoso comum. Morreu convencido de ter agido "pelo bem maior de todos" e de ter adotado "táticas militares legítimas" em sua luta contra o governo federal -considerando a morte das crianças e das vítimas que não eram funcionários federais como danos inevitáveis numa guerra.

Divórcio exasperante
O livro de Lou Michel e Dan Herbeck, baseado em entrevistas com McVeigh ("American Terrorist", Regan Books, EUA), confirma a imagem do soldado exemplar que virou um "regicida" moderno por convicção.

Na fase final do processo de McVeigh, quando se tratava de decidir a pena, a defesa apresentou ao júri uma série de atenuantes. Por exemplo, McVeigh acreditava que agentes federais fossem os responsáveis pelas mortes acontecidas em Ruby Ridge e Waco (leia textos na pág. 11) e que esses agentes ficaram impunes. Também pensava que os agentes do governo usavam táticas militares para transformar os EUA num Estado policial.

Os jurados levaram em conta ambos os atenuantes. Logo foi apresentada a idéia de que McVeigh acreditava profundamente "nos ideais sobre os quais são fundados os EUA". Admitir essa tese significaria conceber que a revolta assassina de McVeigh pudesse surgir da defesa enlouquecida dos princípios originários da nação. Os jurados tiveram que recusar essa idéia para condenar McVeigh à morte. Mas alguns americanos pensam que existe um divórcio exasperante entre o país e seus ideais fundadores. Com isso, abominam a bomba de Oklahoma, mas, de alguma forma, "entendem" McVeigh.

No sábado anterior à execução, bem na frente da penitenciária, instalou-se um manifestante que não cabia em nenhum dos parques previstos.

Era Chuck Scines, 56, inspetor de ferrovias de Dayton, Ohio. Seu cartaz dizia de um lado: "O mal vinga quando as pessoas boas não fazem nada. Deus trabalha por meio de nós... Mantenham-se firmes na liberdade". Do outro, explicitando: "Poucos comparecem quando um apelo às armas se justifica. Tim McVeigh, patriota americano!". A seguir, reproduzo e comento trechos do que ele me disse: "Tomei minha decisão há tempos, quando tive quatro filhos e me dei conta de que estamos perdendo a liberdade nos EUA e de que há uma agenda socialista para instaurar um governo mundial único" (do seu jeito, Chuck está falando da globalização e do aumento vertiginoso das regulamentações profissionais, fiscais, sociais que regem o cotidiano americano). "Portanto lutei contra o controle das armas (todas as leis para limitar posse e uso de armas), defendendo o artigo 2º da "Carta de Direitos'" (parte da Constituição americana -o artigo 2º garante o direito de carregar armas). "Timothy McVeigh era frustrado pelo que aconteceu em Waco, Texas, onde o governo fritou mais de 80 pessoas, ou em Ruby Ridge, Idaho, onde os agentes pulverizaram a metade da cabeça de Vicky Weaver e mataram seu filho de 14 anos. Não tinham direito nenhum de fazer isso, eram indivíduos como você e eu. Ninguém está enfiando uma agulha no braço de Janet Reno (ministra da Justiça na época de Waco e Ruby Ridge) por isso. Ora, ela é responsável, ela tomou a decisão no caso de Waco e declarou que tinha sido uma operação de primeira classe... Só que, por acaso, havia lá 16 crianças, que morreram. Agora Timothy McVeigh está lá assumindo a responsabilidade pelo que ele fez. Eu sou a favor da pena de morte. Entendo as frustrações de McVeigh, mas não concordo com seu alvo.... A América está indo pelo ralo do esgoto."

Uma nova fratura
Nessa altura, um repórter do News Channel 15, que se aproximara escutando e gravando, não se conteve e perguntou: "Você é contra a pena de morte?". Resposta imediata: "A pena de morte não é a questão. A América é a questão".

O repórter não devia ser surdo. Mas entre ele e Scines corre uma fratura que divide a América -mais dolorosa do que a fratura entre velha e nova economias e talvez mais irremediável do que a própria fratura racial.

No mundo do qual o repórter faz parte, é inaceitável agir por idéias. Só se age por interesse ou por problemas psicológicos. Um psiquiatra que examinou McVeigh disse que o terrorista encontrara na bomba de Oklahoma seu antidepressivo. A monstruosa revolta de McVeigh era reduzida à patologia kitsch do momento -manifestação de um cinismo para o qual a motivação ideal é um disparate.

O repórter do News Channel 15 não ouve as idéias. Scines fala que a América vai pelo ralo do esgoto -suspeito que o repórter pense nas dificuldades do índice Nasdaq -Bolsa eletrônica que reúne as ações das companhias de alta tecnologia. Scines fala de liberdade, de abusos etc. -o repórter pergunta sobre a pena de morte para cortá-lo. Não quer saber de um delírio que pode atrapalhar o funcionamento divertido da prosperidade.

O repórter, coberto de acessórios de vestimenta e tecnológicos de última moda, é um membro representativo da corte da mídia que cobria a execução.


A modernização torna insignificantes aqueles americanos sem os quais a América não tem muito como se definir -é só um colosso poderoso


Eles são todos urbanos, elegantes, supertecnológicos, se locomovendo pelo gramado ao redor da prisão a bordo de carrinhos de golfe, pendurados em celulares e agendas eletrônicas, chamando alternadamente seus agentes financeiros em Wall Street ou suas redações. Eram quase obscenos, no contexto. Scines, em uniforme de americano médio, está de cara fechada. Seu veredicto sobre a América é acompanhado de lágrimas não fingidas.

A ética da sentinela
Scines não está sozinho. De onde vêm os recrutas? Há o êxodo rural das grandes planícies. No centro dos Estados Unidos, nos anos 90, mais de 60% dos condados perderam habitantes. Multiplicaram-se as cidades-fantasma e as fazendas abandonadas. Numa espécie de vingança da história, os índios voltam a habitar as terras das quais foram expulsos no passado, enquanto os colonos que desbravaram o Oeste vão à falência. E há, sobretudo em zonas industriais menores, pequenos artesãos e comerciantes que são as vítimas da globalização. Perderam seus empregos com a saída de fábricas para o México, a Indonésia etc. e com a chegada de imigrantes trabalhando abaixo do custo sindical. Chuck é inspetor da ferrovia.

Em Terre Haute encontrei outros manifestantes libertários: um perito químico, um marceneiro, um pedreiro -todos habitantes de pequenas cidades. A prosperidade das últimas décadas é hiperurbana -das grandes cidades ou da cidade mundial que é a rede.

O campo (as fazendas familiares) e os pequenos cidadãos das pequenas cidades são os derrotados habituais de qualquer modernização. Mas, no caso americano, esses derrotados têm um estatuto especial: podem afirmar com razão que, com eles, são derrotados os valores essenciais da nação. Essa classe de pequenos fazendeiros e de trabalhadores da América das pequenas cidades é o modelo mítico da vida americana.

O próprio repórter do News Channel 15, quando casar e tiver filhos, fugirá da cidade para os subúrbios, convencido de que esses são o melhor lugar onde educar suas crianças. E os subúrbios devem seu charme à idéia de que imitariam a vida da América das pequenas cidades (das quais são, de fato, a caricatura medonha). Do mesmo jeito, quando ele levar os filhos à Disneylândia, seu passeio por Main Street será um tributo (fúnebre) à América das pequenas cidades.

A modernização torna insignificantes, logo, aqueles americanos sem os quais a América não tem muito como se definir -é só um colosso poderoso.

O sentimento desses americanos, como o de Chuck, é facilmente libertário. Defensores ciumentos das liberdades fundamentais que foram inventadas pela revolução americana, eles se opõem a quase todas as regulamentações governamentais. Nenhuma concessão por razões de interesse, conforto ou saúde pública: são contra a interdição de fumar, o limite de velocidade e a obrigação de usar cinto de segurança. As regras são ruins por serem regras.

Esse integrismo da liberdade comanda uma ética da sentinela, tensa, alerta -e paranóica.

A distância da ética dominante -a do bem-estar- não poderia ser maior. Ela alimenta o desprezo pelas ondas de imigração recente (legais ou ilegais) que vieram confessadamente ganhar e gastar melhor -e não guardar, de armas na mão, o reduto da liberdade. Contradição insolúvel: a liberdade que os libertários almejam é possível no isolamento do colono das grandes planícies ou então na comunidade harmoniosa da mítica pequena cidade. Aí reinariam convenções espontâneas, compartilhadas por todos e, portanto, nunca impostas. Mas a mítica pequena cidade (se é que já existiu) está morrendo também por causa da própria liberdade que ela promove. Seus filhos saem à procura de mais liberdade ainda. Emigram para a metrópole para desprenderem-se dos laços tradicionais da pequena comunidade. Ora, na cidade grande, para que se possa conviver, a convenção comunitária perdida deve ser substituída por regulamentações. O sonho de liberdade vira pesadelo, pois a cidade grande exige uma formalização e uma proliferação de regras bem mais opressivas do que os códigos que regravam a vida da cidade pequena. McVeigh era de uma pequena cidade: Lockport, no oeste do Estado de Nova York. Após a Guerra do Golfo, ele circulou, nômade, pelas feiras de armas, vivendo no carro. Boa receita para um desastre: um libertário que perde o vínculo com a comunidade.

Sentimento popular
Atrás das fileiras em que milita Scines, há um sentimento popular difuso. Voltando de Terre Haute em direção a Indianápolis, parei em Brazil, em Indiana. Nina, 54, é caixa da farmácia CVS na esquina da rua 40 com a 59. Perguntou se eu estava na região por causa da execução de McVeigh e quis saber o que eu pensava. Disse que achara um dia triste para todos. Ela: "Você é de que parte dos EUA?". Respondi: "De Bôôst'n", carregando o sotaque da Nova Inglaterra. Nina falou da pena que sentia, como muitos outros, pelo pai de Timothy McVeigh -numa espécie de identificação. Lidava como podia com a contradição entre o horror de Oklahoma e a familiaridade de McVeigh: "Talvez alguém tenha lhe dado uma droga para ele fazer isso... Quero dizer: ele é americano". Tomei o partido de concordar, sempre. No fim, Nina chamou as colegas: queria mostrar alguém da Costa Leste que pensava como ela (ou como elas). Era uma festa imaginar que o país talvez não estivesse irremediavelmente dividido. O drama é que McVeigh, monstruoso por seu ato, defendia valores que talvez sejam banais no coração da América profunda.

O controle das armas
O controle das armas é o último baluarte dos libertários, o lugar da resistência final. Pois é aqui que eles descobrem e reivindicam a herança do espírito de 1776. Afinal, a Revolução Americana foi isto: pequenos fazendeiros, artesãos e burgueses, cada um com sua espingarda, se revoltando contra o soberano, porque não gostavam de impostos e regulamentações. Criaram uma nação sobre o princípio (por eles posto em prática) de que um povo tem direito a se rebelar. As armas não são apenas o símbolo, mas a possibilidade concreta da insurreição. Distribuídas, elas são um instrumento da razão ilustrada: afirmam que o poder está em última instância com o povo, que o povo pode revogar o poder que ele delegou e se defender, se surgir um tirano. Elas são, desde a Revolução Americana, o símbolo histórico do fim de uma relação incondicional com a autoridade. Devolver as armas -ou mesmo limitar sua posse- significa, para os libertários, devolver concretamente a essência da liberdade política. Portanto, a vontade do governo federal de controlar as armas produz, como no cartaz de Chuck, um apelo às armas. O enfrentamento já começou e é horrivelmente sangrento. Sobre esse tema, o mal-entendido entre as duas Américas é penoso e total. Em Stilesville, Indiana, como um sanduíche no Mill Creek Inn. Atmosfera reservada, ninguém queria puxar conversa sobre McVeigh. Mas um dos clientes saiu atrás de mim. Apoiados em sua pickup batida, com placas de Indiana, conversamos. Disse: "Sabe qual é a razão por que querem controlar as armas, de maneira que só a polícia e os federais de todos os tipos tenham acesso a elas? Eles têm uma razão: é que, na América deles, eles têm drogas, merda e porcaria. Por isso eles querem controlar as armas. Mas o que nós temos a ver com a América deles?". Pedi seu nome. Desconversou.

Postscriptum
Estamos acostumados a pensar que o processo de globalização é a mesma coisa que a difusão pelo mundo afora do modo de vida americano. Ora, a América, nesse processo, se perde tanto quanto nós nos perdemos.

Do ponto de vista do homem global, o americano das pequenas cidades é tão exótico (e desprezível) quanto uma baiana ou um gondoleiro. O desprezo e as caricaturas são aqui formas de repressão. Entende-se por quê. No caso, o integrismo da liberdade que sobrevive e protesta na América profunda é a contestação de um axioma crucial da globalização. Pois ele repete e grita que a liberdade inventada pela Revolução Americana tem pouco a ver com a liberdade dos mercados.

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