quinta-feira, 19 de julho de 2001
Polícia em greve
Em qualquer democracia, mesmo ideal, é necessário que haja uma força de polícia para manter a ordem e implementar as leis que os cidadãos se dão e às quais eles se submetem de um comum acordo. Parece haver duas maneiras opostas de instituir uma polícia.
Primeira possibilidade. Talvez para conter os gastos, os cidadãos procuram candidatos alhures -por exemplo, num país chamado Miséria, cujos habitantes aceitam trabalhar por salários de mera sobrevivência, ou seja, sem nenhum lustre social. Eles contratam, assim, soldados e cabos a preço de banana, enquanto a comunidade fornece apenas os oficiais.
A tropa arregimentada dessa forma dificilmente pode ter um verdadeiro compromisso com a comunidade, pois não faz parte dela: trata-se, de fato, de uma tropa só mercenária. Os homens são escolhidos por virem de Miséria e são mantidos na exclusão pela retribuição medíocre e pela distância social. Excluídos da comunidade, eles podem, com razão, considerar-se tão fora-da-lei quanto os bandidos que é sua tarefa reprimir. Aliás, é com isso que eles amedrontam os infratores (e não só eles), estando dispostos a praticar uma repressão tão desregrada quanto o ato delinquente que eles reprimem.
Os membros da comunidade queixam-se, justamente, de recear às vezes mais essa polícia do que os próprios bandidos. Mas acontece que essa maneira de instituir uma polícia é escolhida por comunidades decididas a manter amplas margens de excluídos, talvez provindos do mesmo lugar onde é recrutada a tropa dos policiais. Os cidadãos, portanto, querem proteger-se contra essa massa, que, visto que é excluída, não tem por que respeitar as leis da comunidade. E, para conter os excluídos, o que é melhor do que uma tropa de excluídos?
Além disso, os cidadãos logo descobrem que, se essa polícia é perigosamente descomprometida com as leis, em compensação ela é sensível à corrupção. O laço mercenário inicial é assim consolidado por uma série de contratos privados, que oferecem bicos e salários paralelos a cabos e policiais para que, fora ou dentro do horário de seu trabalho, eles sirvam de segurança particular.
Há um segundo caminho possível. A comunidade escolhe entre seus membros os que parecem mais aptos ao trabalho de defesa da ordem. Os mais corajosos, mais hábeis no uso das armas e mais íntegros tornam-se policiais. São honrados e recompensados de forma a manter concretamente um status social respeitado.
Os cidadãos sabem que algumas profissões devem ser especialmente valorizadas aos olhos de todos. Por exemplo, é importante que os encarregados de educar as crianças sejam vistos como sujeitos que se deram bem na vida. Pois as crianças mal confiariam em pessoas que a sociedade julgasse fracassadas. Por isso a comunidade remunera e honra especialmente seus professores (não é?). A mesma coisa vale para a polícia. Que a profissão de policial apareça como uma escolha de sucesso é um fundamento relevante da autoridade do policial.
Conclusão: no primeiro caso, todos acatam a polícia por medo de sua violência; no segundo, o acatamento confunde-se com o respeito devido a cidadãos que se consagram a uma tarefa necessária e que são parte integrante da comunidade -sua profissão aparecendo como uma das formas de êxito social.
Agora, imaginemos que, num belo dia, ao redigir uma nova Constituição, os cidadãos especifiquem que os que servem aos interesses cruciais da comunidade não podem fazer greve. Razões: o funcionário faria greve, paradoxalmente, contra si mesmo, pois a coisa pública é administrada no interesse dele. E, sobretudo, o compromisso do funcionário-cidadão com o bem geral impede que ele se engaje numa forma de protesto danosa para a vida de todos.
Esses raciocínios valem no caso da polícia apenas se, na hora de alistar a tropa, a comunidade tenha escolhido seus melhores, os que ela honra e recompensa. No caso da comunidade que arregimenta excluídos, os ditos raciocínios não funcionam, pois esses policiais não têm compromisso com o bem de todos por não fazerem parte dos "todos" que importam. Então, estando insatisfeitos, por que não recorreriam à greve?
A greve, nesse caso, revela a natureza da polícia que a comunidade comprou (barato). O protesto apresenta-se como uma insurreição de gladiadores ameaçando os cidadãos, exibindo armas do teto dos quartéis, em provocação parecida com aquela dos fora-da-lei quando se amotinam nas prisões. Ou, então, os grevistas percorrem as ruas da cidade como patrulhas do terror, numa pantomima de arrastões criminosos.
Moral da história: numa democracia, seria melhor que todos fossem cidadãos de direito e de fato, sem exclusões. No caso infeliz de que uma democracia conviva com amplas margens de exclusão, a comunidade, no mínimo, deveria evitar que fossem e permanecessem excluídos logo os que são encarregados de representar e preservar as leis da cidade.
Iria esquecer: qualquer semelhança com fatos da vida real recente na Bahia não é mera coincidência.
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