quarta-feira, 31 de janeiro de 2001

A MISÉRIA DO CAPITAL 6

Até o ano que vem, em Porto Alegre
CONTARDO CALLIGARIS

DE PORTO ALEGRE

Na última manhã do Fórum, a cerimônia de encerramento está atrasada. O plenário, repleto, entoa coros. Paro na frente da sala de imprensa, que já começa a esvaziar. Uma faixa chama a minha atenção: "Legalizar o aborto é possível" -é o resto de uma pequena manifestação do dia anterior. De repente, estranho: num país onde as mulheres encaram o pesadelo dos abortos artesanais, um Fórum dito Social mal tocou no assunto. Também a presença feminista foi tímida. Havia um estande do Grupo de Apoio e Prevenção à Aids e certamente houve oficinas preocupadas com o cotidiano dos corpos e dos desejos. Mas foi difícil encontrá-las.

Até visualmente o Fórum foi dominado pelos bonés vermelhos da CUT, as bandeiras do PT e os bonés verdes da Via Campesina. Nada parecido com o caleidoscópio de cores que é esperado nos encontros da nova revolta, depois de Seattle.

Em poucos minutos, no saguão meio vazio, seis delegados de oficinas diferentes me abordam. Cada um me entrega uma cópia do relatório de sua oficina. O leque vai desde um projeto de arte ecológica até a idéia de constituir uma democracia representativa mundial via Internet. A alma de meu defunto tio Ubaldo, anárquico e fanático do esperanto, deve estar nesse saguão, com seu sonho de língua universal na mão.

No entanto, no plenário, cantam "Guantanamera". Parece um resumo do Fórum: aqui no saguão, delegados de oficinas que ninguém notou procuram um último jornalista para quem confiar sua mensagem. E, na sala, bandeiras, coros, celebrações e holofotes.

A imprensa caiu na armadilha. Cobriu os comícios e entrevistou os políticos de sempre para receber as respostas de sempre. Às quatro da madrugada de ontem, heróicos repórteres escutavam mais uma coletiva de José Bové. O agricultor francês mereceria o codinome de "Lavoura arcaica": defende um protecionismo absoluto em agricultura, que seria um desastre para qualquer produtor brasileiro e que, na França, é uma carta da luta imperial francesa contra a cultura americana. E nós com isso? Os repórteres cobriam, na verdade, o MST que adotou Bové. Seguiam os holofotes manobrados pelas organizações da esquerda tradicional.

Anunciam, enfim, que o Fórum de 2002 será de novo em Porto Alegre. Ótimo. O governo do RS e a prefeitura da capital gaúcha se qualificam para hospedar o Fórum não por serem do PT, mas por realizarem uma nova forma de participação popular na administração da coisa pública.
Seria bom lembrar isso na hora de organizar e convocar 2002. Essa exortação vale apenas se existe a intenção de que Porto Alegre hospede, em 2002, um Fórum da nova esquerda -coisa que o Fórum que acabou ontem não conseguiu ser.

terça-feira, 30 de janeiro de 2001

A MISÉRIA DO CAPITAL 5

Fórum alegre

CONTARDO CALLIGARIS
DE PORTO ALEGRE

D epois de cinco dias de Fórum, me descubro entregue a uma espécie de ciclotimia. Quando estou nas oficinas da tarde - sobretudo as que são propostas por ONGs que trabalham em projetos sociais concretos -, sinto-me prestes a acreditar na possibilidade de um mundo melhor e confiante no futuro da espécie. Nos depoimentos da noite e nos painéis da manhã, meu humor é variável. Fico sombrio e irritado quando me deparo com falas projetadas para entusiasmar. As falas que entusiasmam não são necessariamente as mais políticas. Ao contrário, como notou Lula em seu testemunho, os atos mais concretos talvez sejam os mais políticos. As falas que entusiasmam (e me deprimem) são aquelas que tentam fazer apelo ao que há de pior - em mim e, portanto, devo concluir, também em meus companheiros de platéia. O que é isso? É a disposição humana a aderir para fazer grupo, acompanhada por um pensamento mágico, em que a certeza deriva do entusiasmo e da constatação de que ele é compartilhado ao redor de nós. Quando essa sensação me pega no pescoço, a desconfiança é física - uma mistura de medo com depressão. Devo ter um gene contra o entusiasmo coletivo - herança do antifascismo do meu pai. Peço vênia ao leitor se isso me leva a privilegiar, no Fórum, os momentos que mais me irritam. Por exemplo, às vezes, durante o Fórum Parlamentar (que reúne deputados e senadores de 29 países), toquei o fundo do poço: houve várias falas comprometidas só com o entusiasmo imediato dos ouvintes. Poderia aguentar firme e, por exemplo, privilegiar a plataforma que o Fórum Parlamentar apresentaria ontem. Provavelmente será um documento significativo. Afinal, o Fórum das Autoridades Locais (prefeitos e autoridades municipais) apresentou uma lista de propostas que compõem uma ética básica da administração citadina. Eu me pergunto: como seria um Fórum que me deixasse constantemente esperançoso? Seria composto de mais oficinas, poucos painéis com tarefas de trabalho bem específicas e pouquíssimos testemunhos. Nesse Fórum ideal, como foi o caso em muitas oficinas, seria bem-vindo discordar e não seriam colocados em causa os pressupostos éticos de quem discorda. Nesse Fórum, não seriam vaiados nem os que julgamos inimigos, pois todos saberiam que ninguém detém o monopólio da solidariedade. Nesse Fórum, não aceitaríamos que a descrição da realidade fosse alterada para embelezar os fracassos de nossas idéias e de nossos esforços. Nesse Fórum, um debate com participantes de Davos não seria um match de acusações para o prazer da torcida. Esse Fórum alegre, de fato, já está acontecendo durante uma boa metade do tempo - o que é um sucesso e justifica que a coisa volte a acontecer.

domingo, 28 de janeiro de 2001

A MISÉRIA DO CAPITAL 4

O perigo de ouvir só o que a gente gosta
CONTARDO CALLIGARIS
DE PORTO ALEGRE

Na tarde de sexta-feira, fui escutar Eduardo Galeano. Queria uma fala bonita, depois de oficinas específicas e práticas. Foi bonito demais.

Galeano leu uma seleção dos textos de seu livro "Patas Arriba" (1999) e abriu-se o debate.
Recebeu perguntas sobre o subcomandante Marcos, McDonald's, a repressão do narcotráfico etc.

Fosse qual fosse a bandeira levantada, ele nunca decepcionava, ou seja, sempre conseguia responder exatamente o que a platéia queria ouvir.

Afirmou, por exemplo, que "a luta contra a droga é só uma máscara da guerra contra os pobres" e que não há americanos do norte na cadeia por tráfico de drogas. A platéia ovacionou feliz.
No começo, ele falou de uma crise universal da fé na capacidade de transformar a história e o mundo.

Ele tem razão. É necessário reconstituir a confiança na possibilidade de ação.
Mas será que o melhor caminho para isso é o culto coletivo de enunciados que têm apenas a função de celebrar nossa fé comum?

É o mesmo mecanismo da missa em latim: não importa o que está sendo falado, importa a celebração.

Desde o primeiro dia do Fórum, o trabalho de quem coloca as mãos na massa complexa do mundo parece ser silenciado pelo clamor da celebração.

Assim Jorge Beinstein afirmou que temos muito o que aprender com a democracia cubana. Ahmed Ben Bella (ex-presidente da Argélia) afirmou que não há democracia nos Estados Unidos, o que, na verdade, deveria seduzi-lo, pois também disse que ele não é democrata. Todos aplaudidíssimos.

Em Davos, os participantes pagam US$ 20 mil para escutar um argumento imprevisto -não seriam loucos de pagar esse dinheiro para ouvir o que já pensam.

No Fórum de Porto Alegre, às vezes, parece que milhares vieram do mundo inteiro para ouvir exatamente o que queriam e já sabiam. É verdade que é de graça e, com isso, a festa é legal.
Mas se o problema é tomar (um pouco) as rédeas do mundo, melhor levar a realidade mais a sério.

sábado, 27 de janeiro de 2001

A MISÉRIA DO CAPITAL 3

Topografia

CONTARDO CALLIGARIS
EM PORTO ALEGRE

O parque da Harmonia -um bonito espaço arborizado na beira do rio Guaíba- abriga o acampamento das delegações indígenas e o da juventude. Neste último, leio a faixa do grupo Juventude Participativa de Alvorada: "Sem juventude não há revolução". A juventude é um lugar-comum retórico da modernidade, provável parente da paixão pelas novidades. A ponto de todos os totalitarismos que conheço terem feito uma apologia da juventude. Giovinezza! Giovinezza! Por sorte, aqui o clima parece ser democrático: de discussão e de festa tranquila.
As delegações indígenas e os "jovens" convivem simpaticamente. Mas há diferenças de ecossistemas. De noite, o acampamento dos jovens quer continuar a festa e amplificar a música. Os índios acham que está na hora de dormir.
Entre os índios e os jovens militantes, estão os verdadeiros indígenas: um grupo de sem-teto que moram no parque da Harmonia desde sempre. Eles estão muito felizes com o Fórum. Não sabem o que é, mas constatam que traz benefícios: chuveiros, sanitários, comida, um pronto-socorro médico. Devem achar que a cidade decidiu assentá-los ao ar livre, como gostam.
Que maravilha!
Mas nem todos passam a noite no parque. Paolo Gasparotto, o colunista social do "Zero Hora", assinala que haverá uma recepção para Danielle Mitterand e Jean-Pierre Chévènement. Será oferecida pelo consulado francês no clube Leopoldina Juvenil, que é o clube tradicional da classe mais abastada da cidade. Duvido que os membros de "Le Monde Diplomatique" não apareçam. Seria a reunião da esquerda-caviar.

A UTOPIA DO DIA

Responsabilidade - Acabar com a responsabilidade limi- tada de empresas e corporações de maneira que os dirigentes sejam individualmente responsáveis. Por exemplo, a Firestone sabia que uma grande quantidade de pneus montados no Ford Explorer explodia, mas atrasou a decisão de chamar de volta os veículos, talvez por medo das repercussões sobre a cotação das ações (cf. "Idéia feita do dia"). Entretanto dezenas de pessoas morreram. A Firestone pagará danos e multas punitivas. Mas, sem o princípio da responsabilidade limitada, os dirigentes iriam para a cadeia.

IDÉIA FEITA DO DIA

Pela qualidade - Pagar aos trabalhadores com ações talvez não leve à sua participação concreta. Mas -é uma outra idéia feita- pagar aos dirigentes com opções garantiria a qualidade de seu empenho. Eles teriam, assim, o maior interesse no futuro da empresa. Essa idéia, imposta pela globalização especulativa, produz efeitos trágicos na gestão das empresas, pois muitos dirigentes (donos de pacotes de opções) trabalham mais para valorizar a empresa no mercado financeiro do que para desenvolver seu potencial e sua presença na produção.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2001

A MISÉRIA DO CAPITAL 2

Um cheirinho de naftalina

CONTARDO CALLIGARIS
EM PORTO ALEGRE

N uma entrevista coletiva para a imprensa, Bernard Cassen, diretor de "Le Monde Diplomatique", disse que o Fórum de Porto Alegre não é contra aquele de Davos; ao contrário, Davos está contra Porto Alegre. Pois, como ele explicou, na Suíça, os poucos tramam contra os muitos. Acrescentou que, em Davos, só há indivíduos falando por conta própria e, portanto, defendendo interesses pessoais. Em Porto Alegre, há representantes de organizações, "pessoas que representam mais do que a si mesmas". Em suma, os muitos têm mais razão do que os poucos, e é melhor não falar em seu próprio nome.

Em assembléias de 30 anos atrás, esses chavões retóricos rendiam aplausos certos. Eu achava que, com a acumulação dolorosa das experiências, a esquerda tivesse desistido de negar suas melhores origens iluministas e individualistas.

No programa de Porto Alegre, o número de organizações e grupos norte-americanos mal passa de dez. Claro, os "baderneiros" de Seattle, com suas tendências anárquicas, odiariam ouvir que falar em seu próprio nome é menos legal do que representar grupos. Ou que os muitos são sempre melhores do que os poucos.

No futuro, seria interessante que a revolta contra o mundo neoliberal não fosse toda traduzida ideologicamente pelo mesmo academismo político francês. Isso acaba excluindo grupos e indivíduos (mas os indivíduos não importam, não é?), que não combinam com o cheiro da naftalina.

Triste confirmação de última hora: na cerimônia de abertura houve vaias para a pequena delegação dos Estados Unidos e aplausos para a Coréia do Norte (uma delegação oficial?).

quinta-feira, 25 de janeiro de 2001

A MISÉRIA DO CAPITAL 1

Preliminares

CONTARDO CALLIGARIS
EM PORTO ALEGRE

Qual é , para mim, a relevância do fórum?
A realidade econômica da globalização pode ser violenta, mas também pode ser corrigida. Aliás, os impasses (e os horrores) são óbvios até para muitos dos que estão em Davos.
Preocupa-me mais não o Consenso de Washington, mas o nosso próprio consenso. Ou seja, a facilidade com a qual, nas últimas três décadas, as classes médias ocidentais mais bem-intencionadas acabaram pensando que os sonhos progressistas teriam sido enfim realizados (ou quase). Por exemplo, "ser livre" é poder escolher produtos num mercado aberto e mundial.
"Participar democraticamente" é poder investir on line, sem intermediários.
"Ser informado" é dispor das mesmas informações do que dispõem os investidores institucionais. "Desenvolvimento" é crescimento do PIB. E por aí vai.
Parece que, por malícia ou por preguiça, sem que nos déssemos conta, os termos com os quais pensávamos nosso futuro foram desvirtuando-se. Do Fórum Social Mundial espero, sobretudo, isto: que devolva seu alcance a algumas palavras. Não seria pouca coisa.
A cada dia (ou quase), apresentarei brevemente um projeto utópico discutido no fórum (ou em seus bastidores). Também criticarei uma idéia feita contestada (ou adotada) aqui.

Utopia do dia
Para limitar o poder político de empresas e corporações, uma reforma das leis de financiamento das campanhas eleitorais (a começar pelas americanas) adotaria o seguinte princípio: só os cidadãos, singularmente, devem ser autorizados a financiar candidatos e legendas, pois só os cidadãos, singularmente, votam. Para evitar espertezas, haveria uma contribuição máxima por votante - digamos, por exemplo, cem dólares. Também seria permitido financiar apenas um candidato ou uma legenda por eleição -ou seja, não mais seria possível contribuir com as campanha de todos para ser sempre credor de quem ganhasse. Se os fundos levantados fossem insuficientes, teríamos campanhas mais breves, mais concretas e menos espalhafatosas. É um problema?

Idéia feita do dia
Nos anos 90, triunfou a idéia de que pagar aos trabalhadores com ações ou opções seria uma nova forma de todos controlarem o processo produtivo. Eram ultrapassados o capitalismo démodé da velha economia e o socialismo derrotado: graças às ações possuídas, os trabalhadores seriam proprietários. Problema: as oscilações do valor de ações e opções têm pouquíssima relação com os esforços dos trabalhadores-acionistas. Ou seja, a distribuição de títulos não cria nenhuma participação concreta. Por exemplo, imaginemos que uma empresa tenha sido racionalizada, eufemismo para dizer que ela demitiu 10 mil funcionários. As ações sobem. Os desempregados, que levam consigo seus pacotes de ações e opções, devem ficar tristes ou alegres?

Por que escutar adultos inconsistentes?

Os adultos conclamam que é importantíssimo ajudar e aconselhar crianças e adolescentes. Dizem que querem iluminar o caminho de seus rebentos, propor ideais e servir de exemplo. Mas, geralmente, na hora do vamos ver, eles apenas exigem duas coisas: obediência e resultados escolares. Essa é a conclusão de uma recente pesquisa do Search Institute -uma organização de fins não-lucrativos que promove o bem-estar de crianças e adolescentes. A pesquisa foi feita com adultos americanos, mas aposto que os resultados seriam os mesmos em qualquer país ocidental.

Nos últimos dez anos, o Search Institute elaborou uma descrição do capital moral cuja presença facilitaria o desenvolvimento socialmente harmonioso de uma criança ou de um adolescente. Chegou-se a uma lista de alicerces que, naturalmente, não são dádivas divinas. Eles devem ser construídos pelo comportamento dos adultos e das comunidades em que vivem os jovens.

Eis alguns exemplos banais de comportamentos que produzem capital moral. Ter conversas significativas com os jovens e dar conselhos são atitudes pelas quais os adultos manifestam seu apoio -o que constitui um bom alicerce para o desenvolvimento dos jovens. Solicitar a sua opinião produz neles um sentimento de autonomia -outro sustentáculo necessário. Servir à comunidade de maneira exemplar é uma conduta pela qual um adulto institui expectativas sociais positivas. Ensinar valores compartilhados e discutir valores pessoais permite a elaboração de uma ética. Ensinar respeito pelas diferenças culturais cria uma competência social. Transmitir tradições confere à juventude uma identidade. E por aí vai.

Foi assim estabelecida uma lista de 19 ações dos adultos que seriam essenciais para os jovens. O Search Institute quis saber se os americanos colocavam fé nesse catálogo. Foram realizadas 1.425 entrevistas aprofundadas com adultos representativos da sociedade americana em sua diversidade. Os pesquisadores jubilaram-se pois, das 19 ações da lista, 9 foram qualificadas como cruciais por 70% dos entrevistados e outras 9 foram assim qualificadas por entre 50% e 70% dos adultos entrevistados.

Em suma -independentemente das diferenças de origem étnica, fé religiosa, sexo etc-, a maioria dos adultos americanos compartilha de um verdadeiro consenso sobre as ações que eles poderiam e deveriam realizar para ajudar, assistir e acompanhar o desenvolvimento de crianças e adolescentes. O resultado deveria inspirar uma onda de otimismo pedagógico.

Mas a pesquisa também quis verificar se os mesmos adultos praticam essas ações que a maioria deles considera importantíssimas para o bem-estar de crianças e jovens.

Consternação! Constatou-se que, das 18 ações que suscitam seu grande entusiasmo (retórico), a maioria dos adultos pratica somente estas duas: exigir respeito e bom desempenho escolar.
Conclusão: a relação dos adultos com jovens e crianças é marcada pela inconsistência. Os comportamentos não correspondem às proclamações.

Imaginemos um exemplo caseiro. Um adulto pode acreditar sinceramente que a honestidade de todos garantiria um país melhor e, portanto, proclamar que a honestidade é um valor que deve ser frisado no espírito de todas as crianças. Entretanto esse adulto talvez seja nepotista, aproveitador, desrespeitoso da coisa pública etc. Isso seria justificado eventualmente pela constatação habitual: todos são assim, não serei o único trouxa. Portanto o adulto vai perorar sobre os valores morais, mas não se aventurará a transmiti-los direta e concretamente a filhos e filhas por receio de ser tachado de hipócrita e mentiroso. Os jovens são sempre excelentes intérpretes dos adultos e raramente deixam de perceber a incongruência do que está sendo preconizado com o que está sendo praticado.

Não é por acaso que, de todos os entusiasmos pedagógicos dos adultos, sobram, em geral, as duas ações mencionadas. Elas parecem escolhidas a dedo. Primeiro, os adultos não param de exigir respeito: provavelmente, com esse pedido abstrato, eles tentem compensar a perda de autoridade moral que foi produzida por sua própria hipocrisia.

Segundo, eles querem bons desempenhos escolares. A sabedoria moral proclamada é reduzida a uma exigência pragmática de sucesso: "Estude, meu filho/minha filha!". Se a exortação não for acompanhada de razões morais concretas, ela não soará diferente de "veja se consegue se dar bem na vida". Os jovens podem obedecer a essas duas exigências, mas sempre adotando, resignados, o cinismo dos pais.

É difícil sair desse impasse entre gerações: o desprezo suscitado pela inconsistência dos adultos torna os jovens impermeáveis (ou quase) a qualquer palavra pedagógica.
P.S. A íntegra dos resultados da pesquisa pode ser consultada em www.search-institute.org. O título da pesquisa é "Grading Grown-ups - Avaliando os Adultos".

quinta-feira, 18 de janeiro de 2001

O adolescente deprimido e a professora inválida



Converso regularmente com um adolescente de 17 anos, exasperado e deprimido. Ele já teve outras experiências terapêuticas forçadas e não aguenta mais falar de pai, de mãe, de irmãs e de companhia. Em geral, comentamos as notícias do dia.

Na semana passada, ele foi atraído por uma história "edificante". Uma universidade americana dedicara um anfiteatro a uma professora de escola primária e secundária que, depois de uma longa carreira de ensino, foi paralisada pela doença de Lou Gehrig (uma distrofia muscular progressiva) e seguiu ensinando. Quando perdeu a voz, passou a ensinar surdos-mudos. Na reportagem, ela estranhava a atenção e os elogios: era uma mulher em paz com ela mesma e com o mundo, sem furores caritativos ou vocações martirológicas. Sua vida parecia simplesmente normal.

Meu jovem amigo comentou que, se estivesse no lugar dela, já teria acabado com sua própria vida. Essa idéia, concordei, passaria por qualquer cabeça. Mas por que a professora não foi por esse caminho?

Claro, se ela atravessasse a vida como uma prova aos olhos de Deus, poderia encontrar conforto na perspectiva de uma recompensa final. Mas como seria possível essa existência - ao mesmo tempo dura e tranquila- sem o recurso da fé religiosa? O insuportável numa doença como essa, afirmou então meu interlocutor, são os limites, as impotências.

Notei que há uma infinidade de coisas que não conseguimos fazer. Afinal, não sei voar, nem ficar sem respirar por mais de dois minutos. Com paciência condescendente, meu amigo explicou que essas são coisas que ninguém consegue fazer. O que dói, acrescentou, é não conseguir fazer as coisas que os outros conseguem. E declarou que, se tivesse uma invalidez grave, talvez ele pudesse seguir vivendo, mas só entre pessoas tão inválidas quanto ele. Conclusão da conversa: o problema não é a invalidez, o problema são os outros. Melhor dizendo, a necessidade de se comparar aos outros.

Voltemos à professora. Ela transmitia uma sensação de paz justamente porque, pelo menos na aparência, escapava ao demônio da comparação. Justificava sua vida em si. Parecia ter nascido como um soldado ao seu posto, com uma tarefa definida. Que chovesse ou fizesse sol, que ela estivesse saltitante ou paralisada, tanto fazia, pois ela era professora, sua vida era ensinar.
O demônio da comparação não é um acidente, nem uma patologia. Ao contrário, talvez seja a norma social contemporânea: é nos comparando aos outros que encontramos nosso lugar, nossa função e nosso valor.

Essa arquitetura social comparativa foi inventada na esperança de produzir uma sociedade livre e mais justa. De fato, se todos se definem por comparação, todos podem mudar, evoluir, crescer. Ninguém é forçado a exercer uma função, ninguém tem sua vida decidida pelo berço em que nasceu ou pela cor da pele. Mas há um paradoxo: a sociedade assim produzida acarreta um potencial inédito de exclusão. Pois qual lugar sobra para quem não tem recursos para competir?

Quem, por qualquer razão, não pode encarar a comparação é mais excluído do que os párias numa sociedade de castas ou os escravos do passado. O horror moderno é que as vidas humilhadas, impedidas ou azaradas não encontram mais justificação nenhuma na ordem da sociedade e do mundo: elas são puras derrotas. A não ser, evidentemente, que a gente consiga seguir um pouco o exemplo da professora e encontrar sentidos para a vida que não sejam comparativos.

Olho para meu jovem amigo. Visivelmente não se lava há mais de um dia. Nem o rosto. Sua roupa é manchada e muito amassada. Deve ter dormido com ela.

Sua tristeza e seu desleixo não se confundem com o estilo "excluído-fashion" -feito, sei lá, de cabelos amarelos e calças rasgadas à Xuxa. Muitos adolescentes manifestam algum desprezo pela ordem moderna do mundo - por exemplo, pelas coisas que os adultos prezam, só para serem invejados pelos outros. Quase sempre é um fazer de conta salutar: os adolescentes parecem querer se subtrair do jogo adulto das comparações, mas é uma atitude que serve para eles tornarem-se incomparáveis. Essa revolta banal é um momento padrão no processo de assimilar a sociedade dos adultos.

A depressão de meu jovem amigo está um pouco além disso. Ele é mesmo apavorado e revoltado pela corrida que o espreita, aquilo que chamam de vida. Pior, ele se desespera porque sabe que sua raiva e sua indignação são mais alguns elementos desprezíveis de conformismo, apenas maneiras banais de querer ser diferente.

Trouxe-me a história da professora para formular uma pergunta: será que há como inventar uma vida que se justifique por algum mérito intrínseco? Será que dá para sonhar com uma maneira de viver que não deveria tudo ao olhar dos outros?

Pois é, competir, se distinguir, brilhar são as formas básicas de nossas relações sociais. Mas eis um aviso aos pais e aos adultos que gostariam de ser escutados por jovens e adolescentes: a professora, de sua cadeira de rodas, pode falar mais alto do que muitos Bill Gates.

quinta-feira, 11 de janeiro de 2001

Leis para indigentes morais

Acaba de chegar a Massachusetts um grupo de adolescentes sudaneses que viajaram diretamente da Idade da Pedra, ou quase, até a América de 2001.

Eis a história, segundo a reportagem do "Boston Globe". No fim dos anos 80, o governo fundamentalista muçulmano do Sudão começou a perseguir os cristãos separatistas do sul do país. Os jovens machos dessas populações (33 mil), particularmente ameaçados, fugiram marchando (e morrendo) para a Etiópia, onde ficaram em campos de refugiados. A guerra civil local forçou os jovens a uma nova marcha de 500 quilômetros até o Quênia. Sobraram 5.000 filhos das tribos Dinka e Nuer, que agora estão sendo distribuídos pelos Estados Unidos. Para muitos, a viagem de avião é a primeira experiência em um transporte motorizado.
Conversas bostonianas no fim-de-semana: qual será o maior estranhamento para esses jovens? A neve e a calefação? Os celulares? A Internet?

As organizações de assistência, conhecendo as dificuldades de um transplante cultural violento, pediram que os anciões das tribos gravassem sua sabedoria para os jovens levarem consigo na forma de fita cassete. Na nova terra, isso seria um recurso valioso na hora dos apuros. Os anciões consignaram, assim, suas melhores diretivas. Ora, aos ouvidos americanos, os preceitos, uma vez traduzidos, soam genéricos ao ponto de serem inutilizáveis.

Por exemplo: "Aconselho-lhes que sejam muito cuidadosos com as mulheres". Se um desses jovens acabar no mesmo colégio onde estudaram meus filhos, ele receberá um código escrito no qual é dito que, na área do colégio, são proibidos beijos prolongados. Aprenderá que, segundo o código, prolongado é um beijo durante o qual a intenção das partes pode mudar. Ou seja, um beijo é comprido demais quando um dos dois tem dificuldade em interrompê-lo caso não esteja mais a fim. Continuando seus estudos, o mesmo jovem encontrará novos códigos explicitando quantas vezes o consentimento deve ser pedido a cada etapa da corte amorosa.

Outro conselho prático dos anciões: "A cerveja é uma coisa que vocês não conhecem. Não se metam nisso". Equivalente civilizado: bebidas alcoólicas só podem ser compradas depois dos 21 anos; quem aparentar menos de 40 deverá mostrar identidade; menor de 21 pode entrar num lugar onde se vende bebida alcoólica só se for também restaurante; é proibida a venda de álcool no domingo; é proibido beber em lugares públicos, mas é permitido beber na rua com a condição de que a garrafa não apareça, e por aí vai.
O maior choque para os jovens sudaneses não virá das diferenças de comportamento. O susto virá da quantidade de leis formais detalhadas e explícitas que regram a vida americana, enquanto a vida da tribo era regrada por poucas normas quase sempre implícitas -ou seja, pela confiança de todos numa moral comum tácita.

Nossas leis tornam-se cada vez mais detalhadas, pois há a idéia de que um código exaustivo garantiria o funcionamento de uma comunidade justa. De fato, essa proliferação revela a angústia de uma cultura insegura de suas opções morais. Por sermos indigentes morais, compilamos uma casuística da qual esperamos que nos diga exatamente o que fazer em cada circunstância. O dito legalismo da sociedade americana, tão frequentemente denunciado, é apenas o sinal dessa indigência.

A tentativa de animar uma comunidade por uma lengalenga de leis testemunha a fraqueza do vínculo social. Não podemos confiar numa inspiração moral compartilhada, portanto inventamos regras para ter, ao menos, muitas obrigações comuns.

Na Olimpíada de Sydney, uma jovem ginasta romena perdeu sua medalha de ouro por ter tomado duas pílulas de Sudafed (pseudoefedrina). Esse banal descongestionante nasal era incapaz de melhorar a performance da atleta. Todos admitiram isso, mas, por estar a pseudoefedrina na lista das substâncias proibidas, a sanção pareceu necessária. Foi exemplar do quê? Do triunfo da moral ou de nossa incapacidade social de decidir segundo a consciência?
Pense em dois mundos. Num deles, seria possível e adequado apertar o ombro de um adolescente que sai de casa, dizendo: "Comporte-se direito, meu filho". No outro, entregar-lhe-íamos um calhamaço de diretivas, pois não poderíamos apostar que ele compartilhasse conosco e com todos a mesma implícita preocupação moral. Não é preciso dizer em qual desses mundos vivemos.

P.S. Sobre a relação entre normas sociais implícitas e leis, um livro recente ajuda a pensar: "Law and Social Norms", de Eric Posner. Nestes dias, li também "When Law Goes Pop", de Richard Sherwin, que é uma história da invasão da cultura popular pela prática jurídica, de Perry Mason até os programas da "Court TV" americana -processos verdadeiros debatidos e decididos ao vivo por juízes que são estrelas da televisão. Talvez a prática jurídica ocupe tanto espaço na cultura popular porque o espetáculo da administração da lei substitui e compensa a mediocridade de nosso senso moral.

quinta-feira, 4 de janeiro de 2001

Tampas e panelas de pressão

Na manhã de 26 de dezembro, em Wakefield, perto de Boston, Michael McDermott, 42, foi para o trabalho armado até os dentes e matou sete colegas a tiro. Então esperou a chegada da polícia.

A imagem de McDermott, barbudíssimo, desgrenhado e inquietantemente grande, foi servida como uma caricatura de ogro. Mas as reportagens desmentiam o fenótipo. Ele era um cara legal. Doava plaquetas sanguíneas a cada duas semanas. Era adorável com as crianças. Entendia de explosivos, mas dava conselhos pacifistas a seus interlocutores.

Único problema: uma pequena dívida de Imposto de Renda e um atraso nas mensalidades do carro e do condomínio. Eis o estopim presumido: a pedido do governo, uma parte do salário do homem seria retida automaticamente, e ele não gostou. Sete mortos por causa de 3.000 dólares?

Felizmente para os comentaristas, surgiu uma outra explicação: McDermott não devia estar bem da cabeça, pois tomava Prozac e outros remédios não determinados. O advogado de defesa certamente alegará a irresponsabilidade, no estilo: se tomava Prozac, devia ser louco.

É uma idiotice. Mas é o preço do sucesso dos antidepressivos: eles se transformaram em aspirinas do espírito. São frequentemente prescritos por clínicos apressados e sem diagnóstico específico. Está triste? Tome, que faz bem! Está delirando? Também tome, nunca se sabe! Usar Prozac pode ser índice de qualquer condição: "spleen" do poeta, angústia do vestibulando ou esquizofrenia.

O advogado de McDermott também considera a possibilidade de uma "defesa Prozac", ou seja, tentará mostrar que os efeitos colaterais do Prozac foram responsáveis pela fúria de seu cliente. Há um precedente: o caso de Joseph Wesbecker, que, em 1989, em Louisville, Kentucky, semeou a morte em seu lugar de trabalho e deu um tiro na cabeça.

A Eli Lilly (fabricante do Prozac) foi processada por sobreviventes e herdeiros das vítimas: eles alegavam a responsabilidade do remédio no comportamento de Wesbecker. A decisão inocentou o Prozac, mas, dois anos mais tarde, a Corte Suprema do Estado descobriu que a Lilly pagara secretamente aos querelantes para que, sem revelar o acordo, eles enfraquecessem seus argumentos e perdessem o processo (os detalhes estão no recente "Prozac Backlash", de J. Glenmullen).

Portanto é provável que o processo McDermott reanime as acusações contra o Prozac. Será tempo perdido debatendo uma questão mal colocada.

É verdade que a molécula do Prozac pode ocasionalmente produzir ansiedade e agitação graves, mas as histórias de Wesbecker e de McDermott denunciam sobretudo um extraordinário mau uso clínico. Um exemplo. Os antidepressivos, quando chegaram ao mercado, foram prescritos também para atenuar os efeitos de lutos dolorosos. Tratava-se de combater o efeito químico produzido no cérebro pela perda e assim atenuar o sofrimento.

Numerosos psiquiatras, psicólogos e psicanalistas acharam essa possibilidade bem-vinda, mas lembraram que o sujeito, mais cedo ou mais tarde, deveria fazer seu luto. Ou seja, melhor que o remédio não anestesie totalmente e que seja acompanhado por um trabalho psicoterapêutico para que o sujeito possa, aos poucos, reconhecer sua dor e conviver com ela.

Isso vale para todo sintoma psíquico. Alterar quimicamente humores, afetos e pensamentos sem oferecer a possibilidade de questionar o destino e as circunstâncias que levaram ao mal-estar é arriscado.

Wesbecker, um mês antes de seu surto assassino, passou a tomar Prozac sem acompanhamento psicoterapêutico. Quiseram "melhorar" a química de seu cérebro sem ajudá-lo a debater as idéias paranóicas que se iam formando na sua cabeça. A história de McDermott parece ser a mesma.

O sujeito está em ebulição? Pois bem, não vamos mexer com o que está na panela! Só apertemos a tampa! Mas, por mais que a panela seja de pressão, se ninguém encontra um jeito de baixar o fogo, não há tampa que aguente.

Nas histórias de McDermott e de Wesbecker, o culpado não é a molécula do Prozac, mas uma cultura que coloca uma fé infinita nas possibilidades de mudança e, ao mesmo tempo, seduzida pela facilidade, acredita em atalhos e milagres. Por exemplo, no atalho da pílula que cura logo e muda a cabeça sem conversa.

Hoje, os comentaristas do caso de McDermott estão prestes a acusar a molécula do Prozac com o mesmo entusiasmo de quem esperava que a molécula resolvesse sozinha os problemas da vida.

Ora, McDermott, por exemplo, nasceu Mike Martinez. Ele é latino, não irlandês. Aos 22 anos, decidiu mudar de nome e de origem. Engraçado, todos mencionam esse fato pouco banal, e ninguém pergunta: o que houve? Qual foi o drama interno (e social) que levou a uma decisão tão radical? Questão complicada, com a qual certamente McDermott não conseguiu lidar pelo atalho da mudança de nome. Assim como, nos últimos meses, as pílulas mágicas e silenciosas que ele tomou não resolveram as perguntas que seguiam fervilhando na sua cabeça. Foram apenas tentativas de segurar a tampa...