quinta-feira, 26 de julho de 2001

"Valet Parking" e cidadania

Durante o fim de semana passado encontrei um amigo e li um livro.

Não direi o nome do amigo por razões óbvias. Conheci X nos anos 80, quando ele era segurança num hotel onde eu me hospedava com frequência. Desde então, trocamos regularmente notícias sobre família, trabalho etc.

Um ano atrás, depois de um penoso período de desemprego e bicos, X conseguiu um cargo mais estável, como motorista de "valet parking". Aprendi nessa ocasião que, em São Paulo, o "valet parking" é frequentemente um serviço terceirizado. O vínculo dos motoristas não é com os estabelecimentos onde exercem seu ofício, mas com empresas prestadoras de serviço.
X tem dois filhos. Seu salário está por volta de R$ 280 por mês -sua mulher não pode trabalhar em tempo integral e ganha menos do que ele. As gorjetas que ele recebe não são muito significativas: quando o serviço é cobrado e não oferecido, os clientes acham que já pagaram o devido. O horário de trabalho vai do meio-dia à madrugada. No caso dos restaurantes (o mais frequente), há poucos clientes entre o almoço e o jantar. Portanto, a empresa outorga um generoso intervalo de três ou quatro horas. Os motoristas moram longe demais para voltar para casa, descansar, ver os filhos etc. Ficam numa parada forçada que é chamada de repouso e serve para que não surja a questão das horas extras.

Apesar dessas condições que nos parecem pouco ideais, X estava feliz de ter conseguido, enfim, um trabalho fixo. Eis que, acidentalmente, ele danificou um carro. O seguro das empresas de "valet parking" tem uma franquia, geralmente, de R$ 1.000. Em caso de acidente, quem você acha que pagará os danos até o valor da franquia? Você deve ter adivinhado: o funcionário.
Disseram a X que, com a crise, não havia como a empresa assumir a fatura, mas que (de novo, "generosamente') deixariam que ele pagasse aos poucos. Durante os próximos meses, o salário de X será a metade do que era, até o reembolso completo dos danos.

É normal que a empresa prefira que os funcionários não batam os carros que lhes são confiados. Seria compreensível que ela instituísse regras do tipo: quem bate duas vezes num mês procure um emprego diferente. Mas aqui trata-se de outra coisa: a atividade empresarial repassa sistematicamente seus riscos ordinários e sua responsabilidade para os funcionários.
X poderia recorrer à Justiça do Trabalho. Ganharia, mas acabaria perdendo seu emprego. E a reputação de encrenqueiro fecharia qualquer possibilidade de trabalho no ramo. Melhor deixar uma eventual ação trabalhista para depois da aposentadoria, mas será tarde para as necessidades imediatas de seus filhos pequenos.

Com o salário cortado pela metade e sobretudo com a sensação de que a lei existe e pode até ser justa, mas não vale para ele, por que X não escolheria a delinquência? Afinal, ele é vítima de um abuso contra o qual a lei quer e pode ampará-lo, mas descobre que a sociedade, no seu caso, torna a lei inoperante. Ou seja, há um pacto social, mas do qual ele é excluído à força. Por que, então, respeitar as regras?

O relato dos apertos de X acompanharam minha leitura de "Cidadania no Brasil o Longo Caminho", de José Murilo de Carvalho (Civilização Brasileira), que, de maneira concisa, clara e indispensável, percorre a história dos direitos civis, políticos e sociais no Brasil.

No fim do livro, esta declaração: "José Bonifácio afirmou que a escravidão era um câncer que corroía nossa vida cívica e impedia a construção da nação. A desigualdade é a escravidão de hoje, o novo câncer que impede a constituição de uma sociedade democrática".

A desigualdade da qual se trata não é apenas de renda. Também, hoje, não é propriamente uma desigualdade civil ou política, pois, segundo a letra da lei, não há mais, entre nós, cidadãos de segunda classe.

O lugar de nosso maior mal-estar social parece estar no descompasso entre esse princípio formal e a realidade concreta. Acontece que os cidadãos das camadas mais pobres estão mudando a imagem que eles têm de si mesmos. X, por exemplo, sabe que ele não é nem servo nem escravo: ele tem direitos. Mas, ao mesmo tempo, ele é levado a tolerar uma punição e a mostrar gratidão, como um escravo. Por quê? Será que a lei não é clara? Precisa melhorá-la ou implementá-la melhor? Infelizmente, o problema, nessa altura, parece ser de solução mais difícil, pois ele é cultural ou mesmo francamente psicológico: reside na representação das classes "inferiores" no espírito de uma boa parte das elites. Coquetel complicado: os desfavorecidos começam a acreditar na igualdade dos direitos e a se ver como possíveis cidadãos. No entanto, muitos favorecidos seguem percebendo ao redor (e abaixo) de si apenas um exército de servos e escravos -para os quais imaginam e querem, por exemplo, que valha a regra: "Quebrou um prato? Leva açoite e fica sem comida!".

A violência que assola as últimas décadas não precisaria de outra causa. Bastaria esta contradição.

quinta-feira, 19 de julho de 2001

Polícia em greve



Em qualquer democracia, mesmo ideal, é necessário que haja uma força de polícia para manter a ordem e implementar as leis que os cidadãos se dão e às quais eles se submetem de um comum acordo. Parece haver duas maneiras opostas de instituir uma polícia.

Primeira possibilidade. Talvez para conter os gastos, os cidadãos procuram candidatos alhures -por exemplo, num país chamado Miséria, cujos habitantes aceitam trabalhar por salários de mera sobrevivência, ou seja, sem nenhum lustre social. Eles contratam, assim, soldados e cabos a preço de banana, enquanto a comunidade fornece apenas os oficiais.

A tropa arregimentada dessa forma dificilmente pode ter um verdadeiro compromisso com a comunidade, pois não faz parte dela: trata-se, de fato, de uma tropa só mercenária. Os homens são escolhidos por virem de Miséria e são mantidos na exclusão pela retribuição medíocre e pela distância social. Excluídos da comunidade, eles podem, com razão, considerar-se tão fora-da-lei quanto os bandidos que é sua tarefa reprimir. Aliás, é com isso que eles amedrontam os infratores (e não só eles), estando dispostos a praticar uma repressão tão desregrada quanto o ato delinquente que eles reprimem.

Os membros da comunidade queixam-se, justamente, de recear às vezes mais essa polícia do que os próprios bandidos. Mas acontece que essa maneira de instituir uma polícia é escolhida por comunidades decididas a manter amplas margens de excluídos, talvez provindos do mesmo lugar onde é recrutada a tropa dos policiais. Os cidadãos, portanto, querem proteger-se contra essa massa, que, visto que é excluída, não tem por que respeitar as leis da comunidade. E, para conter os excluídos, o que é melhor do que uma tropa de excluídos?

Além disso, os cidadãos logo descobrem que, se essa polícia é perigosamente descomprometida com as leis, em compensação ela é sensível à corrupção. O laço mercenário inicial é assim consolidado por uma série de contratos privados, que oferecem bicos e salários paralelos a cabos e policiais para que, fora ou dentro do horário de seu trabalho, eles sirvam de segurança particular.

Há um segundo caminho possível. A comunidade escolhe entre seus membros os que parecem mais aptos ao trabalho de defesa da ordem. Os mais corajosos, mais hábeis no uso das armas e mais íntegros tornam-se policiais. São honrados e recompensados de forma a manter concretamente um status social respeitado.

Os cidadãos sabem que algumas profissões devem ser especialmente valorizadas aos olhos de todos. Por exemplo, é importante que os encarregados de educar as crianças sejam vistos como sujeitos que se deram bem na vida. Pois as crianças mal confiariam em pessoas que a sociedade julgasse fracassadas. Por isso a comunidade remunera e honra especialmente seus professores (não é?). A mesma coisa vale para a polícia. Que a profissão de policial apareça como uma escolha de sucesso é um fundamento relevante da autoridade do policial.

Conclusão: no primeiro caso, todos acatam a polícia por medo de sua violência; no segundo, o acatamento confunde-se com o respeito devido a cidadãos que se consagram a uma tarefa necessária e que são parte integrante da comunidade -sua profissão aparecendo como uma das formas de êxito social.

Agora, imaginemos que, num belo dia, ao redigir uma nova Constituição, os cidadãos especifiquem que os que servem aos interesses cruciais da comunidade não podem fazer greve. Razões: o funcionário faria greve, paradoxalmente, contra si mesmo, pois a coisa pública é administrada no interesse dele. E, sobretudo, o compromisso do funcionário-cidadão com o bem geral impede que ele se engaje numa forma de protesto danosa para a vida de todos.

Esses raciocínios valem no caso da polícia apenas se, na hora de alistar a tropa, a comunidade tenha escolhido seus melhores, os que ela honra e recompensa. No caso da comunidade que arregimenta excluídos, os ditos raciocínios não funcionam, pois esses policiais não têm compromisso com o bem de todos por não fazerem parte dos "todos" que importam. Então, estando insatisfeitos, por que não recorreriam à greve?

A greve, nesse caso, revela a natureza da polícia que a comunidade comprou (barato). O protesto apresenta-se como uma insurreição de gladiadores ameaçando os cidadãos, exibindo armas do teto dos quartéis, em provocação parecida com aquela dos fora-da-lei quando se amotinam nas prisões. Ou, então, os grevistas percorrem as ruas da cidade como patrulhas do terror, numa pantomima de arrastões criminosos.

Moral da história: numa democracia, seria melhor que todos fossem cidadãos de direito e de fato, sem exclusões. No caso infeliz de que uma democracia conviva com amplas margens de exclusão, a comunidade, no mínimo, deveria evitar que fossem e permanecessem excluídos logo os que são encarregados de representar e preservar as leis da cidade.

Iria esquecer: qualquer semelhança com fatos da vida real recente na Bahia não é mera coincidência.

quinta-feira, 12 de julho de 2001

A face maléfica dos adultos

A comissão de suspensão das penas do Estado de Massachusetts, EUA, acaba de pronunciar-se a favor da liberação antecipada de Gerald Amirault, 47 anos (os últimos 15 na cadeia). É o epílogo de um vasto fenômeno cultural dos anos 80.

Amirault, sua irmã e sua mãe animavam a escolinha de Fells Acres, em Malden, MA. Num belo dia de 1984, um aluno de cinco anos disse à sua mãe que fora molestado por Gerald Amirault. Depois de uma orgia de interrogatórios, Gerald foi condenado pelo estupro de seis meninas e três meninos, enquanto sua irmã e sua mãe teriam estuprado três meninas e um menino.

Seguiram-se muitos processos parecidos pelo país afora. As crianças contavam abusos saídos de uma versão pornô dos contos de Grimm. Houve o palhaço que levava as crianças para o quarto mágico e mandava comer o almoço na ponta de seu peru. E a bruxa nua que tocava "Jingle Bells" no piano. A escassez de provas materiais competia com a incompetência (ou má-fé) dos procuradores durante os interrogatórios das crianças.

Até os meados dos anos 90, as fantasias sexuais infantis condenaram dezenas de professores, padrastos, madrastas, pais, avós etc.

Na mesma época, afirmou-se a Teoria da Memória Recuperada, segundo a qual muitas aflições psíquicas dos adultos seriam causadas por abusos reais sofridos durante a infância.
Em suma, de 1985 a 1995, nossa cultura -em sua matriz norte-americana- decidiu que as crianças, quando acusavam os adultos de maluquices sádicas, deveriam estar falando a verdade. E, ao mesmo tempo, autorizou-nos a atribuir sistematicamente nossos sofrimentos à suposta crueldade dos que teriam abusado de nós enquanto éramos crianças.

Em 1995, Frances Hill, no livro "A Delusion of Satan" (Um Delírio de Satã), comparou esses processos por abuso de crianças com a caça às bruxas de Salem no século 17 (as acusações provinham de um coro de meninas). Hill lembrava que, desde 1985, nos EUA, 60 pessoas, acusadas de múltiplos abusos, tinham sido condenadas a passar suas vidas na prisão. E 2,5 milhões de americanos maduros ou idosos foram acusados por seus filhos ou netos já adultos que haviam "recuperado" a lembrança de terem sido vítimas de abuso na infância.

Duplo estrago: milhares de famílias destruídas e, por outro lado, a extrema dificuldade, nessa loucura, de reconhecer os abusos verdadeiros, que, naturalmente, continuaram existindo.

Por que tudo isso? Há uma série de hipóteses. Por exemplo, nota-se, na maioria dos casais de classe média, que, durante os anos 70 e 80, ambos os cônjuges passaram a trabalhar. A culpa por deixar as crianças pequenas aos cuidados de outros devia alimentar fantasias sobre os horrores que poderiam acontecer. Ao denunciarem professores e "babysitters", as crianças adotariam as fantasias produzidas pelo sentimento de culpa de seus pais.

Outra hipótese: os anos 80 foram um momento de reação à liberação sexual dos 60. Nesse quadro, era interessante mostrar que a sexualidade chegava às crianças só pela violência de adultos corruptores.

As várias explicações são todas plausíveis, mas não esgotam a significação das acusações lançadas pelas crianças e pelos adultos que "se lembraram" de abusos sofridos na infância.
É óbvio que a grande maioria das acusações não correspondia aos fatos. Mas a massa de denúncias representava um protesto coletivo. Como se, nos anos 80, a infância se revoltasse ao descobrir alguma face maléfica dos adultos.

É frequente que os adultos modernos sejam acusados de desejar o bem de seus rebentos apenas por razões narcisistas, ou seja, por considerá-los como extensões de suas próprias vidas. Tipo: "Seja feliz por mim! Realize meus sonhos!". Esse amor narcisista pode provocar consequências nefastas nas crianças. Mesmo assim, é um tipo de amor.

Mas é raro que se levante a questão da inveja (inconsciente ou não) que os adultos e os pais podem sentir das crianças. Ou então que se fale do ódio produzido nos adultos pelo fato de que os rebentos, por existirem, tomam nosso lugar e tocam o sino de nossa morte.

Do mesmo jeito, estamos sempre dispostos a desvendar as paixões de Édipo e a reconhecer que as crianças podem alimentar fantasias mais ou menos torpes com um adulto desejado ou podem querer que ele morra. Mas evitamos interrogar as ambivalências e os cantos escuros das fantasias dos adultos com as crianças. Jocasta, por exemplo, caiu na jogada de Édipo só por engano?

Ora, nos anos 80, os adultos dedicaram-se como nunca a seu próprio projeto de bem-estar. Propuseram-se a ser eles mesmos felizes em vez de seguir planejando a felicidade futura de suas crianças. Logo estas devem ter percebido que eram vistas como rivais e usurpadoras mais do que como preciosas encarnações das esperanças dos pais. Eram, portanto, objetos de menos amor, mais inveja, mais ódio e mais violência. Com isso as crianças espernearam e, sobretudo, acusaram.

Com razão, pois, de fato, os sentimentos que os adultos lhes reservavam não eram todos confessáveis. A coisa mudou?

quinta-feira, 5 de julho de 2001

Gorilas entre nós

Num pequeno hall, seis jovens estão dispostos num círculo. Três estão de branco, e três, de preto, intercalados, ou seja, há um de branco, um de preto etc. Constituem dois times, cada um dos quais dispõe de sua bola própria. Os times movimentam essa bola entre seus integrantes com passes rápidos. Ao mesmo tempo, o círculo inteiro dos seis jovens gira em sentido horário. Os times não lutam entre si, mas, por causa do movimento, do espaço restrito e da simultaneidade dos passes dentro dos dois times, o jogo é bem animado.
De repente, chega um gorila, na verdade, um sujeito disfarçado de gorila. Ele atravessa o círculo dos jogadores e pára no meio. Os jovens continuam jogando como se não percebessem nada. O gorila olha para você, bate furiosamente no peito, como se espera de um gorila, e sai de cena. O bicho ficou no hall durante nove segundos.

Numa experiência recente do Laboratório de Cognição Visual de Harvard (www.wjh.harvard.edu), essa cena foi mostrada em vídeo a pessoas que, antes de assistirem à fita, receberam a tarefa de contar o número de passes efetuados pelo time branco. Foi suficiente para que a metade dos participantes não notasse a passagem do gorila.

No site do laboratório, é possível ver um trecho do vídeo. Quem assistir achará incrível que alguém não note o gorila. Mas nós não somos mais sujeitos "inocentes", pois sabemos do gorila. Por isso ele catalisa nosso olhar.

A experiência (publicada em "Perception", vol. 28) é uma contribuição ao estudo da dita "cegueira por desatenção" diante de objetos visuais complexos e dinâmicos (seis jogadores, todos se movimentando etc). Aprendemos que a capacidade de perceber um objeto inesperado depende de sua similaridade com os objetos sobre os quais está concentrada a atenção: no caso, a similaridade é mínima, pois o gorila é escuro e os circunstantes devem contar os passes do time branco. Outra variável é a complexidade da tarefa imposta aos presentes: contar os passes pede bastante concentração.

Seja como for, a denominação "cegueira por desatenção" é equivocada. De fato, a cegueira é produzida por um excesso de atenção. Os sujeitos não vêem o gorila porque têm algo para fazer que é, para eles, mais importante do que observar o que acontece: devem e querem contar os passes.

Os psicoterapeutas e os psicanalistas simpatizarão com a experiência. Freud recomendava que os pacientes fossem escutados com uma atenção "flutuante", ou seja, aberta, não-focalizada -justamente para não perder a entrada dos gorilas. Ele também aconselhava que os psicanalistas não se entregassem ao furor de curar. Qualquer terapia se propõe a melhorar a vida dos pacientes, mas o anseio de sarar pode funcionar como uma atenção excessiva consagrada ao número dos passes do time branco.

Bem além do campo da psicoterapia, a experiência do laboratório de Harvard sugere uma revisão do triunfalismo das teorias, digamos assim, "ativas" do conhecimento, pelas quais a crítica e a vontade de mudar as coisas seriam os caminhos privilegiados para entender o mundo -mote: conheçam transformando.

Ora, segundo a experiência do gorila, uma percepção plena exige um olhar não-orientado e não-atarefado, ou seja, ela precisa de uma certa aceitação do mundo. Em outras palavras, é importante querer construir pontes, mas, se olharmos para o vale sempre e só com essa intenção, perderemos de vista o rio, as montanhas e até as pessoas que queremos ajudar a atravessar. Quando nos deparamos com uma análise de situações sociais, políticas ou mesmo familiares decididamente orientada por intenções reformadoras, sugiro que paremos um instante para perguntar: "Alguém viu um gorila por aqui?".

Durante as férias escolares, canso de ouvir pais receosos de que os filhos adolescentes se encontrem sem nada para fazer, desconcentrados. Gostariam de que seus rebentos fossem sempre atarefados, sem tempo para vagabundear. Entendo por quê: uma das figuras ideais do sucesso é o sujeito ocupadíssimo e focadíssimo. Não por acaso o sofrimento psíquico é hoje frequentemente resumido segundo duas vertentes principais: a depressão e a dificuldade de concentrar-se, o dito Attention Deficit Disorder (ADD). Essas categorias são exatamente o inverso da figura que mencionei acima: o deprimido não se ocupa o suficiente, e o sujeito com déficit de atenção não focaliza. Nos termos da experiência de Harvard, o deprimido acharia que não vale a pena contar esses passes, e o sujeito com déficit de atenção não se concentraria o suficiente para contar. Com isso eles certamente enxergariam o gorila.

O sujeito ideal, no fim do vídeo, mostrará a conta certa, orgulhoso e convencido de responder às expectativas que foram depositadas nele.

Infelizmente, a metade desses sujeitos prestativos, por mostrarem serviço, não verá o gorila.
Entretanto talvez ninguém esteja a fim mesmo de reparar nos eventuais gorilas que circulam no meio da gente

domingo, 1 de julho de 2001

Fratura Americana


Contardo Calligaris
Manifestação contra a pena de morte no dia da execução de McVeigh


por Contardo Calligaris



Decadência econômica das pequenas cidades dos EUA causada pela globalização e a imigração faz ressurgir a defesa dos ideais fundadores da nação americana, que para muitos se encarnam no discurso de Timothy McVeigh, executado no último dia 11


Ao lado do entrada da Penitenciária Federal de Terre Haute, Indiana, dois dias antes da execução de Timothy McVeigh (que ocorreu em 11/ 6), piscava um painel luminoso: "A favor: encaminhem-se para Voorhees Park; contra, para Fairbanks Park". A polícia queria evitar brigas entre manifestantes. Mas o painel também orquestrava as questões levantadas pela execução, prevendo que só haveria opiniões a propósito da pena de morte: a favor ou contra, tanto faz. A cobertura de imprensa confirmou a previsão: foi excessiva e denegatória. Falava-se de execução e pena de morte, no entanto ninguém estava a fim de perguntar por que McVeigh matou e morreria. Para outra execução, uma semana depois, estiveram em Terre Haute 75 jornalistas credenciados. Para McVeigh, houve mais de mil. Certo, há a magnitude do crime: o atentado contra o edifício federal de Oklahoma City, em 1995, matou 168 pessoas, entre as quais 19 crianças. Mas suspeito que a comoção nacional em torno da execução de McVeigh tivesse também outro fundamento. McVeigh não era um criminoso comum. Morreu convencido de ter agido "pelo bem maior de todos" e de ter adotado "táticas militares legítimas" em sua luta contra o governo federal -considerando a morte das crianças e das vítimas que não eram funcionários federais como danos inevitáveis numa guerra.

Divórcio exasperante
O livro de Lou Michel e Dan Herbeck, baseado em entrevistas com McVeigh ("American Terrorist", Regan Books, EUA), confirma a imagem do soldado exemplar que virou um "regicida" moderno por convicção.

Na fase final do processo de McVeigh, quando se tratava de decidir a pena, a defesa apresentou ao júri uma série de atenuantes. Por exemplo, McVeigh acreditava que agentes federais fossem os responsáveis pelas mortes acontecidas em Ruby Ridge e Waco (leia textos na pág. 11) e que esses agentes ficaram impunes. Também pensava que os agentes do governo usavam táticas militares para transformar os EUA num Estado policial.

Os jurados levaram em conta ambos os atenuantes. Logo foi apresentada a idéia de que McVeigh acreditava profundamente "nos ideais sobre os quais são fundados os EUA". Admitir essa tese significaria conceber que a revolta assassina de McVeigh pudesse surgir da defesa enlouquecida dos princípios originários da nação. Os jurados tiveram que recusar essa idéia para condenar McVeigh à morte. Mas alguns americanos pensam que existe um divórcio exasperante entre o país e seus ideais fundadores. Com isso, abominam a bomba de Oklahoma, mas, de alguma forma, "entendem" McVeigh.

No sábado anterior à execução, bem na frente da penitenciária, instalou-se um manifestante que não cabia em nenhum dos parques previstos.

Era Chuck Scines, 56, inspetor de ferrovias de Dayton, Ohio. Seu cartaz dizia de um lado: "O mal vinga quando as pessoas boas não fazem nada. Deus trabalha por meio de nós... Mantenham-se firmes na liberdade". Do outro, explicitando: "Poucos comparecem quando um apelo às armas se justifica. Tim McVeigh, patriota americano!". A seguir, reproduzo e comento trechos do que ele me disse: "Tomei minha decisão há tempos, quando tive quatro filhos e me dei conta de que estamos perdendo a liberdade nos EUA e de que há uma agenda socialista para instaurar um governo mundial único" (do seu jeito, Chuck está falando da globalização e do aumento vertiginoso das regulamentações profissionais, fiscais, sociais que regem o cotidiano americano). "Portanto lutei contra o controle das armas (todas as leis para limitar posse e uso de armas), defendendo o artigo 2º da "Carta de Direitos'" (parte da Constituição americana -o artigo 2º garante o direito de carregar armas). "Timothy McVeigh era frustrado pelo que aconteceu em Waco, Texas, onde o governo fritou mais de 80 pessoas, ou em Ruby Ridge, Idaho, onde os agentes pulverizaram a metade da cabeça de Vicky Weaver e mataram seu filho de 14 anos. Não tinham direito nenhum de fazer isso, eram indivíduos como você e eu. Ninguém está enfiando uma agulha no braço de Janet Reno (ministra da Justiça na época de Waco e Ruby Ridge) por isso. Ora, ela é responsável, ela tomou a decisão no caso de Waco e declarou que tinha sido uma operação de primeira classe... Só que, por acaso, havia lá 16 crianças, que morreram. Agora Timothy McVeigh está lá assumindo a responsabilidade pelo que ele fez. Eu sou a favor da pena de morte. Entendo as frustrações de McVeigh, mas não concordo com seu alvo.... A América está indo pelo ralo do esgoto."

Uma nova fratura
Nessa altura, um repórter do News Channel 15, que se aproximara escutando e gravando, não se conteve e perguntou: "Você é contra a pena de morte?". Resposta imediata: "A pena de morte não é a questão. A América é a questão".

O repórter não devia ser surdo. Mas entre ele e Scines corre uma fratura que divide a América -mais dolorosa do que a fratura entre velha e nova economias e talvez mais irremediável do que a própria fratura racial.

No mundo do qual o repórter faz parte, é inaceitável agir por idéias. Só se age por interesse ou por problemas psicológicos. Um psiquiatra que examinou McVeigh disse que o terrorista encontrara na bomba de Oklahoma seu antidepressivo. A monstruosa revolta de McVeigh era reduzida à patologia kitsch do momento -manifestação de um cinismo para o qual a motivação ideal é um disparate.

O repórter do News Channel 15 não ouve as idéias. Scines fala que a América vai pelo ralo do esgoto -suspeito que o repórter pense nas dificuldades do índice Nasdaq -Bolsa eletrônica que reúne as ações das companhias de alta tecnologia. Scines fala de liberdade, de abusos etc. -o repórter pergunta sobre a pena de morte para cortá-lo. Não quer saber de um delírio que pode atrapalhar o funcionamento divertido da prosperidade.

O repórter, coberto de acessórios de vestimenta e tecnológicos de última moda, é um membro representativo da corte da mídia que cobria a execução.


A modernização torna insignificantes aqueles americanos sem os quais a América não tem muito como se definir -é só um colosso poderoso


Eles são todos urbanos, elegantes, supertecnológicos, se locomovendo pelo gramado ao redor da prisão a bordo de carrinhos de golfe, pendurados em celulares e agendas eletrônicas, chamando alternadamente seus agentes financeiros em Wall Street ou suas redações. Eram quase obscenos, no contexto. Scines, em uniforme de americano médio, está de cara fechada. Seu veredicto sobre a América é acompanhado de lágrimas não fingidas.

A ética da sentinela
Scines não está sozinho. De onde vêm os recrutas? Há o êxodo rural das grandes planícies. No centro dos Estados Unidos, nos anos 90, mais de 60% dos condados perderam habitantes. Multiplicaram-se as cidades-fantasma e as fazendas abandonadas. Numa espécie de vingança da história, os índios voltam a habitar as terras das quais foram expulsos no passado, enquanto os colonos que desbravaram o Oeste vão à falência. E há, sobretudo em zonas industriais menores, pequenos artesãos e comerciantes que são as vítimas da globalização. Perderam seus empregos com a saída de fábricas para o México, a Indonésia etc. e com a chegada de imigrantes trabalhando abaixo do custo sindical. Chuck é inspetor da ferrovia.

Em Terre Haute encontrei outros manifestantes libertários: um perito químico, um marceneiro, um pedreiro -todos habitantes de pequenas cidades. A prosperidade das últimas décadas é hiperurbana -das grandes cidades ou da cidade mundial que é a rede.

O campo (as fazendas familiares) e os pequenos cidadãos das pequenas cidades são os derrotados habituais de qualquer modernização. Mas, no caso americano, esses derrotados têm um estatuto especial: podem afirmar com razão que, com eles, são derrotados os valores essenciais da nação. Essa classe de pequenos fazendeiros e de trabalhadores da América das pequenas cidades é o modelo mítico da vida americana.

O próprio repórter do News Channel 15, quando casar e tiver filhos, fugirá da cidade para os subúrbios, convencido de que esses são o melhor lugar onde educar suas crianças. E os subúrbios devem seu charme à idéia de que imitariam a vida da América das pequenas cidades (das quais são, de fato, a caricatura medonha). Do mesmo jeito, quando ele levar os filhos à Disneylândia, seu passeio por Main Street será um tributo (fúnebre) à América das pequenas cidades.

A modernização torna insignificantes, logo, aqueles americanos sem os quais a América não tem muito como se definir -é só um colosso poderoso.

O sentimento desses americanos, como o de Chuck, é facilmente libertário. Defensores ciumentos das liberdades fundamentais que foram inventadas pela revolução americana, eles se opõem a quase todas as regulamentações governamentais. Nenhuma concessão por razões de interesse, conforto ou saúde pública: são contra a interdição de fumar, o limite de velocidade e a obrigação de usar cinto de segurança. As regras são ruins por serem regras.

Esse integrismo da liberdade comanda uma ética da sentinela, tensa, alerta -e paranóica.

A distância da ética dominante -a do bem-estar- não poderia ser maior. Ela alimenta o desprezo pelas ondas de imigração recente (legais ou ilegais) que vieram confessadamente ganhar e gastar melhor -e não guardar, de armas na mão, o reduto da liberdade. Contradição insolúvel: a liberdade que os libertários almejam é possível no isolamento do colono das grandes planícies ou então na comunidade harmoniosa da mítica pequena cidade. Aí reinariam convenções espontâneas, compartilhadas por todos e, portanto, nunca impostas. Mas a mítica pequena cidade (se é que já existiu) está morrendo também por causa da própria liberdade que ela promove. Seus filhos saem à procura de mais liberdade ainda. Emigram para a metrópole para desprenderem-se dos laços tradicionais da pequena comunidade. Ora, na cidade grande, para que se possa conviver, a convenção comunitária perdida deve ser substituída por regulamentações. O sonho de liberdade vira pesadelo, pois a cidade grande exige uma formalização e uma proliferação de regras bem mais opressivas do que os códigos que regravam a vida da cidade pequena. McVeigh era de uma pequena cidade: Lockport, no oeste do Estado de Nova York. Após a Guerra do Golfo, ele circulou, nômade, pelas feiras de armas, vivendo no carro. Boa receita para um desastre: um libertário que perde o vínculo com a comunidade.

Sentimento popular
Atrás das fileiras em que milita Scines, há um sentimento popular difuso. Voltando de Terre Haute em direção a Indianápolis, parei em Brazil, em Indiana. Nina, 54, é caixa da farmácia CVS na esquina da rua 40 com a 59. Perguntou se eu estava na região por causa da execução de McVeigh e quis saber o que eu pensava. Disse que achara um dia triste para todos. Ela: "Você é de que parte dos EUA?". Respondi: "De Bôôst'n", carregando o sotaque da Nova Inglaterra. Nina falou da pena que sentia, como muitos outros, pelo pai de Timothy McVeigh -numa espécie de identificação. Lidava como podia com a contradição entre o horror de Oklahoma e a familiaridade de McVeigh: "Talvez alguém tenha lhe dado uma droga para ele fazer isso... Quero dizer: ele é americano". Tomei o partido de concordar, sempre. No fim, Nina chamou as colegas: queria mostrar alguém da Costa Leste que pensava como ela (ou como elas). Era uma festa imaginar que o país talvez não estivesse irremediavelmente dividido. O drama é que McVeigh, monstruoso por seu ato, defendia valores que talvez sejam banais no coração da América profunda.

O controle das armas
O controle das armas é o último baluarte dos libertários, o lugar da resistência final. Pois é aqui que eles descobrem e reivindicam a herança do espírito de 1776. Afinal, a Revolução Americana foi isto: pequenos fazendeiros, artesãos e burgueses, cada um com sua espingarda, se revoltando contra o soberano, porque não gostavam de impostos e regulamentações. Criaram uma nação sobre o princípio (por eles posto em prática) de que um povo tem direito a se rebelar. As armas não são apenas o símbolo, mas a possibilidade concreta da insurreição. Distribuídas, elas são um instrumento da razão ilustrada: afirmam que o poder está em última instância com o povo, que o povo pode revogar o poder que ele delegou e se defender, se surgir um tirano. Elas são, desde a Revolução Americana, o símbolo histórico do fim de uma relação incondicional com a autoridade. Devolver as armas -ou mesmo limitar sua posse- significa, para os libertários, devolver concretamente a essência da liberdade política. Portanto, a vontade do governo federal de controlar as armas produz, como no cartaz de Chuck, um apelo às armas. O enfrentamento já começou e é horrivelmente sangrento. Sobre esse tema, o mal-entendido entre as duas Américas é penoso e total. Em Stilesville, Indiana, como um sanduíche no Mill Creek Inn. Atmosfera reservada, ninguém queria puxar conversa sobre McVeigh. Mas um dos clientes saiu atrás de mim. Apoiados em sua pickup batida, com placas de Indiana, conversamos. Disse: "Sabe qual é a razão por que querem controlar as armas, de maneira que só a polícia e os federais de todos os tipos tenham acesso a elas? Eles têm uma razão: é que, na América deles, eles têm drogas, merda e porcaria. Por isso eles querem controlar as armas. Mas o que nós temos a ver com a América deles?". Pedi seu nome. Desconversou.

Postscriptum
Estamos acostumados a pensar que o processo de globalização é a mesma coisa que a difusão pelo mundo afora do modo de vida americano. Ora, a América, nesse processo, se perde tanto quanto nós nos perdemos.

Do ponto de vista do homem global, o americano das pequenas cidades é tão exótico (e desprezível) quanto uma baiana ou um gondoleiro. O desprezo e as caricaturas são aqui formas de repressão. Entende-se por quê. No caso, o integrismo da liberdade que sobrevive e protesta na América profunda é a contestação de um axioma crucial da globalização. Pois ele repete e grita que a liberdade inventada pela Revolução Americana tem pouco a ver com a liberdade dos mercados.