domingo, 21 de agosto de 2011

Entrevista a PlayBoy

PLAYBOY - Você cresceu na Milão arrasada pela Segunda Guerra Mundial. Tem lembranças desse período?
Contardo Calligaris - Tem coisas daquela época que me marcam profundamente até hoje. A cidade sofreu os efeitos de bombardeios. De cada três casas, uma era uma espécie de buraco de escombros. Lembro-me muito nitidamente de cartazes terrificantes, coloridos e gráficos que alertavam sobre bombas não explodidas que poderíamos encontrar nesses lugares. Além do ambiente sombrio, a época também me influenciou de outras maneiras. Meu pai havia participado da milícia antifascista durante a guerra e algo dessa experiência passou para mim. O exemplo do meu pai deixou claro que podemos ter que fazer escolhas radicais, por questão de princípio, que nos colocam, e às nossas famílias, em perigo e que, mesmo assim, não são negociáveis. O pós-guerra também fez com que a cultura americana invadisse a Itália e me influenciasse desde cedo. A vitrola lá de casa tocava In the Mood, de Glenn Miller, constantemente e eu, com 4 anos, decidi que queria aprender inglês. Ia todo dia a um convento de irmãs missionárias para fazer as aulas.


PLAYBOY - Você fugiu de casa aos 15 anos. Por quê?
Contardo - Eu fui uma criança demasiadamente bem-comportada, mas, quando chegou a hora de me comportar mal... [risos]. Aos 15 anos, fui à Inglaterra passar um verão para melhorar meu inglês e decidi não voltar para casa. Não era por desobediência, mas porque me apaixonei por uma jovem canadense. Aliás, estive no Canadá recentemente e tive a tentação de procurar o telefone dessa moça, que, a esta altura, deve ser uma senhora de cabelos brancos como eu. Quer dizer, eu não sou uma senhora... [risos]. Acabei desistindo da idéia. Mas, enfim, fiquei em Londres e meus pais cortaram relações achando que eu voltaria por necessidade. Mas eu só voltei quando ela voltou para o Canadá e eu já não tinha mais motivo para ficar.


PLAYBOY - Como você se sustentava?
Contardo - Vivi a duras penas. De vez em quando, minha avó me mandava um envelope com 20 ou 30 mil liras, mas que não dava para nada. Então trabalhei. Vendi pulôveres numa loja, lavei pratos num restaurante e, depois, trabalhei na rua convencendo turistas italianos e franceses a entrarem numa boate de strip-tease do Soho. Uma das atrações era um número chamado Sansão e Dalila e, certa noite, o Sansão faltou. O dono me pediu para substituir o Sansão e era um salário melhor do que ganhava chamando turistas, então, durante um período, eu fui Sansão [risos]. Esse foi um grande momento da minha experiência londrina.


PLAYBOY - O que aconteceu quando você voltou?
Contardo - Fui para um internato católico. Eu estava aterrorizado, mas, devo dizer, foi muito menos opressivo do que eu imaginava que seria. Hoje, tenho boas memórias e enorme gratidão pelo capelão do colégio. Eu externava a ele todas as minhas dúvidas sobre a religião e, inclusive, os motivos pelos quais eu não comungava. Ele me disse que isso não tinha importância nenhuma, que era irrelevante se eu saísse do colégio acreditando em Deus ou não. O importante era que eu fosse uma pessoa do bem.


PLAYBOY - E depois?
Contardo - Fui para a universidade em Milão. Fazia ciências políticas. Também comecei a trabalhar como fotógrafo e traduzindo romances policiais do inglês para o italiano. Fotografava de tudo. Era 1967 e não faltavam temas de interesse nas ruas. Fotografava também objetos. Foi nessa época que conheci a minha primeira mulher. Ela era atriz americana e estava em Roma para fazer alguns filmes. Depois, ela foi para Milão e se tornou modelo. Eu a fotografava. Fotografava outros modelos também. Vendia algumas fotos e também meus talentos de câmera escura. Mas minha relação com a fotografia acabou quando fui para a Índia e o Nepal.


PLAYBOY - Por quê?
Contardo - Ia fazer fotos lá para a editora De Agostini. Na primeira vez em que saí do hotel e pus os pés na rua de Bombaim, uma menina pobre se agarrou à minha perna e colocou a cabeça no meu pé para pedir esmola. Esse momento durou uma eternidade pra mim e eu fiquei muito mal. Com isso, me dei conta de que não ia conseguir encontrar uma posição subjetiva que me permitisse fotografar a miséria. Eu não seria um bom fotógrafo de reportagem. Então, quando voltei, decidi levar a sério a faculdade. Saí de Milão e fui para Genebra. Nessa época, eu viajava bastante para os Estados Unidos por causa da minha mulher e, também, entre Genebra, Paris e Milão. Eu estava muito interessado no que acontecia na Europa, em termos de movimentos políticos, mas também muito ligado na contracultura americana, na qual a revolta era mais social e pessoal.


PLAYBOY - O que você fazia em Genebra?
Contardo - Eu fiz duas faculdades: letras e filosofia e, ao mesmo tempo, epistemologia. Epistemologia era algo entre a faculdade de psicologia, onde Piaget ainda ensinava, e o departamento de filosofia.


PLAYBOY - Foi daí que surgiu seu interesse por psicologia?
Contardo - Essa história é meio estranha. Estava adorando a faculdade, mas eu estava muito mal. A manifestação concreta disso é que eu tinha crises de angústia. Talvez pudesse continuar tomando codeína pelo resto da vida, mas não me parecia uma escolha saudável. Então, decidi fazer análise. Eu já conhecia um pouco de psicanálise, já tinha lido Freud e comecei a me interessar. Acabei indo para Paris fazer análise. Passava três dias por semana em Paris e o restante em Genebra. Durante esse tempo, tive uma cadela que foi minha fiel companheira. Ela se chamava Merveille e viajava comigo no trem, ia caçar comigo...


PLAYBOY - Caçar?
Contardo - Sim, eu caçava. Comecei muito cedo. É uma tradição no norte da Itália. Caçava o que se caça nas planícies ao redor de Milão: faisão, pato-selvagem, lebre, veado... Continuo tendo gosto pela experiência. Sair numa manhã de outono, às 5 ou 6 da manhã, pela várzea com o meu cachorro continua sendo uma das imagens de felicidade na minha cabeça. Mas hoje não consigo mais atirar em mamífero. Ave tudo bem, ave não é “gente” [risos].


PLAYBOY - Como passou de paciente a terapeuta?
Contardo - Eu decidi que a psicanálise me interessava demais, deixei Genebra e me instalei em Paris. Um ano depois, em 1975, comecei a atender, me tornei membro da Escola Freudiana de Paris e fui convidado a ensinar no departamento de psicanálise da Universidade de Paris. Então, me tornei psicanalista na França e fiquei lá muito anos.


PLAYBOY - E como você veio parar no Brasil?
Contardo - Em 1985, eu tinha escrito um livro sobre psicanálise que ia ser publicado no Brasil e vim para uma série de conferências. Conheci minha mulher atual — que é gaúcha e também psicanalista — durante uma palestra em Porto Alegre. Reparei naquela figura que sentava na primeira ou segunda fileira e um colega me contou seu nome. Depois, ela pediu que eu fizesse uma dedicatória em sua cópia do livro e, quando ela ia me falar seu nome, eu disse: “Já sei”. Aí, fiz uma dedicatória um pouquinho fora do normal e começamos a conversar. Depois disso, passei a vir sempre para o Brasil. Em 1988, o ritmo das viagens entre Europa e Brasil se tornou insuportável e tive que fazer uma escolha. E tive um feeling que seria mais interessante vir para cá. É uma escolha que não lamento de jeito nenhum. Me sinto mais em casa nas Américas do que na Europa.


PLAYBOY - Em suas colunas, você deixa transparecer uma admiração maior pela cultura americana do que pela européia. Isso é surpreendente para nós, brasileiros.
Contardo - Para mim, antes de mais nada, os Estados Unidos são o país que ajudou a eliminar o fascismo italiano. Esse ponto de vista já me coloca numa posição diferente da maioria dos brasileiros. Eu acho que os europeus são muito mais colonialistas do que eles ou os brasileiros imaginam. Cuidado com o paternalismo europeu. Eles vão gostar do Brasil enquanto continuarmos sendo bons selvagens. Mas as coisas vão mudar no momento em que tivermos a pretensão de competir com eles como iguais. A Europa inventou o colonialismo, não os Estados Unidos.


PLAYBOY - Atualmente você vive entre Brasil e Estados Unidos?
Contardo - Não. Eu cansei de viajar e, desde fevereiro deste ano, estou em São Paulo definitivamente. As viagens começaram porque, em 1994, fui convidado para ensinar numa faculdade lá dos Estados Unidos. Achamos que seria uma boa experiência e fomos. As coisas foram acontecendo e, o que era para ser uma temporada, acabou durando dez anos. Mas durante todo esse tempo eu vinha para o Brasil por pelo menos dez dias por mês.


PLAYBOY - Como começou a escrever a coluna na Folha de S.Paulo?
Contardo - Comecei a escrever para a Folha em 1992 depois que saiu o meu livro Hello Brasil! Fui convidado para algumas colaborações e logo estava escrevendo uma coluna quinzenal para o caderno Mais! Em 1999, o Otávio [Frias Filho, diretor de redação da Folha de S.Paulo] me convidou para escrever uma coluna semanal para a Folha Ilustrada.


PLAYBOY - Nunca falta assunto?
Contardo - É um esforço bastante notável. O tema é aberto e isso acaba criando um estado de espírito permanente, no qual você vê a realidade pelo filtro da coluna da semana que vem. Você encara a vida como se qualquer experiência — ir ao cinema, encontrar uma pessoa, ver uma exposição, presenciar alguma coisa e mesmo ler o jornal — pudesse valer a pena ser contada aos outros. Isso intensifica o cotidiano e é muito legal, mas ocupa muito. A coluna está sempre presente, mas não é de opinião. Acho que escrever suas opiniões e convidar os outros a aderirem a elas é uma coisa extremamente vulgar.


PLAYBOY - Por que vulgar?
Contardo - Para mim, a vulgaridade acontece quando a vontade de concordar com o grupo passa por cima do que você é capaz de sentir e pensar. Por exemplo, um grupo de homens comentando sobre uma mulher é vulgar, mesmo que os comentários sejam maravilhosos. Eles criam consenso em torno de opiniões que não expressam o que a mulher inspirou em cada um deles e, quando fazem isso, algo da liberdade individual de cada um se perde. Por isso não escrevo uma coluna de opinião.


PLAYBOY - Então você escreve uma coluna de quê?
Contardo - O que me interessa é desmanchar os acontecimentos para revelar os mecanismos internos que nos fazem sentir ou pensar de uma maneira ou de outra. Refletir sobre nossas motivações amplia nossa liberdade de pensar diferente, amplia nossa consciência.


PLAYBOY - Como assim?
Contardo - Espero tocar os leitores. Estimulá-los a melhorar a qualidade da sua experiência de vida. Melhorar a qualidade parece uma frase babaca, mas o que quero dizer é que cada um pense e reflita mais e, com isso, tenha uma experiência maior, mais intensa, da vida.


PLAYBOY - A coluna tem a pretensão de ser um diálogo psicanalítico?
Contardo - Bom, inspirar a reflexão sobre si próprio é certamente um propósito da psicanálise. E eu sou psicólogo, o que conta na minha visão do mundo. Por exemplo, um dos temas recorrentes da minha coluna é como aquilo que nos indigna está presente em nós. Ou seja, se a corrupção nos indigna, é porque, no fundo, achamos que somos corruptíveis, mas não estamos a fim de ver isso em nós mesmos. Isso é uma maneira psicanalítica de pensar. Mas, quando você aplica psicologia aos acontecimentos, à arte, à mídia, enfim, à sociedade, como tento fazer na minha coluna, vira antropologia.


PLAYBOY - Antropologia?
Contardo - Sim, mas no sentido de ser antropólogo da gente, da nossa sociedade, não de uma tribo da Polinésia. Boa parte do nosso comportamento, das nossas emoções e das nossas escolhas amorosas é ditada e delimitada pelo fato de pertencermos a uma cultura e que essa cultura tem regras bastante definidas. Por exemplo, a gente escolhe a pessoa com quem casa por amor. Essa é uma regra cultural, uma regra espantosamente exigente. Em outras culturas pode ser que a regra seja que você deve casar com a mulher que seus pais escolhem quando você nasce. E nós achamos isso fajuto e errado. Mas a nossa regra pode ser até pior, porque cria um monte de expectativas sobre companheirismo, felicidade sexual e assim por diante. Então, conseguir olhar para nós mesmos como parte de uma cultura que tem um enorme peso em quem somos é muito importante para nos entendermos.


PLAYBOY - Que aspectos da cultura mais nos afetam?
Contardo - A nossa cultura faz parte do pacote de coisas que nos definem. Ela nos fabrica de tal forma que, mesmo que nos tornemos budistas, continuaremos a pensar e a sentir de determinada forma. Nesse sentido, a transmissão cultural é quase genética. Há muitos elementos da nossa cultura que contribuem para definir quem somos. Por exemplo, em nossa cultura não existem diferenças de casta. O que introduz a diferença social é o olhar dos outros. Isso faz com que nos preocupemos com a nossa imagem social. A necessidade de seduzir os outros para obter a aprovação e o reconhecimento é uma grande conseqüência da nossa cultura.


PLAYBOY - Quer dizer que nos preocupamos mais com nossa imagem do que com o que realmente somos?
Contardo - Escuta, a melhor maneira de enxergar as pessoas é como cebolas, que têm vários invólucros, mas não têm caroço. Nós não temos caroço, nós somos os invólucros. Não é tirando as roupas e acessórios que encontraremos “quem somos realmente”. Essa é uma reivindicação bastante recorrente no amor, por exemplo. “Você não me ama pelo que sou verdadeiramente. Você me ama porque tenho carro importado e uma casa na praia.” As mulheres têm estas frases: “Você me ama porque sou bonita, não por mim mesma”. Mas o que é “mim mesma”? Quem é você senão a pessoa que fez isso ou aquilo na vida, que acumulou coisas, que é bonita? Mas achamos, equivocadamente, que essas coisas são só superficiais. E essa sensação de que a nossa imagem não representa aquilo que realmente somos se tornou uma grande fonte de sofrimento hoje em dia.


PLAYBOY - Você acha que o presidente Lula, por exemplo, sofre porque a imagem atual dele não representa o que ele acredita ser?
Contardo - O governo do PT inventou uma fórmula: a socialdemocracia neoliberal com retórica radical da esperança. Mas o Lula não está mentindo quando adota a retórica radical em seus discursos. Mesmo fazendo um governo eminentemente neoliberal, ele está presente naquela retórica. Desse ponto de vista, ele é uma figura trágica — no melhor sentido. Isso provoca um sofrimento profundo. E não só para ele, mas para todos. Afinal, a vitória do PT fez o cinismo natural do cidadão brasileiro entrar em crise. Aquela idéia profundamente cínica de que “político é tudo a mesma merda e foda-se”. Mesmo quem não votou no PT pensava que, pelo menos, ia dar em algo diferente. Por um breve período, a imagem que tínhamos do Brasil correspondeu ao que gostaríamos que fosse. Com as crises recentes, essa imagem ruiu e o cinismo natural do brasileiro voltou. O que é uma pena. Todos sofremos com isso.


PLAYBOY - Como formamos a nossa imagem?
Contardo - Bom, o que nos define não é mais o berço, como era nas sociedades tradicionais, em que marquês nascia marquês, camponês nascia camponês e nenhum dos dois tinha qualquer possibilidade de mudar isso ao longo da vida. Então, temos que nos definir por meio das riquezas e das posses. Em nossa sociedade, as diferenças quantitativas se transformam em qualitativas. O que você tem e o que você pode acabam determinando como você é percebido pelos outros e por você mesmo. Assim, o materialismo é o meio pelo qual construímos nossa imagem e acaba influenciando, também, o que pensamos querealmente somos. Podemos esbravejar contra nosso materialismo, mas é por causa dele que a nossa posição social não é carimbada na nossa bunda ou na nossa cara, não nasce conosco. O materialismo e a imagem que ele nos permite construir para nós mesmos são necessários para se ter uma sociedade como a nossa.


PLAYBOY - Como usamos o materialismo para construir nossa imagem?
Contardo - É um movimento circular. Precisamos de elementos que possam nos diferenciar e nos ajudar a construir nossa imagem social. Encontramos esses elementos nos desfiles de moda, na mídia, na publicidade e em milhares de outras experiências. E, aplicando nossa criatividade a esses elementos, construímos imagens para nós mesmos. Essas imagens, por sua vez, realimentam a moda, a mídia e a publicidade. Esse ciclo perdura porque a exigência de ser diferente, o individualismo, é outra grande regra da nossa cultura. Isso se torna uma corrida. Não podemos parar de buscar uma diferenciação.
PLAYBOY - De onde vem a exigência de sermos diferentes?
Contardo - O valor supremo da nossa sociedade é o de sermos, cada um, um indivíduo singular. Isso é mais importante para nós do que pertencermos a uma comunidade. É irônico e contraditório, mas a única coisa que vai me dizer que sou um indivíduo e que sou singular é que os outros me reconheçam como tal. Para que me reconheçam, portanto, eu preciso pertencer a um grupo dos que me reconhecem como indivíduo. Se eu pertenço a um grupo, já sou menos individualista do que poderia ser.


PLAYBOY - No fundo, então, é o individualismo que causa o sofrimento ao qual você se referiu?
Contardo - Há uma culpa em nosso individualismo. A autonomia é a expressão máxima do ideal de individualismo da nossa sociedade. Mas autonomia exige rebeldia, porque ser autônomo é desobedecer e se afastar da família. Na adolescência, lidamos com a contradição que está no discurso de todos os pais. É um discurso que diz “me obedeça e faça o que eu digo” e, ao mesmo tempo, “seja independente, se torne autônomo” e, portanto, “me desobedeça”. Na vida adulta, a culpa é substituída por algo análogo, que é a nostalgia. Sentimos saudades dos valores da vida comunitária, familiar. Com isso, nos tornamosindividualistas com ideais comunitários. Construímos uma imagem singular, mas precisamos que ela seja reconhecida pela comunidade.


PLAYBOY - Então, a causa de tudo isso é a busca por reconhecimento. Somos todos como as personagens Darlene e Jaqueline da novela Celebridade?
Contardo - Bom, nem todos temos o corpo de Jaqueline e Darlene [risos]. Mas, em alguma medida, sim. Darlene, claro, é um pouco excessiva e isso a torna irritante. E, se ela nos irrita, é porque nos apresenta algo que existe em nós e que não estamos a fim de ver. Todos temos algo daquilo que anima Jaqueline e Darlene, mas perseguimos nossas ambições de maneiras diferentes. Aparecer em Caras não é o único jeito de ser reconhecido. Há outros caminhos para responder à exigência de encontrar, aos olhos dos outros, algum tipo de aprovação e confirmação de quem somos. No extremo oposto, a pessoa pode tentar ser reconhecida como aquela que não gosta, não quer aparecer em Caras. Há também muitas pessoas cuja identidade intelectual e progressista deriva, em parte, do desprezo por tudo que é considerado cultura popular. Inclusive a novela, que consideram um engodo e uma fonte de alienação das massas.


PLAYBOY - Mas não precisamos de reconhecimento quando buscamos o próprio prazer.
Contardo - Às vezes, sim. Um cara que se olha no espelho enquanto transa, por exemplo, está mais interessado em verificar o que a mulher está vendo e se essa imagem é digna de aprovação do que no próprio prazer. Falar de comida enquanto se come, algo que se tornou muito comum hoje em dia, é uma forma de exibir competências. Saber escolher o vinho para um determinado prato ou reconhecer ingredientes são coisas que fazemos mais para obter aprovação do que para intensificar nosso prazer.


PLAYBOY - Você já disse que sexo e carinho são coisas distintas. Como assim?
Contardo - O sexo e o amor não convivem no mesmo momento. A pessoa, sobretudo a mulher, pode precisar se sentir amada para se entregar ao tipo de esculhambação do corpo que o sexo representa, mas isso não significa que essas duas coisas coexistam. Metaforicamente, o sexo despedaça o corpo e o amor o reconstitui. Não tem como ser de outro jeito. O sexo não tem como respeitar o ego do outro. A fantasia sexual não pode colocar o respeito do outro como regra. Se isso acontece, todas as partes começam a achar o sexo tão chato que vão procurar outra pessoa.


PLAYBOY - Mas quando um homem se preocupa com o prazer da mulher não há uma coexistência de amor e sexo?
Contardo - Isso é um grande problema masculino, né? [Risos.] Eu acho que é uma questão infeliz se você quer saber. É mais um impedimento do que qualquer outra coisa. Talvez isso faça parte da construção da nossa imagem masculina. Queremos ser aqueles que fazem as mulheres gozarem. E essa preocupação acaba sendo desastrosa para a transa. Se o gozo sexual se resumisse ao orgasmo, era só toda mulher comprar um vibrador.
PLAYBOY - Então o egoísmo é bom para o sexo?
Contardo - O egoísmo, em matéria de sexo, não é tão mau assim. O obstáculo a uma boa relação sexual não é tanto uma falta de sintonia física, mas a inibição de cada um com relação às suas fantasias. O que torna o sexo interessante é quando cada parceiro tem a coragem de assumir e realizar suas fantasias.
PLAYBOY - Que fantasias?
Contardo - Ah, de qualquer tipo. São bastante variadas, embora possam ser reduzidas a um catálogo de tipos. Sexo sem fantasia não existe. Os animais têm um estímulo sexual que é diretamente ligado à procriação, mas o homem não. A nossa sexualidade não tem nada de “natural”. Ela é estimulada por fantasias. O sexo se cultiva. É importante que o casal cultive suas fantasias sexuais. É importante pensar em sexo fora do momento em que se chega à cama.


PLAYBOY - Nesse sentido, os homens são mais sexuais que as mulheres?
Contardo - Tem um pouco essa ideologia de que as mulheres são mais a favor do amor e os homens mais a favor do sexo. Não é bem assim. As mulheres são muito mais capazes de viver aventuras sexuais do que os homens gostam de imaginar. É muito freqüente, quando acontecem aventuras desse tipo, que o homem não largue do pé dessa mulher. Os homens se apaixonam com muita facilidade, são grandes amantes. Os homens acreditam muito mais na perfeição que as mulheres. As mulheres são mais realistas e, por isso, mais inteligentes. Por outro lado, elas têm uma tendência muito maior à erotomania, a convicção inabalável de que são amadas pelo parceiro.


PLAYBOY - O amor existe?
Contardo - Existe. Mas não como pensamos. Amar é imaginar que a outra pessoa tenha as qualidades que, para nós, deveria ter a pessoa por quem gostaríamos de ser amados. É complicado. “Eu amo fulana” significa que eu idealizo fulana como a pessoa por quem eu gostaria de ser amado. O amor é sempre uma forma de idealização. É por isso que o amor gosta de ser recíproco. Essa é a definição clínica do amor.
PLAYBOY - Então por que achamos que o sexo fica melhor quando estamos amando?
Contardo - O sexo é sempre mais interessante entre pessoas que têm uma história. A qualidade das transas, se é que isso pode ser avaliado, aumenta quanto mais um casal se conhece. O sexo se aprimora não tanto porque descobrimos os recantos do corpo do outro que precisam ser estimulados mas porque as pessoas se soltam mais. A repetição e a familiaridade permitem que tenham acesso às fantasias um do outro. Isso se torna uma descoberta de coisas que podem fazer juntos. Não são necessariamente coisas extravagantes. Não precisa ter a fantasia de transar com o outro vestido de freira pendurado pelos pés numa piscina [risos]. Mas precisa descobrir a fantasia do outro, que ele descubra a nossa e que essas coisas se misturem. Isso leva tempo.


PLAYBOY - A pornografia é boa nesse sentido?
Contardo - Eu aprendi bastante com filmes pornográficos. Eu tinha um primo, o Giancarlo, que foi de muita importância na minha educação “sentimental” [risos]. Ele tinha uma enorme coleção de filmes pornográficos e me dava acesso tácito a eles. Eu achei aquilo muito interessante. Eu descobri muito mais do que se tivesse esperado por alguém para me ensinar e tenho certeza de que a experiência não me arruinou. A pornografia pode funcionar como uma janela para o desenvolvimento das próprias fantasias sexuais, o que é positivo. Se meu filho de 13 anos tivesse que ver Clube da Luta ou Garganta Profunda, preferiria que ele visse Garganta Profunda.


PLAYBOY - Você acha que deveríamos censurar menos a pornografia?
Contardo - Não necessariamente. Acho que deveríamos censurar mais a violência. Quanto à pornografia, acho que as coisas estão bem. O acesso ao sexo é muito mais interessante quando ele se dá às margens da autoridade do que com autorização. Tem muitas coisas na vida que precisamos deixar num espaço cinza.


PLAYBOY - Você escreve bastante sobre o Brasil e os brasileiros. Para você, quais são as principais características da sociedade brasileira?
Contardo - O Brasil é uma sociedade ao mesmo tempo moderna e arcaica. Por um lado, somos extremamente modernos, porque a diferença social se dá por meio da riqueza e do consumo. Por outro, essa diferença social é vivida como se fosse uma diferença de casta. Depois de uns cinco anos vivendo no Brasil — e o Brasil pega na gente —, fui a Paris visitar meu filho. Estava num café e queria fazer um pedido. Então, levantei o meu braço e estalei os dedos. O garçom ouviu o barulho e, completamente paralisado, perguntou: “Você está falando comigo?” Eu me dei conta de que estava fazendo um troço completamente inaceitável. O cara ia me dar um soco, me mandar à puta que o pariu e o dono do café ia lhe dar razão. Mas, no Brasil, isso é normal. As pessoas se prevalecem dos apetrechos de seu sucesso narcisista para tratar os outros como escravos. É como se quisessem perpetuar uma ordem que não existe mais.
PLAYBOY - Você acha que é assim que os brasileiros são vistos lá fora: como uma sociedade arcaica e atrasada?
Contardo - Não. Mas, apesar dos esforços de modernização do Brasil, o país ainda é visto, sobretudo, como um sonho exótico. E é difícil ser visto como exótico, porque o exotismo é a face legal do racismo, por assim dizer. A vergonha desse exotismo é, certamente, uma face da identidade nacional.


PLAYBOY - Você é imigrante e teve muitos pacientes brasileiros que emigraram para os EUA. O que eles podem ensinar a nós que ficamos no Brasil?
Contardo - A conclusão a que a gente chega é que ninguém deveria nunca viajar. Quem começa a viajar — e não estou falando em passar férias, mas em se transplantar — não tem motivo para parar. A dúvida entre a continuação da viagem e o retorno se torna uma parte constante de sua vida. Em minhas viagens entre Nova York e São Paulo, conversei com diversos brasileiros que estavam sendo deportados para o Brasil e, curiosamente, se sentiam completamente aliviados. Não que eles quisessem ir embora dos Estados Unidos, mas estavam aliviados que a decisão tinha sido tomada por terceiros.


PLAYBOY - Muitos desses brasileiros emigraram em busca da felicidade. Por que é tão difícil sermos felizes?
Contardo - Nossa cultura é fundamentada na idéia de que a vida não é sustentada pela satisfação das necessidades, mas pela satisfação dos desejos. O que nos interessa são os desejos, não as necessidades. Do contrário, a vida seria simples. Isso parece curioso num país como o Brasil, em que muitas pessoas não satisfazem suas necessidades básicas. O problema é que, mesmo para essas pessoas, os desejos passam na frente das necessidades. Quando começaram a implantar o Fome Zero, por exemplo, havia um dilema entre dar dinheiro ou alimentos como benefício. Havia um receio de que, dando dinheiro, as pessoas comprariam coisas supérfluas, quando o intuito do programa era atender às suas necessidades básicas. Mas, numa cultura moderna, dizer para uma pessoa que ela não tem direito a desejar o supérfluo é o mesmo que dizer que ela é um bicho e não um ser humano. São os nossos desejos que nos definem como sujeitos. Isso é um traço cultural, não uma invenção de alguns capitalistas. As indústrias surgiram porque houve uma imensa mudança cultural. O.k., é difícil saber se veio primeiro o ovo ou a galinha e, no fundo, tanto faz. O importante é que isso faz com que a insatisfação nos seja inerente, porque o supérfluo tem a função social de nos diferenciar. Como não nos diferenciamos por berço, geramos reconhecimento por meio da quantidade de coisas supérfluas das que dispomos. E isso é sem fim, porque nunca vamos ter reconhecimento suficiente. É uma sensação diferente da fome, que passa com a ingestão de alimento. De reconhecimento ninguém se cansa.


PLAYBOY - Mas certamente há pessoas que estão satisfeitas com o que têm?
Contardo - É cool parecer satisfeito, porque essa é uma das maneiras de sentirmos que somos vistos positivamente pelos outros. Ser invejado é um dos valores da nossa cultura, embora não seja um valor muito legal [risos]. A inveja é um motor muito importante na modernidade. Não digo que é impossível ser feliz. Deve haver alguns poucos, sábios, que conseguem se retirar do circuito dessa ânsia por reconhecimento. Mas sabemos que são as exceções, porque, se não fossem, o mundo pararia. O consumo dessas pessoas seria infinitamente menor. A máquina produtiva e comercial entraria em colapso. E não é isso queobservamos por aí.


PLAYBOY - Estaríamos melhores se não buscássemos a felicidade?
Contardo - Na sociedade moderna, o direito de ser feliz nos é transmitido como uma obrigação. Você tem a obrigação de ser feliz de várias maneiras. Por exemplo, existe ou existiu o mito do orgasmo simultâneo. Se não é simultâneo, não é aquela coisa [risos]. Isso virou uma obrigação do casal e não existe motivo nenhum pra isso. Pode ser muito mais divertido se o orgasmo não for simultâneo. Quem disse que precisa ser simultâneo? A felicidade é a mesma coisa. A realidade ideológica de hoje é que cada um tem a obrigação de ser feliz. O charme das drogas é justamente a promessa de nos satisfazer plenamente. Por isso que a difusão das drogas é diretamente proporcional ao desenvolvimento de um país. Está nos faltando uma proposta de como viver de uma maneira diferente. O comunismo era uma proposta, mas quebrou a cara. No momento, me parece que não tem outra. Então não temos essa opção de não buscar a felicidade.


PLAYBOY - Por que você escolheu o título Terra de Ninguém para seu livro?
Contardo - As colunas que estão no livro foram escritas, em sua maioria, durante viagens entre dois países, nenhum dos quais é o meu país de origem. Então eu tenho uma certa familiaridade com a “terra de ninguém”, que é como chamo aquele espaço nos aeroportos e aviões entre as polícias federais. Figurativamente, a “terra de ninguém” é um lugar longe das identidades coletivas — seja a identidade brasileira, a marxista, a de torcedor do Corinthians ou de qualquer uma das quais falamos —, que limitam as possibilidades de experiência e diminuem a qualidade do pensamento. Eu não estou preocupado em me definir como uma dessas coisas. Estimo a liberdade de pensamento o suficiente para pagar o alto preço que ela cobra: uma posição de constante exílio. O comportamento em grupo é muito mais confortável. Mas acho que um pouquinho de “terra de ninguém” não faria mal a ninguém [risos].

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

"A Árvore da Vida" e "Melancolia"




Insegurança e narcisismo: queremos ser os únicos a "perceber" e a denunciar a falsidade do mundo


No sábado passado, assisti a dois filmes: "A Árvore da Vida", de Terrence Malick, e "Melancolia", de Lars von Trier.
Assistindo ao filme de Malick, pensei no meu professor de literatura no ginásio (acho que se chamava Massariello). Ele nos apresentou à poesia de Giacomo Leopardi, que líamos com gosto, e logo administrou uma ducha fria: "Leopardi era bom poeta, mas não um grande". "Por quê?", perguntamos.
Ele explicou: "Leopardi, em sua breve existência, cantou a juventude que passa rápido demais, a morte que se aproxima, a natureza que não é uma mãe amorosa, o infinito no qual descobrimos nossa insignificância, a vida que não responde às promessas que ela nos fez quando éramos crianças. Vocês gostam de seus poemas porque essas são as questões preferidas pelos adolescentes e por todos os que não conseguem enxergar e amar a vida concreta".
A vida concreta, para ele, era o mundo -desde "as mulheres, os cavalheiros, as armas, os amores" até o pipoqueiro na esquina. Também segundo ele, para justificar a existência desse mundo concreto (grandioso ou trivial, feio ou bonito), bastava a revelação de seu charme, de sua "poesia".
Pois bem, Malick (ou seu narrador) é assombrado pelas lembranças (que ele apresenta admiravelmente) da brutalidade de seu pai, da morte de seu irmão etc. Problema: como não perder de vista Deus e o sentido do mundo diante das inexplicáveis injustiças divinas?
Solução: tente contar sua história começando pelo Bing Bang e passe pelas águas-vivas, pelos dinossauros, pelo meteorito que os extinguiu, até chegar a você. Depois de uma hora de erupções vulcânicas e frêmitos de células no estilo "National Geographic" (com uma trilha sonora na qual Justine, a protagonista de "Melancolia", diria que só falta a nona de Beethoven), tudo fará sentido: a morte dos que você ama, o mal que Deus permite e o que você cometeu parecerão participar do milagre que são a existência do universo, a árvore da vida e o plano divino. Aleluia!
Problema: no fim, o mundo concreto terá sido justificado por uma transcendência (a mão de Deus no grande esquema das coisas). Isso é ótimo para um ensaio ou para uma pregação. Para a arte e a poesia, melhor esperar o fim da adolescência e repassar, diria o professor Massariello.
Eu tinha o receio de que "Melancolia", de Lars von Trier, fosse uma espécie de inverso simétrico do filme de Malick: uma meditação sobre a gratuidade da nossa existência, que talvez Massariello achasse tão adolescente quanto "A Árvore da Vida". Mas não foi nada disso.
Parêntese: vários comentadores declaram que se trata de um filme sobre o mal de hoje, a depressão, só que esta não é a doença do nosso tempo, e sim, sobretudo, uma doença que nosso tempo gosta de diagnosticar porque acha que encontrou a pílula certa para curá-la.
Continuando, o mal do qual sofre Justine consiste em perder interesse pela vida concreta, a ponto de não tolerar o que lhe parece ser a farsa de sua própria festa de casamento.
Em geral, esse cinismo cético é fruto de 1) uma consciência moral terrível, pela qual toda experiência concreta, sobretudo se for prazerosa, deve ser culpada ou 2) uma extrema insegurança compensada por uma exaltação narcisista; assim: sou o único a "perceber" que tudo é falso -com isso, sou superior aos outros, ninguém me engana. Essa posição é frequente na adolescência; pense no jovem que, no baile, desesperado por não conseguir se integrar, fica sentado denunciando mentalmente a impostura e os simulacros na valsa dos que dançam.
Nota. A mãe de Justine é clinicamente perfeita. Passando pelo crivo de seu sarcasmo, tudo é apenas hipocrisia: não sobra um mundo no qual a gente possa querer encontrar um lugar.
No "Nascimento da Tragédia", Nietzsche conta que Sileno, companheiro de Dionísio, tendo que responder à pergunta "O que é melhor para o homem?", disse: "O melhor de tudo é inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser".
Nietzsche simpatizava com Sileno e não recorria a transcendências (divinas ou não) para justificar o mundo. Sua solução era que a vida se justificasse pela arte ou, como dizia Massariello, pelo charme que a poesia lhe confere.
Bom, Von Trier conseguiu dar sentido (e charme) ao fundo do poço. Não perca.


quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Vampiros comportados




Os adolescentes de hoje "desejam pequeno" ou será que eles perseguem um ideal de autocontrole?


Nos últimos anos, repetidamente, manifestei certa preocupação com o fato de que os adolescentes de hoje me parecem "desejar pequeno", ou seja, sonhar com projetos muito "razoáveis", se não desanimadores e quase resignados. A adolescência de minha geração, nos anos 1960, era o contrário: sonhávamos com uma grandiosidade ridícula, sem preocuparmo-nos com as condições efetivas de realização de nossos sonhos.
Deu no que deu: alguns efeitos bons, outros péssimos. Por exemplo, não conseguimos fazer "a" revolução, mas transformamos os costumes (para melhor, pelo menos até agora). Por outro lado, nossa paixão revolucionária defendeu e sustentou caricaturas sinistras de nossos ideais sociais -ou seja, nossas aspirações, por serem desmedidas, produziram alguns monstros.
Talvez isso não aconteça (ou aconteça menos) com os adolescentes de hoje; não seria necessariamente uma perda. Um pai, preocupado, como eu, com o "desejar pequeno" do filho, foi direto ao assunto e perguntou ao menino: "Mas quais são seus sonhos para a vida?". A resposta que ele recebeu o levou a me escrever: "É como se ele (o menino) desconfiasse de seus desejos, como se achasse que eles não são bem dele".
De fato, os adolescentes sempre têm certa desconfiança em relação à proveniência de seu querer. Afinal, logo quando eles começam a sonhar com o que poderia ser sua vida adulta, sofrem também uma irrupção de desejos que, no começo, mal entendem.
Claro, a sexualidade já existe na infância, mas, na puberdade, ela chacoalha o corpo de maneira inédita. É compreensível que um adolescente se pergunte o que é aquilo, para que serve e sobretudo de onde vem. Em geral, antes mesmo de ter se acostumado com a transformação de seu corpo, o adolescente constata que os adultos olham para ele de maneira diferente, como se ele fosse um objeto erótico possível. Disso deriva, provavelmente, a suspeita do adolescente de que o desejo que o transforma vem dos outros -dos adultos, que devem ser todos tarados.
Das primeiras reflexões de Freud até George A. Romero ("A Noite dos Mortos-Vivos", de 1968), esta explicação se popularizou: o desejo vem dos adultos, que avançam babando atrás da gente, querem nos pegar e, se possível, morder e contaminar. Mortos-vivos ou simplesmente artríticos, eles têm mobilidade restrita e pouca fantasia, pois só parecem querer uma coisa: que a gente fique que nem eles.
Pois bem, com a saga "Crepúsculo", de Stephenie Meyer (e sua adaptação cinematográfica), apareceu um novo paradigma da origem do desejo (alimentado, aliás, por séries televisivas, como "True Blood" e "Vampire Diaries"). Eis qual.
O desejo continua vindo dos outros, mas a mordida que contamina é desejada ardentemente pelas "vítimas", enquanto vampiros (e lobisomens) se controlam: embora sejam tão fissurados quanto um morto-vivo à procura de carne, eles resistem e se recusam a morder, enquanto os humanos imploram para serem mordidos.
O novo paradigma, em suma, diz que: 1) o desejo vem dos outros, mas, uma vez que tenhamos sido mordidos (como queremos ser), ele será o nosso, estará na gente, 2) ser vampiro à nossa vez será ótimo e 3) não por isso esqueceremos que desejar é um exercício de autocontrole.
É como se os adolescentes estivessem adotando um ideal em que o desejo seria deles mesmos, fortíssimo e indomável (uma verdadeira fissura), mas heroicamente contido. O vampiro será vegetariano, só se permitirá beber sangue de animais e saberá amar uma humana sem ceder à vontade louca de mordê-la. Da mesma forma, nós, sem recalque, teremos fantasias, sonhos e desejos, sexuais ou outros, poderosíssimos, mas saberemos discipliná-los.
Será que os adolescentes "desejam pequeno" (como eu pensava) ou será que, à diferença de nós quando éramos adolescentes, eles não idealizam o descontrole, mas a disciplina de si?
Se esse for o caso, talvez os adolescentes de hoje devam sua sabedoria à constatação de que, ao sair de cena, nossa geração, que pretendia desejar muito e descontroladamente, não está deixando uma lembrança muito boa.
Só um exemplo: o descontrole do desejo, ultimamente (e não só no Brasil) aparece sobretudo na falta de autocontrole de classes políticas desavergonhadas e vorazes (de votos ou de privilégios).

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

O paradoxo de Amy Winehouse




Você prefere imaginar sua filha errando para sempre num shopping ou perdida numa balada perigosa?



Stéphanie, minha enteada, tem 11 anos: ainda é menina, mas é já moça. Assim que foi informada da morte de Amy Winehouse, ela veio até minha escrivaninha e, simulando o choro inconsolável de um nenê, perguntou: "Você está sabendo que morreu minha cantora preferida?".
Justamente por ela simular o choro e se esforçar para ser engraçada, pensei que devia estar sofrendo muito. A coisa se confirmou no meio da noite, quando Stéphanie acordou, e, para que reencontrasse o sono, foi preciso que alguém conversasse com ela sobre a vida e a morte de Amy.
Teria gostado de poder oferecer a Stéphanie uma boa explicação pela dureza da vida e da morte de sua cantora preferida -por exemplo, dizer que Amy teve uma infância muito triste, que nada em sua vida adulta pôde compensar; ou, então, que ela teve sorte na vida profissional, mas não no amor, e se perdeu nas drogas e no álcool por desesperos sentimentais. Mas o que sei da infância e dos amores de Amy é só fofoca.
Sem mentir nem inventar, melhor deixar Stéphanie lidar com este enigma: alguém pode ter um extraordinário talento, gostar de exercê-lo, alcançar sucesso e reconhecimento, amar e ser amado por um ou mais parceiros e, mesmo assim, esbarrar num vazio que nada consegue preencher.
Stéphanie também tinha lido sobre a maldição dos 27 anos, que, antes de Amy, teria pego Janis Joplin, Jimi Hendrix, Jim Morrison, Kurt Cobain etc. Como é normal na sua idade, ela parecia sensível à "glória" de morrer jovem (ou talvez de não viver até se tornar tão chato quanto os adultos).
Foi fácil desvalorizar a morte precoce mostrando que ela é, justamente, um ideal muito antigo: o rock apenas retomou o lugar comum romântico do poeta que vive tão intensamente que, como Ícaro, queima suas asas e cai antes da hora, em pleno voo. Em suma, eu não tenho nada contra viver intensamente; ao contrário, artista ou não, acho que a gente deve viver da maneira mais intensa que der. Mas resta o seguinte: a ideia de que viver intensamente consistiria, por exemplo, em encher a cara de absinto ou ópio é velha de 200 anos.
Agora, há uma coisa que pensei e que não disse a Stéphanie: no fundo, para mim, a história de Amy tem um valor pedagógico, não só (obviamente) como exemplo dissuasivo ("Olhe o que pode lhe acontecer se você beber ou se drogar"), mas também como exemplo "positivo".
Como assim, positivo???
Concordo, a morte de Amy é um horror e uma estupidez, mas também lembra que viver é uma coisa séria, com apostas e riscos sérios, a começar pelo risco de perder a própria vida antes da hora. Você dirá: "Alguém duvida disso?". Pois é, constato que há um monte de gente tentando convencer nossas crianças de que a vida é feita de gritinhos, compras e namoricos que só servem para trocar trivialidades online com amigos e amigas.
Até a morte de Amy, eu pensava que o cantor preferido de Stéphanie fosse Justin Bieber. Ora, é possível que Bieber seja uma espécie de Dorian Gray (uma cara de porcelana que esconde dramas e anseios humanos), mas o fato é que ele promove uma imagem de bom moço num mundo intoleravelmente cor-de-rosa.
"E daí?", dirão alguns pais, "não seria esse o adolescente ideal com quem deveríamos gostar que nossas filhas saíssem, em sua primeira ida ao cinema sozinhas com um garoto?". E acrescentarão: "Você quer o quê, que sua enteada seja parecida com Justin Bieber ou com Amy Winehouse?".
Claro, é um golpe baixo: ninguém quer que sua filha acabe como Amy. Mas devolvo a pergunta: será que Justin Bieber é mesmo melhor? Stéphanie será mais protegida se ela permanecer numa pré-adolescência à la fã de Justin Bieber. Mas protegida de quê, se não da própria vida? Entre imaginá-la errando para sempre num corredor de shopping e imaginá-la numa balada que pode acabar na sarjeta à la Amy, a escolha não é fácil. E, na comparação, Amy passa a simbolizar minha esperança (e meu receio, indissociavelmente) de que Stéphanie cresça e se torne mulher, com desejos próprios, fortes.
É o paradoxo de Amy: o que você prefere, uma filha que se perca tragicamente nos excessos do desejo ou uma filha que chegue à vida adulta sem ter conhecido outros desejos do que os que surgem nas conversas sobre marcas de mochilas e sapatos?

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Romance, poesia e Veneza





Só conhecemos uma cidade na qual já fomos muito alegres e muito tristes, apaixonados e solitários



Vim passar 12 dias tranquilos em Veneza. Na minha parte de Veneza, os turistas são poucos, mesmo em julho: é vida de bairro, de gente que se conhece há anos, com crianças e cachorros soltos na rua. No fim do dia, é barulho de passos e vozes que se dão a boa noite e o até amanhã.
Visitarei a Bienal de Arte, agora que ela está às moscas, no silêncio. Na arena de Verona, assistirei a "Nabucco", de Giuseppe Verdi, cujo coro do terceiro ato ("Vá, pensiero") é o substituto do hino nacional italiano, e verei se a arena inteira irá cantá-lo ou não. Minha intuição é que, apesar da crise, haja a volta de um orgulho nacional há tempos perdido na Itália (pesquisas recentes dizem isso, aliás).
Mas esse tema ficará para a próxima quinta, assim como minha emoção ao assistir, anteontem, à única apresentação de meu cantor preferido no meu lugar preferido, James Taylor na praça San Marco. Hoje quero falar de outra coisa.
Quando chego a Veneza de avião, a não ser que esteja numa crise financeira danada, encaro o preço de um táxi, embora o transporte público da AliLaguna seja muito mais em conta. Verão ou inverno, quero ficar em pé, com a cara no vento e no cheiro da laguna, olhando para a cidade se aproximando. A cada vez é como se não acreditasse na minha sorte: ela está ainda ali.
Pouco tempo atrás, conversei com meu amigo Helio Goldzstein sobre a ideia de uma série de documentários televisivos em que amantes de cidades ilustres revelariam esquinas, momentos e charmes delas que nem sempre aparecem nos guias. Eu faria isso com prazer para algumas cidades que estão no meu coração e nas quais morei o suficiente para viver um leque amplo de sentimentos (só conhecemos uma cidade na qual tenhamos sido muito alegres e muito tristes, apaixonados e solitários). Enfim, quando estávamos pensando em organizar essa série, recuei. Por quê?
Eu não tenho ciúme. Se alguém que eu amo me deixa por outro, eu me desespero como todo o mundo. Mas se alguém que eu amo, sei lá, está viajando, continua me amando, mas tem a oportunidade de se divertir com outro parceiro por um par de dias ou de semanas, eu fico feliz por ela. Loucura, acham alguns. Mas, que eles se tranquilizem, há uma exceção: tenho ciúme de minhas cidades, da topografia sentimental e secreta que eu sobrepus ao seu mapa.
Talvez um dia eu realize mesmo a tal série de documentários, mas me custará um esforço sério. Sabe aquele "sotoportego" de Castello em que há, bem em baixo do arco, um pequeno coração que ninguém nota? Não sabe? Melhor assim, pois, para mim, aquilo é uma tatuagem num lugar escondido do corpo da amada: eu não quero que ninguém veja. Só eu. Sou ciumento das cidades que amo e de suas pedras. E, claro, considero todos os turistas com desconfiança e uma ponta de desprezo.
Viajei a Veneza no dia 16, sábado. Desde o dia anterior, estava lendo "Um Dia", de David Nicholls (Intrínseca). É a história de Emma e Dexter, cujo casal poderia ter sido, mas não foi. Para ambos, essa relação que não se deu foi a mais importante de sua vida. Enfim, o autor narra o que aconteceu com eles de 15 de julho 1988 a 15 de julho de 2007, um capítulo ou dois para o dia 15 de julho de cada ano. Eu queria começar e terminar a leitura em 15 de julho de 2011. Não deu; por causa da viagem, acabei no dia 17.
É um livro tocante; aborda o desencontro amoroso de duas pessoas que se cruzaram, apaixonaram-se (talvez) e não se deram a menor chance, ambos doentes de insegurança e por isso mesmo adoráveis: ela, perdida em um cinismo que a torna impiedosa com o mundo e ele, inconsistente à força de mendigar aprovação e fama.
De Emma, a protagonista, é dito: "Ela não acreditava mais que escrever um poema sobre uma situação pudesse melhorá-la". Pois bem, discordo de Emma. Ainda em agosto viajarei pelo Brasil, para mais lançamentos de meu último romance. A situação é fortemente melhorada por um poema de Billy Collins, em "Horoscopes for the Dead", (horóscopos para os mortos, título que é um maravilhoso haicai), editado pela Random House. O poema se chama "Feedback" e diz: "A mulher que escreveu de Phoenix/ depois de meu lançamento lá/ para me dizer que todos ainda estavam falando do evento/ acaba de me escrever novamente/ para me dizer que ninguém mais fala nisso".

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Asilo político para Berlusconi





Se o Brasil quiser abrigar as "vítimas" do Judiciário italiano, melhor que comece com Berlusconi



A Itália existe há um século e meio. Em Veneza, monumentos temporários propõem a inscrição: "A nossa história juntos cumpre 150 anos". Gostei: uma nação não é uma realidade étnica nem geográfica, mas a sensação de uma história comum, ou seja, de que compartilhamos um patrimônio de lembranças e de esperanças.
Em campo Manin, alguém pichou o monumento: "Manin era veneziano, não italiano". É curioso, Daniele Manin só podia ser veneziano: morto em 1857, ele nem viu a Itália existir. Mas o fato é que, nos últimos 15 anos, vingam bairrismos separatistas que não se conciliam bem com as festividades.
Enfim, quis tomar a temperatura do sentimento nacional italiano no aniversário dos 150 anos. Fui assistir a "Nabucco", de Verdi, na arena de Verona ("Nabucco", aliás, está em cartaz no Theatro Municipal do Rio de Janeiro nesta semana).
"Nabucco", de 1842, estabeleceu a fama e a fortuna de Verdi. A ópera é um drama da paternidade (no estilo "Rei Lear", um pai não entende uma filha e é traído pela outra) e um drama religioso (o deus dos judeus triunfa sobre o ídolo pagão dos assírios), mas, antes disso, é o drama do exílio de um povo arrancado à sua terra (os hebreus cativos na Babilônia). Esse drama é resumido pelo coro do terceiro ato, "Vá, Pensiero", cujo tema está presente desde a abertura e que foi recebido, na época, como o canto da nostalgia de uma pátria que os italianos ainda não tinham:
"Vai, pensamento, sobre tuas asas douradas, / Vai e te pousa sobre os clivos e os montes, / Onde mornas e doces exalam seu perfume as auras do sol nativo. / Saúda as beiras do Jordão / E as torres destruídas de Sião; / Oh, minha pátria, tão linda e tão perdida, / Oh, lembrança tão querida e tão fatal...".
Os 20 mil espectadores da arena de Verona escutaram num silêncio comovido, pediram e obtiveram o bis (tradicional no caso de "Vá, Pensiero"). Expressão de um nacionalismo canalha? Acho que não. Nos sentimentos que o coro evoca hoje (e talvez já na intenção de Verdi), há muito mais do que patriotismo: o coro é um hino para todos os que são arrancados à sua morada pela guerra, pela fome, pela violência dos outros e da natureza ou mesmo por seus próprios sonhos de "vida melhor". Talvez os italianos o ouçam como um hino seu porque a modernidade os dispersou mundo afora e faz que, hoje, eles assistam à chegada à Itália de desterrados muito parecidos com eles mesmos poucas décadas atrás.
Como fica, nesse clima, o sentimento italiano em relação ao Brasil que concedeu asilo a Cesare Battisti? Nenhuma raiva nacionalista --apenas consternação com os argumentos brasileiros e a ignorância que eles manifestam da Itália das últimas décadas. Para um italiano, a ideia de que alguém queira proteger Battisti da "Justiça de Berlusconi" é para além de cômica, pois juízes, promotores e policiais, com custos altíssimos (inclusive de vida), são 1) os que garantiram a sobrevivência da democracia italiana nos anos do terrorismo de esquerda e direita, quando Battisti operava, e 2) os que hoje defendem a legalidade democrática contra o "império" berlusconiano.
Esse estado de espírito é representado por uma coluna de Michele Serra, no "L'Espresso" da última quinta (21). Num processo que durou 20 anos, a Justiça condenou a Fininvest, de Berlusconi, a pagar 560 milhões de euros (R$ 1,4 bilhão) de indenização por ter corrompido um juiz que arbitrou a distribuição do controle acionário do grupo editorial Mondadori; agora, Serra imagina como Berlusconi poderia evitar pagar:
"Sendo impraticável o exílio para a Líbia (o risco de ser bombardeado pela Aeronáutica italiana é alto demais), Berlusconi poderia pedir asilo político ao Brasil, explicando a Lula que ele é vítima de uma infame perseguição política, assim como Cesare Battisti, e que ele tem muitos amigos entre os intelectuais franceses, entre eles Sylvie Vartan. Para ser mais crível, Berlusconi está treinando para ver se ele consegue escrever romances policiais, mas as primeiras tentativas são decepcionantes: entende-se já, desde o primeiro parágrafo, que o culpado é sempre o juiz comunista".
Concordo, se realmente o Brasil quiser abrigar as "vítimas" do Judiciário italiano, melhor que comece (ou continue) com Berlusconi.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Volta da Flip




Qualquer escolha significa desistir de desejos nossos aos quais preferimos outros, também nossos


NA COLUNA da semana passada, escrevi sobre a facilidade com a qual desistimos de nossos desejos e, com isso, às vezes, passamos décadas pensando em outras vidas, que poderiam ter sido as nossas se tivéssemos tido a ousadia de correr atrás do que queremos.

A coluna terminava com uma exortação à coragem de agir e com uma explicação possível: desistimos para evitar a dor de fracassar. Pensar que nem tentamos conseguir o que tanto desejávamos seria menos doloroso do que constatar que tentamos e não conseguimos. A desistência seria mais suportável do que o eventual malogro.

Numerosos leitores me escreveram, evocando (e lamentando) alguma desistência passada. O que não é surpreendente: somos quase todos assombrados pela sensação ou pela lembrança de ter desistido (na escolha de uma profissão, de um amor ou de um casal).

A razão é aparentemente simples. Faz dois séculos que nossa origem não determina nosso destino. Não seremos marceneiros só porque esse foi o ofício de nosso pai e avô. Não nos casaremos por tradição nem segundo a escolha das famílias. Escolheremos sempre por gosto ou por amor. Ou seja, temos a incrível pretensão de viver segundo nosso desejo.

E aqui a coisa se complica, porque, neste mundo sem castas fechadas e com poucas fronteiras, as possibilidades são muitas e, talvez por isso mesmo, os desejos que nos animam são variados e, frequentemente, estão em conflito entre si.

Ou seja, escolhemos entre caminhos diferentes, oferecidos pelas circunstâncias da vida, e também entre desejos que são todos nossos. Qualquer escolha implica perdas (dos caminhos que deixamos de percorrer) e desistências (de desejos nossos aos quais preferimos outros, também nossos).

Um leitor, Augusto Bezerril, pergunta se desistir de um sonho não é apenas o efeito de um conflito. Ele tem razão: em muitos casos, desistimos de um sonho para nos dedicar a outro, esperando resolver assim um conflito interno.

Outra leitora, Ana Chan, pergunta se "desistir dos desejos significa viver em frustração". Talvez haja algo disso na nossa insatisfação: a variedade de nossos desejos torna a satisfação difícil, se não impossível.

Mas o fato de ter que escolher entre desejos alimenta outra forma de insatisfação: não tanto uma frustração quanto uma espécie de nostalgia do que não foi -um afeto moderno, como é moderna a pluralidade de nossos sonhos.

Alguns dizem que é por isso que a ficção se torna tão importante na modernidade, para que possamos imaginar (e viver um pouco) as vidas das quais desistimos, os caminhos pelos quais não enveredamos.

Agora, a escolha entre desejos diferentes não é a desistência mais custosa: há indivíduos que não desistem de tal ou tal desejo, eles desistem de desejar. Aqui o afeto dominante não é mais a nostalgia, mas uma culpa da qual a gente parece nunca se curar: a culpa de ter traído a nós mesmos, de ter desprezado nosso sonho mais querido. Essa sensação é especialmente forte quando alguém considera que silenciou seu sonho de infância.

Mais uma leitora, Janaina Nascimento, pergunta: "Você nunca desprezou seu próprio desejo?" (e acrescenta: "Acho que você não vai responder").

Pois bem, desisti de vários desejos a cada encruzilhada, e, às vezes, com a impressão de estar traindo meu maior sonho. Por exemplo -pensava eu, voltando da Flip-, quando sou levado a falar de como me tornei romancista, acabo contando que escrever histórias era tudo o que queria desde os nove anos de idade, mas desisti aos 20, para me conformar à expectativa familiar de que eu fosse para a faculdade. Essa história é verídica e parece ser mesmo uma história de renúncia ou de desistência.

Mas será que é isso mesmo? Será que a gente desiste e renuncia? É possível. Mas a renúncia e a desistência são, antes de mais nada, jeitos melodramáticos de contar nossa história de modo a mantermos a ilusão confortável de que temos uma essência e somos definidos por desejos fundamentais -que (obviamente) não deveríamos trair.

De fato, a vida comporta poucas traições radicais de nós mesmos e de nossos desejos, e muitas soluções negociadas, espúrias, pelas quais a gente busca conciliar desejos diferentes com acasos, oportunidades e outros acidentes, reinventando-se a cada dia. 

quinta-feira, 7 de julho de 2011

É fácil desistir de nossos sonhos


Dedicamos mais energia à tentativa de silenciar os nossos sonhos do que à tentativa de realizá-los


GIL PENDER, o protagonista do último filme de Woody Allen, "Meia-Noite em Paris", quer deixar de escrever roteiros de sucesso (que ele mesmo acha medíocres) para se dedicar a coisas "mais sérias" e menos lucrativas: um romance, por exemplo. Ele acumulou dinheiro suficiente para tentar essa aventura por um tempo, em Paris, como um escritor americano dos anos 1920.

Infelizmente, Pender está prestes a se casar com uma noiva que aprecia muito seu sucesso atual, mas não tem gosto algum pela incerteza (financeira) de seu sonho. Tudo indica que ele se dobrará às expectativas da noiva, dos futuros sogros e do mundo, renunciando a seu desejo. Talvez seja por causa dessa renúncia, aliás, que noiva e sogros o desprezam (todo o mundo acaba desprezando o desejo de quem despreza seu próprio desejo).

Mas eis que, na noite parisiense, alguns fantasmas do passado levam Pender para a época na qual poderia viver uma vida diferente e mais intensa -a época na qual seria capaz de fazer apostas arriscadas.

A idade de ouro de Pender é a Paris de Hemingway, Fitzgerald, Cole Porter, Picasso etc. Como disse Gertrude Stein (outra protagonista do sonho do herói), eles são a geração perdida, entre uma guerra terrível e outra pior por vir (isso ela não sabia, mas talvez pressentisse). Por que eles fariam a admiração de Pender e a nossa? Hemingway responde quando explica a Pender que, para amar e escrever, é preciso não ter medo da morte. Claro, não ter medo da morte talvez seja pedir muito, mas Pender poderia mesmo se beneficiar com um pouco mais de coragem; se conseguisse decidir sua vida sem medo da noiva e dos sogros, seria um progresso.

Concordo com o que escreveu Marcelo Coelho, em artigo neste mesmo espaço na edição de 22 de junho: uma moral do filme é que "temos só uma vida para viver -a nossa", ou seja, tudo bem sonhar com a idade de ouro, à condição de acordar um dia.

Agora, o que emperra a vida de Pender não é seu sonho nostálgico, é o presente. A nostalgia, aliás, é seu recurso para não se esquecer completamente de seus próprios sonhos. É como se, para preservar seu desejo, ele o situasse numa outra época. Mas preservá-lo de quem?

Antes de mais nada, um conselho. Acontece, às vezes, que nosso sucesso não tenha nada a ver com nossos sonhos -por exemplo, você queria ser promotor de Justiça, mas fez algum dinheiro com a imobiliária de família e aí ficou, renunciando a seu sonho.

Nesses casos, uma precaução: case-se com alguém que ame seu sonho frustrado e não só seu sucesso; sem isso, inelutavelmente, chegará o dia em que você acusará seu casal de ter sido a causa de sua renúncia. Em outras palavras, é possível e, às vezes, necessário renunciar a nossos sonhos, mas é preciso escolher como parceiro alguém que goste desses sonhos e dos jeitos um pouco malucos que usamos para acalentá-los (no caso de Pender, passeios por Paris à meia-noite e na chuva).

Voltemos agora à pergunta: contra quem Pender precisou preservar seu desejo, mandando-o para outra época? Contra a noiva que desconsiderava seus sonhos? Aqui vem outra moral do filme.

Pender não é nenhum caso raro: todos nós, em média, dedicamos mais energia à tentativa de silenciar nossos sonhos do que à tentativa de realizá-los. Muitos dizem que desistiram de sonhos dos quais os pais não gostavam por medo de perder o amor deles. Mas por que Pender recearia perder o amor da noiva, que ele não ama, e dos sogros, que ele ama ainda menos?

O fato é que somos complacentes com as expectativas dos outros (que amamos ou não) à condição que elas nos convidem a desistir de nosso desejo. É isso mesmo, a frase que precede não saiu errada: adoramos nos conformar (ou nos resignar) às expectativas que mais nos afastam de nossos sonhos. Aparentemente, preferimos ser o romancista potencial que foi impedido de mostrar seu talento a ser o romancista que tentou e revelou ao mundo que não tinha talento. Desistindo de nossos sonhos, evitamos fracassar nos projetos que mais nos importam.

Em suma, da próxima vez que você se queixar de que seu casal afasta você de seus sonhos, lembre-se: foi você quem o escolheu.

E mais um conselho: se você encontrar alguém disposto a caminhar na chuva do seu lado, não fuja; molhe-se.

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Passeatas diferentes




Por que alguém desfila para pedir não liberdade para si mesmo, mas repressão para os outros?


DOMINGO PASSADO, em São Paulo, foi o dia da Parada Gay.
Alguns criticam o caráter carnavalesco e caricatural do evento. Alexandre Vidal Porto, em artigo na Folha do próprio domingo, escreveu que, na luta pela aceitação pública, "é mais estratégico exibir a semelhança" do que as diferenças, pois a conduta e a aparência "ultrajantes" podem ter "efeito negativo" sobre o processo político que leva à igualdade dos homossexuais. Conclusão: "O papel da Parada é mostrar que os homossexuais são seres humanos comuns, que têm direito a proteção e respeito, como qualquer outro cidadão".
Entendo e discordo. Para ter proteção e respeito, nenhum cidadão deveria ser forçado a mostrar conformidade aos ideais estéticos, sexuais e religiosos dominantes. Se você precisa parecer "comum" para que seus direitos sejam respeitados, é que você está sendo discriminado: você não será estigmatizado, mas só à condição que você camufle sua diferença.
Importa, portanto, proteger os direitos dos que não são e não topam ser "comuns", aqueles cujos comportamentos "caricaturais" testam os limites da aceitação social.
Nos últimos anos, mundo afora, as Paradas Gays ganharam a adesão de milhões de heterossexuais porque elas são o protótipo da manifestação libertária: pessoas desfilando por sua própria liberdade, sem concessões estratégicas. É essa visão que atrai, suponho, as famílias que adotam a Parada Gay como programa de domingo. A "complicação" de ter que explicar às crianças a razão de homens se esfregarem meio pelados ou de mulheres se beijarem na boca é largamente compensada pela lição cívica: com o direito deles à diferença, o que está sendo reafirmado é o direito à diferença de cada um de nós.
O mesmo vale para a Marcha para Jesus, que foi na última quinta (23), também em São Paulo. Para muitos que desfilaram, imagino que a passeata por Jesus tenha sido um momento de afirmação positiva de seus valores e de seu estilo de vida -ou seja, um desfile para dizer a vontade de amar e seguir Cristo, inclusive de maneira caricatural, se assim alguém quiser.
Ora, segundo alguns líderes evangélicos, os manifestantes de quinta-feira não saíram à rua para celebrar sua própria liberdade, mas para criticar as recentes decisões pelas quais o STF reconheceu a união estável de casais homossexuais e autorizou as marchas pela liberação da maconha. Ou seja, segundo os líderes, a marcha não foi por Jesus, mas contra homossexuais e libertários.
Pois é, existem três categorias de manifestações: 1) as mais generosas, que pedem liberdade para todos e sobretudo para os que, mesmo distantes e diferentes de nós, estão sendo oprimidos; 2) aquelas em que as pessoas pedem liberdade para si mesmas; 3) aquelas em que as pessoas pedem repressão para os outros.
O que faz que alguém desfile pelas ruas para pedir não liberdade para si mesmo, mas repressão para os outros?
O entendimento trivial desse comportamento é o seguinte: em regra, para combater um desejo meu e para não admitir que ele é meu, eu passo a reprimi-lo nos outros.
Seria simplório concluir que os que pedem repressão da homossexualidade sejam todos homossexuais enrustidos. A regra indica sobretudo a existência desta dinâmica geral: quanto menos eu me autorizo a desejar, tanto mais fico a fim de reprimir o desejo dos outros. Explico.
Digamos que eu seja namorado, corintiano, filho, pai, paulista, marxista e cristão; cada uma dessas identidades pode enriquecer minha vida, abrindo portas e janelas novas para o mundo, permitindo e autorizando sonhos e atos impensáveis sem ela. Mas é igualmente possível, embora menos alegre, abraçar qualquer identidade não pelo que ela permite, mas por tudo o que ela impede.
Exemplo: sou marido para melhor amar a mulher que escolhi ou sou marido para me impedir de olhar para outras? Não é apenas uma opção retórica: quem vai pelo segundo caminho se define e se realiza na repressão -de seu próprio desejo e, por consequência, do desejo dos outros. Para se forçar a ser monogâmico, ele pedirá apedrejamento para os adúlteros: reprimirá os outros, para ele mesmo se reprimir. No contexto social certo, ele será soldado de um dos vários exércitos de pequenos funcionários da repressão, que, para entristecer sua própria vida, precisam entristecer a nossa.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Drogas e gravatas




Concordo com o projeto de descriminalizar o consumo de maconha, mas o uso da erva não é sempre inócuo


NA TERÇA, 14 de junho, a Folha publicou, na Primeira Página, as imagens de um homem de paletó e gravata que comprava e fumava um cachimbo de crack, numa rua do centro de São Paulo.

No último domingo, Suzana Singer, ombudsman do jornal, em sua coluna, perguntou: "Por que aFolha decidiu expor dessa forma um suposto viciado?". A Secretaria de Redação respondeu: "A política do jornal vinha sendo não resguardar a identidade dos usuários de crack em locais públicos. Não vimos motivo para alterarmos o padrão porque a personagem, desta vez, vestia paletó e gravata".

Em suma, a reportagem queria mostrar que "o fenômeno do crack não se confunde com a pobreza e não atinge apenas moradores de rua". A reportagem notava, aliás, que, entre os "usuários eventuais, que vão à região para fumar uma pedra", há até "senhores com cerca de 60 anos vestindo terno".

De repente, dei-me conta de que, ao longo dos anos, vi dezenas de fotografias de drogados errando pela cracolândia, mostrados sem disfarce, mas não tenho memória de seus rostos. É como se eles não fossem indivíduos -apenas genéricos "noias", como eles são chamados pelas ideias paranoicas que os acometem. No entanto, o engravatado da foto de terça-feira era diferente: ele era reconhecível, singular -talvez porque sua aparência deixava supor que ele não tivesse se transformado (ainda?) num noia.

O crack é hoje o protótipo da droga que leva rapidamente à perdição. Será que a foto do engravatado mostra que existem usuários de crack que não se tornam noias? Será que é possível um uso lúdico do crack?

Não sei dizer, mas, ao ler as memórias de Bill Clegg, "Retrato de um Viciado Quando Jovem" (Cia. das Letras), qualquer leitor pode sentir quase na pele a prepotência com a qual a fissura se instala ao centro da vida de um usuário de crack, por mais engravatado que seja.

O texto é comovedor, pela ingenuidade do viciado e de nós, leitores, que, como o viciado, inevitavelmente, a cada vez, acreditamos que ele voltará à sua vida depois de só mais um cachimbo. Comovedor e também exasperante: como é que o cara não consegue se controlar e conciliar sua vida amorosa e profissional com uma tragada de vez em quando? "Segura tua onda, rapaz", a gente fica a fim de gritar.

Trivialidade: a virulência da fissura, assim como a natureza da dependência, é diferente para cada droga. Engravatado à parte, o crack transforma quase imediatamente seus consumidores em adictos, enquanto há pessoas que, durante a vida toda, fumam só um cigarro ou um baseado por semana.

Outra trivialidade: talvez tão importante quanto as qualidades específicas de cada droga seja o fato de que, por alguma diferença de personalidade e disposição, há usuários que se perdem na toxicomania e outros que parecem nunca correr esse risco.

A clínica com adolescentes me ensinou isto: em geral, quem se vicia não é tanto quem acha sua vida dolorosa ou injusta, mas quem a acha chata, ou seja, quem não consegue se interessar por sua própria vida.

É possível se drogar porque a vida já é uma festa, e, quem sabe, com mais uma bola, ela se torne mais alegre. Essa conduta é sempre menos nociva da que consiste em drogar-se pela incapacidade de achar graça na vida que se tem. Quem se droga porque acha a vida chata tende a trocar a vida pela droga.

Nos últimos dias, fala-se muito da descriminalização da maconha. Estreou "Quebrando o Tabu", de Fernando Grostein; houve a intervenção de Fernando Henrique Cardoso (que é, aliás, âncora do filme de Grostein), e houve a liberação das marchas da maconha pelo STF. Vários leitores pediram que expressasse minha opinião.

Aqui vai: concordo com o projeto de descriminalizar o consumo de maconha, mas discordo de quem afirma que qualquer uso de maconha seria inócuo. Nos adolescentes, por exemplo, um consumo diário e intenso (solitário, já de manhã) é frequentemente o sinal de uma depressão que é MUITO difícil vencer, uma vez que ela se instala.

Entendo que alguém, mofando num tédio mortal (e inexplicado), chegue à conclusão de que a vida sem maconha é uma droga. Mas, infelizmente, em regra, a droga aprofunda o vazio que ela é chamada a compensar ou corrigir. Ou seja, talvez a vida sem maconha seja uma droga, mas a maconha sem vida também é.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Por que acaba um casal?




Nossa cultura romanceia o namoro, mas imagina o casamento como se fosse uma "tumba do amor"


NO DOMINGO passado, Dia dos Namorados, um amigo mandou flores para sua mulher com este bilhete: "Posso ser seu namorado ou continuo sendo apenas seu marido?".
A frase foi bem recebida. É que, para nós, "namorado e namorada" pode ser muito mais do que "marido e mulher". Em regra, nossa cultura romanceia o namoro, mas imagina o casamento como uma tragicômica "tumba do amor".
Na última sexta, na Academia de Ideias de Belo Horizonte, durante um bate-papo com João Gabriel de Lima sobre meu último livro, ao falar de amor e casais, eu propus o seguinte: 1) todos tendemos a amarelar diante de nosso próprio desejo; 2) o casamento nos permite acusar alguém de nossa própria covardia -assim: eu quero fazer isso ou aquilo, mas tenho preguiça e medo; por sorte, agora que me casei, posso dizer que desisto porque assim quer minha parceira; 3) um casal, para valer a pena, não deveria servir para justificar as desistências de nenhum de seus membros; ao contrário, ele deveria potencializar os sonhos e os desejos de cada um dos dois.
Uma mulher me lembrou, com razão, que até esse tal casal que vale a pena pode acabar. E perguntou: por quê?
Existe uma sabedoria popular resignada sobre a duração de um casal. Os sentimentos do namoro viveriam, no casamento, uma decadência progressiva inelutável. E os casais continuariam unidos mais por inércia do que por gosto.
Alguns dizem que a rotina e a proximidade desgastam os sentimentos. Ou seja, o apaixonamento sempre é fruto de alguma idealização, e de perto ninguém parece ideal por muito tempo. Será que o remédio seria manter a distância para não enxergar as falhas do outro?
Respondo: amar não significa não enxergar os defeitos do outro, mas achar graça neles. Uma amiga perde um celular por semana; ela sabe que uma relação amorosa está acabando no dia em que seu homem, em vez de achar graça na sua desatenção, irrita-se com seu descuido.
Outros acusam o tédio. A novidade (valor mor da modernidade industrial) seria o ingrediente essencial (e, por definição, efêmero) do casal feliz. Ou seja, felizes são só os recém-casados.
Respondo: todos nós, neuróticos, amamos a repetição e a praticamos com afinco. A rotina, portanto, não deveria nos afastar do amor.
Volto, portanto, à pergunta: por que um casal acaba? Levantei a questão no Twitter, e @M_Angela_ Jesus me escreveu que, segundo Anaïs Nin, os casais não morrem nunca de morte natural, mas por falta de cuidados, de atenções e de esforços.
A citação me levou a pensar nos meus próprios casamentos fracassados; não cheguei a resultado algum, salvo o fato de que não deveríamos chamar necessariamente de fracasso um amor que acaba; erigir a duração em valor é uma ideia perigosa, que pode transformar separações bem-vindas e necessárias em processos laboriosos e infinitos.
No meio dessas reflexões, no domingo, fui assistir a "Namorados para Sempre", de Derek Cianfrance, que me tocou fundo, por ser justamente a história de um amor que não é mais possível. Isso, sem que os protagonistas consigam saber por que "não dá mais": nenhum deles é o vilão da crise, e nenhum deles é capaz de dizer o que está errado e deveria mudar para que o casal tivesse uma chance.
A julgar pela idade aparente da filha, o casal do filme dura há mais ou menos cinco anos. Em cinco anos, os namorados que, no primeiro encontro, haviam dançado e cantado na rua, cheios de alegria e de encantamento, transformaram-se num casal de estranhos que se encaram antes de se enxergar.
O que aconteceu? Não há resposta. Essa é a força do filme, que acua cada espectador a se perguntar o que foi que aconteceu a cada vez que ele ou ela amou, e o amor se perdeu.
Não é preciso que haja discordância brutal, traição ou desamor para que um casal se perca. Claro, é sempre possível racionalizar e apontar causas: no caso do filme, ao longo dos cinco anos, talvez ela tenha "crescido" profissionalmente (como se diz) e alimente agora ambições que ele não pode compartilhar porque, para ele, o casamento e a filha continuam sendo as únicas coisas que importam. Pode ser.
Mas talvez o fim de um amor seja um fenômeno tão misterioso quanto o apaixonamento. Talvez existam duas mágicas opostas, igualmente incontroláveis, uma que faz e outra que desfaz. 

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Síndrome de Fukushima


A realidade dos dias de hoje é uma meleca maluca: quando você aperta a mão, ela foge entre os dedos


EM 12 e 13 de junho, os italianos votarão, num referendo, a favor ou contra o uso da energia nuclear.

Portanto, em Veneza, na semana passada, o assunto corria pelas ruas. Tanto mais que, entre as possíveis sedes de uma usina nuclear, há Chioggia, numa das duas entradas da laguna, a 20 km da Piazza San Marco.

Por um momento, imaginei um futuro em que hordas de turistas deambulariam pelos "campi" da cidade de macacão branco e capacete de astronauta. Não é novidade: também já imaginei como seria fazer esqui náutico nas águas de Angra vestindo o mesmo macacão e o mesmo capacete.
Em Veneza, durante a Bienal, é frequente que casas e comércios vazios hospedem uma obra ou uma exposição. Num desses espaços, bem perto de um estande da campanha antinuclear, visitei "Memory of Books" (memória de livros), de Chiharu Chiota, uma artista japonesa que mora na Alemanha.

A obra apresenta um escritório, com cartas e livros cobertos por uma gigantesca teia de aranha: é como se enxergássemos nossa vida (inclusive os esforços de nosso pensamento) na nostalgia, depois de nosso sumiço da face da terra, pessoal ou coletivo.
Veja em http://migre.me/4JyrK.

Bom, esse era meu estado de espírito quando assisti à primeira palestra de "The State of Things" (o estado das coisas), uma série de conferências que é uma das contribuições da Noruega à Bienal de Arte. Na introdução, Marta Kuzma, diretora da entidade norueguesa que se ocupa de arte contemporânea, falou da "síndrome de Fukushima" como traço específico de nossa época. Logo, tomou a palavra Jacques Rancière, filósofo francês que aprecio e leio; o título da conferência era "In What Time Do We Live?" (em que tempo vivemos?). Rancière falou muito rapidamente e num inglês de sua invenção própria (ao menos foneticamente). Não entendi nada, mas acabei gostando, justamente porque não foi uma palestra, foi uma performance artística, uma demonstração lúdica de que nosso melhor pensamento, diante da complexidade do tempo em que vivemos, não passa de uma agitação sonora no dia depois da queda de Babel.

De repente, a expressão de Marta Kuzma me pareceu adquirir um novo sentido. A síndrome de Fukushima não designa os problemas dos quais padeceríamos por escolher o nuclear; ela designa a condição geral de nossos esforços discursivos e intelectuais (e também de nossa ação, claro) num mundo que apresenta sempre (e no mínimo) a mesma complexidade do acidente da usina nuclear japonesa.

Você se lembra da valsa de notícias e explicações depois do acidente? Teve um reator que vazou, mas está contido; não, parece que tem outro que está pior; por sorte, o resfriamento está funcionando; não, não está; a população não corre perigo; a população está sendo evacuada; não tem vazamento; só tem um pouco de radiações na terra ao redor da central; tem também nos legumes; tem no mar; não foi o terremoto, foi o tsunami; não foi o tsunami, foi o terremoto; é Tchernobil, de novo; não, é mais tipo Goiânia etc.

Certo, houve uma vontade de não alarmar excessivamente as populações, quem sabe negando a gravidade do que estava acontecendo, mas não acredito em nenhum plano explícito de ocultação. A ideia de um complô do silêncio seria, aliás, uma grande consolação, pois, se houvesse complô, haveria um desvendamento possível da verdade dos fatos e das responsabilidades. Quem dera.

De fato, a dificuldade contemporânea (mas que eu não trocaria por nenhuma volta ao passado) não é tanto o silêncio imposto (de fora ou de dentro) quanto o excesso de variáveis. E quanto maior for o número de variáveis que contam na nossa visão da realidade, tanto mais vão será o trabalho de entender e inventar conceitos.

"Conceito", aliás, vem do latim "cum capio", que sugere a ideia de conseguir pegar várias coisas ao mesmo tempo, num punho. Talvez a culpa seja nossa, por querermos e sabermos levar em conta demasiados fatores (ingredientes?) na hora de entender e decidir, mas o fato é que a realidade contemporânea se parece com uma meleca maluca: quando você aperta a mão, ela passa entre os dedos e foge da presa.

É isso que fiquei com vontade de chamar de síndrome de Fukushima, o efeito de uma complexidade (nas coisas e na gente) que pode transformar os discursos teóricos em performances sonoras.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Mas isto é arte?




Chegamos à Bienal nos perguntando se "aquilo" é arte, mas nos museus nos sentimos em santuários


SÁBADO, DIA 4, abre as portas a 54ª Bienal de Arte de Veneza. Gosto do clima cultural antes da abertura (nos jornais, na televisão e nos bares de Castello vingam as polêmicas sobre os curadores, os artistas convidados etc.). Em compensação, na cidade, a abertura é uma chatice: sentados às mesas dos restaurantes mais luxuosos ou plantados na popa das lanchas que servem de táxi, aparecem de repente centenas de personagens que talvez sejam artistas, curadores e intelectuais do mundo inteiro -mas acontece que, para ter cara de artistas, curadores etc., eles se esforçam tanto que parecem ser figurantes pagos por uma agência de turismo local.

Enfim, fico em Veneza até amanhã. E voltarei em julho, quando, passada a primeira semana de glamour, tanto a Bienal quanto as numerosas paralelas estarão abertas e quase desertas -até novembro.

Não sei mais quantas Bienais de Arte de Veneza visitei. Tudo indica que a deste ano será boa, mas, agora, o que me interessa é este fato, que se repete a cada dois anos: nos dias antes de a mostra abrir, a imprensa italiana descobre as primeiras obras que chegam à cidade e sempre pergunta: "Mas, afinal, isto é arte?".

Claro, ninguém consegue responder, nunca. E eu acho ótimo que seja assim.

Corajoso, o crítico Achille Bonito Oliva (no jornal "La Repubblica" de 28 de maio) propôs um catálogo de sugestões ou critérios, que me inspiraram alguns comentários.

1. "É preciso chegar diante da obra desarmados, ou melhor, com um preconceito favorável." A sugestão me fez pensar, paradoxalmente, no excesso de preconceito favorável com o qual, em regra, nós nos aproximamos da arte "clássica". Enquanto entramos numa Bienal perguntando, irônicos, se "aquilo" é arte, entramos nos museus como se fossem santuários. No entanto, há muitas obras dos últimos seis séculos que são formalmente falidas e triviais pelo tema.

Gostaria que, na hora de visitar um museu, a gente pudesse deixar nosso preconceito favorável no vestiário e evitar se extasiar quando não há por quê. No museu da Accademia, na semana passada, uma mãe exasperada tentava incutir respeito (não apreciação: respeito) a um menino de sete anos que achava aquilo tudo muito chato; a cena acontecia diante de uma medíocre crosta do século 17. Não seria mau se nós mesmos aprendêssemos a entrar nos grandes museus (que às vezes são apenas museus grandes) com a irreverência de uma criança que não está a fim de ser entediada.

2. "A arte é forma... Se ela precisa de demasiadas explicações, de legendas, a obra faliu." Aplaudo: gosto de enriquecer minha experiência lendo sobre a de outros diante da mesma obra, mas a obra que PRECISA de um modo de uso é fracassada.

3. "A arte deve pensar o mundo", sugere Bonito Oliva. Concordo, mas sempre parecemos oscilar entre dois estereótipos: o do crítico e o do jornalista.
O estereótipo do crítico prefere ser incompreensível, talvez por medo de simplificar e reduzir.

O estereótipo do jornalista, preocupado com o conforto de seus leitores, resume a obra ao óbvio. Exemplo. Jennifer Allora e Guillermo Calzadilla, artistas norte-americanos, propõem (no pavilhão dos EUA) um tanque de guerra de cabeça para baixo com, em cima, uma esteira sobre a qual correrão (na abertura, suponho) os membros do time de atlética dos EUA.

Já houve jornalistas para decretar que a obra denuncia a guerra e propõe o esporte como alternativa. Caramba! Só para começar: talvez a obra afirme que guerra e esporte são misérias (ou glórias) comparáveis, duas faces da mesma medalha. E que tal se a denúncia dissesse que o horror da guerra não é muito pior do que o domínio exercido sobre nós pela ditadura higienista do corpo em forma?

Bonito Oliva conclui dizendo que "a arte é o domingo da vida", porque representa a suspeita de uma outra beleza, a esperança de um desconcerto. Por isso mesmo, preferiria dizer que a arte é o sábado da vida -na espera de domingos, que sempre decepcionam um pouco.

Enfim, a modernidade (é o que mais gosto nela) é a época da dúvida como valor. Ter uma conduta moral, para nós, significa não parar de se perguntar o que é justo e o que é errado. Da mesma forma, apreciar nossa arte talvez signifique não parar de se perguntar: "Será que isto é arte?".

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Considerações sobre novos desejos


Causa da depressão pode não ser perda e frustração, mas a chegada de novo desejo, que é silenciado


UM JOVEM não sabe o que ele está a fim de fazer da vida, e os pais pedem que eu descubra qual é o desejo do filho, de modo que ele possa escolher o vestibular e a profissão que ele "realmente" gostaria.

Na mesma semana, encontro um adulto que acha que, de fato, nunca fez nada por desejo. Embora bem-sucedido, queixa-se de que suas escolhas (profissionais e amorosas) sempre teriam sido circunstanciais, efeitos de oportunidades encontradas ao longo do caminho. Ele pede, antes que seja tarde, que eu o ajude a descobrir qual é "realmente" o seu desejo.

Nos dois casos, o pressuposto é o mesmo: quem viver segundo seu desejo será, no mínimo, mais alegre. Esta é mesmo uma boa definição da alegria: a sensação de que nosso desejo está engajado no que estamos fazendo, ou seja, de que nossa vida não acontece por inércia e obrigação. Inversa e logicamente, muitos estimam dever sua (grande ou pequena) infelicidade ao fato de terem dirigido a vida por caminhos que - eles declaram - não eram exatamente os que eles queriam.

Pois bem, esse pressuposto e os pedidos que recebi se chocam com esta constatação: o "nosso desejo" nunca é UM desejo definido por UM objeto ou por UM projeto. Não existe, nem escrito lá no fundo escondido de nossa mente, UM querer definido, que poderíamos descobrir e, logo, praticar com afinco e satisfação porque estaríamos fazendo aquela coisa ou caçando aquele objeto aos quais éramos, por assim dizer, destinados. Nada disso: de uma certa forma, todos os objetos e os projetos se valem, e nenhum é "nosso" objeto ou projeto específico. Ou seja, nós desejamos sempre segundo as circunstâncias, os encontros, as oportunidades - segundo as tentações, se você preferir.

Somos volúveis? Nem tanto, pois cada objeto e projeto não substitui necessariamente o anterior. O que acontece é que desejar é uma atividade inventiva a jato contínuo.

Por consequência, mesmo quando estamos alegremente convencidos de estar fazendo o que queremos com nossa vida, nunca estamos ao abrigo do surgimento de desejos novos.

Claro, podemos aceitar esses desejos novos. Por exemplo, em "As Confissões de Schmidt" (que não é um grande filme), de A. Payne, com Jack Nicholson, o protagonista acorda de noite, olha para sua mulher de sei lá quantos anos e se pergunta estupefato: "Quem é esta mulher que dorme na minha cama?". Logo, ele dá um rumo novo à sua vida, colocando o pé na estrada. Mas a expressão de seus novos desejos é fortemente facilitada por duas circunstâncias: providencialmente, o protagonista se aposenta e fica viúvo. Nessas condições, escutar novos desejos fica fácil, não é?

Agora, imaginemos alguém que esteja no meio de sua vida profissional e num bom momento de sua vida amorosa. Nesse caso, provavelmente, o novo desejo será silenciado, reprimido, menosprezado ("deixe para lá, é besteira"). Resultado: o indivíduo continuará declarando que está vivendo a vida que ele queria (e, em parte, será verdade); só que, de repente, sem entender por quê, ele perderá sua alegria.

Por que razão nosso indivíduo negligenciaria seus novos desejos? Simples: por serem novos, eles acarretam a ameaça de uma ruptura no presente: afetos e laços que poderiam ser perdidos, medo da solidão e preguiça dos esforços necessários para reinventar a vida.

Infelizmente, essa negligência tem um custo alto. Sempre entendi assim a "Metamorfose", de Kafka: alguém acorda, e o que até então era uma vida normal e legal, de repente, aos seus olhos, é uma vida de barata.

Nota útil para a clínica da depressão. Às vezes, procuramos em vão as causas de uma depressão; será que houve lutos ou perdas? Nada disso; está tudo bem, trabalho, família, filhos e tal, mas o indivíduo entristece, volta a fumar e a beber como se quisesse encurtar a vida, engorda como se estivesse num mar de frustração e precisasse de gratificações alternativas.

Em muitas dessas vezes, a origem da depressão não é uma perda, nem propriamente uma frustração, mas a aparição de um desejo novo que não foi reconhecido. E os novos desejos, sobretudo quando são silenciados, desvalorizam a vida que estamos vivendo.

Moral da fábula: 1) Não existem vidas definitivamente resolvidas, pois novos desejos surgem sempre; 2) É bom reconhecer os novos desejos, mesmo que deixemos de realizá-los.

quinta-feira, 12 de maio de 2011

Bye bye, Bin Laden


Bin Laden foi apenas o parasita de um conflito psíquico moderno, que ele se dedicou a exacerbar


ESSE TÍTULO vai me valer alguns e-mails indignados pela falta de respeito por Bin Laden. Mas por que eu o respeitaria? Porque ele pôde decidir a hora da morte de milhares de vítimas casuais e de dezenas de coitados que ele mandou se explodir?

A modernidade ocidental é uma cultura que despreza a si mesma: onde deveríamos festejar nossa extrema liberdade e nossa leveza, lamentamos a ausência de normas absolutas e fustigamos nossa "leviandade". Cegos diante do fato de que a ausência de valores absolutos é um valor positivo de nossa cultura, idealizamos os extremistas, que matam por suas "ideias". Os assassinos podem fascinar alguns incautos: eles sim, levariam a vida a sério! De fato, levam a sério só a morte.

Enfim, alguém dirá que, seja como for, eu deveria respeitar Bin Laden pelas ideias que ele representa. Acontece que, para mim, ele nunca representou ideia alguma (religiosa ou não); apenas tirou sangue de um dos grandes dramas íntimos do homem contemporâneo. Como assim? Vou resumir ao essencial.

Muitos se lembram do artigo que Samuel Huntington publicou em 1993, na revista "Foreign Affairs", e que virou livro, "O Choque de Civilizações" (Ponto de Leitura).

Huntington anunciava que, no mundo de amanhã, a fonte principal de conflito não seria nem econômica nem ideológica, mas cultural: "Os conflitos principais da política global acontecerão entre nações e grupos de civilizações diferentes. O choque de civilizações dominará a política global". Depois do 11 de setembro de 2001, suas palavras pareceram proféticas: o conflito do novo século seria entre o fundamentalismo islâmico e o Ocidente.

Muitos criticaram Huntington afirmando que o divisor de água entre culturas não é suficientemente rigoroso para justificar os conflitos que ele previa. Por exemplo, as identidades, mesmo nas sociedades tradicionais, são complexas e conflitivas: uma mulher afegã de burca pode pertencer ao Taleban e, mesmo assim, desenvolver uma consciência feminina (se não feminista) que a aproxima das mulheres ocidentais. Além disso, as ideologias atravessam as fronteiras culturais, criando oposições mais complexas do que a oposição entre civilizações.

De fato, sempre houve conflitos entre culturas opostas, com vontade de se invadir mutuamente e de converter os outros ou, se eles não aceitarem, de exterminá-los. Mas, justamente, a simples oposição entre culturas leva às bombas - não aos homens-bomba. E é o homem-bomba que explica o terrorismo moderno.

O homem-bomba (diferente do kamikaze japonês em 1944) não é um subterfúgio estratégico (tipo: é só com um sacrifício humano que a gente conseguiria colocar o explosivo na hora e no lugar certos). Homem-bomba é quem PRECISA se explodir junto com seus inimigos. Mas por quê?

Pois é, o homem-bomba não é um fanático que tenta matar inimigos de uma "civilização" diferente. Ao contrário, o homem-bomba é filho da abertura moderna do mundo e das fronteiras, com seu corolário: a competição das culturas pelos corações e pelas mentes de todos e especialmente dos que viajam e migram.

Quem migra de uma cultura tradicional para a modernidade ocidental fica quase sempre dramaticamente dividido entre a sedução do Ocidente e a culpa de estar traindo sua cultura de origem.

Dois pilotos do 11 de Setembro, na noite do dia 10, despediram-se da vida bebendo e brincando num "night club"; aparentemente, eles imaginavam o paraíso dos mártires, com sei lá quantas virgens, nos moldes de um "night club" da Nova Inglaterra. Quase certamente, eles se odiavam e nos odiavam por isso.

Explodindo os inimigos, o homem-bomba tenta silenciar um mundo que o tenta e ao qual ele não sabe resistir. Explodindo-se, ele resolve o conflito do qual ele mais sofre: seu conflito interno.

Bin Laden não foi representante de nenhuma ideia ou cultura; foi apenas parasita de um conflito psíquico.

Enquanto terapeuta, tenho por ele um desprezo particular. Afinal, bem ou mal, eu passo meu dia tentando ajudar as pessoas a negociar e tolerar seus conflitos internos. Bin Laden dedicou sua vida à tarefa de tornar intolerável o conflito interno de migrantes e viajantes, para convencê-los a vestir um cinto de explosivos. Bye bye.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Aristocracias e celebridades




Os indivíduos que sofrem de transtornos narcisistas estão dispostos a tudo para se tornarem "famosos"


1) NO VERÃO de 1962, passei um fim de semana na ilha de Wight, no barco de John Wheeler, um cabinado de 24 pés, fabricado em 1908, com um motor tossegoso.
John, 62, livreiro em Londres, contou que, em 1940, com aquele barco, ele atravessara o canal da Mancha para salvar soldados do Exército inglês, que estava sendo decimado pelos bombardeios alemães, na praia francesa de Dunkerque.

Ao ser informado da situação pelo rádio, ele tinha saído mar adentro, na noite. No canal, outros marinheiros do domingo navegavam no escuro, como ele, rumo à costa francesa. Nem todos voltaram.

John contara a história para elogiar o barco, que dera conta do recado. Quando louvei sua coragem, ele minimizou: "Se o rei (George 6º, o mesmo de "O Discurso do Rei') e a rainha ficavam no palácio de Buckingham durante os bombardeios, bem que eu podia encarar umas bombas para trazer nossos moleques para casa".

Lembrei-me disso na semana passada, quando me perguntaram: para quê serve um rei que nem governa? Pois é, a realeza (e a aristocracia, em geral) poderiam servir para lembrar que, às vezes, é melhor perder a vida do que perder a compostura e a dignidade.

2) Nos anos 70, fui convidado a uma caça à raposa na Normandia (França). Em tese, aceito caçar só animais comestíveis, mas sou bom cavaleiro e quis fazer a experiência. Depois de duas horas, eu e outro cavaleiro estávamos atravessando um bosque (desconhecido) num bom galope, quando ouvimos, pela direita, os trombeteiros anunciando "la vue" (ou seja, eles estavam enxergando a raposa).

Fomos com tudo e, na corrida, pulamos um muro de pedra de menos de um metro. Meu cavalo enrijeceu: do outro lado do muro, escondido, abria-se um barranco. Levantei nos estribos, fechei as pernas e puxei as rédeas para que o cavalo se apoiasse na boca. Tive sorte: meu cavalo caiu de joelhos, mas se levantou na hora, comigo em cima. O outro deu uma cambalhota e deixou seu cavaleiro imóvel, no chão.

No fim do dia, havia quatro traumatizados graves, e alguém perdera um olho, arrancado por um galho.


Perguntei ao amigo que me convidara se ele não achava preocupante essa percentagem de feridos. Ele me respondeu, sério, que era inferior à dos mortos franceses na batalha de Agincourt (na qual, em 1415, combatera um antepassado ilustre de sua família).

Entendi assim: o que importava ao meu amigo não era a raposa, e o que importava ao seu antepassado não era a batalha de Agincourt. Para ambos, o que importava era dar prova (ao mundo e a si mesmos) de seu desprendimento da vida.

3) Na "Fenomenologia do Espírito" (1806), Hegel explicava que o mestre é aquele que não hesita em encarar a morte, e o servo é sobretudo escravo de seu próprio desejo de sobreviver. À primeira vista, isso valeria para o mundo antigo, em que bandidos e cavaleiros destemidos erravam pelas terras de camponeses aterrorizados. Mas a definição era também profética: hoje, somos todos servos da vontade de viver mais. Tentamos brilhar por riqueza, competência ou boa saúde -ou seja, pelo sucesso em nosso apego à vida. O que nos deixa uma certa nostalgia do mestre antigo, que desafiava a morte.

4) O dr. Drew Pinsky anima "Celebrity Rehab", uma espécie de "BBB" da TV americana, no qual pessoas famosas, para se curar de suas graves adições, internam-se numa clínica repleta de câmeras e microfones. O programa é duvidoso, mas, em 2009, Pinsky publicou "The Mirror Effect" (o efeito espelho, HarperCollins), cuja tese central diz que a fama não torna ninguém doente, o que acontece é o inverso: muitos se tornam celebridades graças à sua doença. É assim: os indivíduos que sofrem de transtornos narcisistas são inseguros, vazios e dispostos a qualquer coisa para serem conhecidos e reconhecidos. "Qualquer coisa" inclui adições pesadas e condutas de alto risco.

Essas celebridades constituem um novo tipo de aristocracia: uma aristocracia ao avesso. A antiga era feita, em tese, de homens tão fortes que não se importavam em morrer. A nova parece ser feita de homens tão fracos que eles estão dispostos a morrer para mendigar um pouco de atenção.

5) A nostalgia do mestre antigo e de seu desprendimento da vida pode idealizar uma outra figura, além da "celebrity" drogada e suicida: o homem-bomba. Mas me despedirei de Bin Laden na quinta que vem. 

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Tudo ou nada




As potências interventoras na Líbia têm interesses escusos e motivações duvidosas. E daí?

NINGUÉM TEM simpatia por Gaddafi, e todos concordamos: se a intervenção da Otan não tivesse protegido a cidade de Benghazi, as milícias do ditador líbio teriam perpetrado um massacre.


Por isso mesmo, desde que a Otan começou sua intervenção (cujo êxito ainda está incerto), as vozes de dissenso não discutem o mérito da ação; "apenas" levantam dúvidas sobre as intenções dos interventores: quais são seus "reais" motivos? Suspeitas levantadas:


1) As potências interventoras obedecem a interesses escusos: é o petróleo; é a cobiça neocolonialista; para algumas, é a proximidade de eleições domésticas e a necessidade de ganhar a simpatia da direita antiárabe.


2) Quando elas invocam grandes princípios, as potências estão mentindo. Prova disso: por que elas intervêm na Líbia e não em outros países que sofrem sob ditaduras tão ferrenhas quanto? Aparentemente, quando se trata de ditadores que são cúmplices ou aliados, as potências se esquecem facilmente de seus nobres ideais, não é?


3) Ao escolherem seus alvos, as potências se orientam, antes de mais nada, pela facilidade das operações. Gaddafi não tem amigos a fim de entrar em guerra para defendê-lo. Além disso, o deserto da Líbia facilita o bombardeio aéreo seletivo, e a proximidade com a Europa faz com que seja possível intervir a partir de bases da própria Otan, sem pedir a ajuda ou a autorização de ninguém. Se a Líbia estivesse no meio do continente africano e fosse coberta de florestas e montanhas, provavelmente, as potências fechariam os olhos, como de fato os fecharam no caso de Ruanda.


Pois bem, concordo com todas essas "suspeitas" e com mais algumas, mas pergunto: e daí?


Ao longo da história, muitas das melhores ideias avançaram graças a ajudas e alianças duvidosas. O ideal democrático e republicano apareceu e prosperou na guerra de independência dos Estados Unidos, exitosa graças também à ajuda da França de Luís 16, o qual certamente não simpatizava com os revolucionários e queria apenas dificultar a vida dos ingleses.


Alguns maldizentes contam, aliás, que a ajuda se deveu sobretudo a um caso entre a rainha Maria Antonieta e Thomas Jefferson, embaixador dos EUA em Paris. Pouco importa, o curioso é que tanto Luís 16 quanto sua rainha foram atropelados pelas ideias a cujo triunfo eles contribuíram.


O princípio de autodeterminação dos povos se afirmou na Europa do século 19. Ora, você acha que Napoleão 3º ajudou o Piemonte a formar a Itália porque acreditava nos ideais de independência nacional e vontade popular ou porque queria enfraquecer o Império Austro-Húngaro e também curtia a ideia de ganhar a Saboia e um pedaço de Liguria em troca pela sua ajuda?


Mais uma: a partir de 1920, mundo afora, as lutas sociais foram sustentadas pelo apoio econômico da União Soviética (note-se que o declínio das esquerdas europeias desde os anos 1990 coincide com o fim desse apoio).


Nada contra isso, os avanços obtidos foram preciosos, e eu adorava as edições gratuitas de Marx em capa dura, impressas em Moscou, assim como as férias pagas nos cursos intensivos para militantes na Iugoslávia. Mas, cá entre nós, você acha que a intervenção soviética era a pura expressão da nobre solidariedade internacional-socialista?


Em suma, as dúvidas levantadas quanto às intenções de potências interventoras não me escandalizam. Ao contrário, elas me levam a constatar a extraordinária e inquietante sedução que exerce, entre nós, o argumento do tudo ou nada.


Pelo argumento do tudo ou nada, uma ação só tem legitimidade moral se sua motivação for perfeitamente pura, sem mistura alguma com interesses e cálculos "oportunistas". Corolário: a pureza das intenções seria por si só garantia indiscutível de legitimidade moral. E essa é uma ideia que me dá calafrios.


"Omnia munda mundis", diz a epístola de Paulo a Tito: tudo é puro para os puros, ou seja (é fácil desenvolver), para quem age com intenções puras tudo é permitido, pois, para ele, tudo é moral.


Os impuros são minha turma: mesmo em seus piores momentos, são sensíveis à contradição, pois lidam sempre com a complexidade atrapalhada de suas próprias intenções e com a falta de legitimidade de seus atos. Enquanto os puros... Pois é, tente conversar com os puros.

sábado, 23 de abril de 2011

Estilos da vida




Nós todos adotamos ou inventamos um estilo singular para a história de nossa vida

VOCÊ SE lembra daqueles personagens de quadrinhos que são impiedosamente seguidos por uma nuvem preta, que é uma espécie de guarda-chuva ao contrário? Eles não têm para onde fugir: deslocam-se, mas a chuva os persegue, mesmo debaixo do teto de sua casa.

Claro, no outro extremo do leque há pessoas que são seguidas por um sol esplendoroso, mesmo quando estão no escuro ou no meio de um desastre que deveria empalidecer a luz do dia (se ela tivesse vergonha na cara).


Em suma, cada um de nós parece estar sempre numa condição meteorológica que lhe é própria e não depende nem da estação nem dos acontecimentos do momento.


Esse clima privado, como um pano de fundo que nos seria imposto, é uma consequência quase inevitável dos primórdios de nossa vida e das bênçãos ou maldições murmuradas ao redor de nosso berço.


Talvez sejamos um pouco mais livres para escolher o estilo da vida que levaremos, seja qual for nosso pano de fundo.


Geralmente, por estilo DE vida, entende-se um modelo que a gente imita para construir uma identidade e propô-las aos olhos dos outros. Mas o estilo DA vida, que é o que me interessa hoje, é outra coisa: é a forma literária na qual cada um narra sua própria vida, para si mesmo e para os outros. Um exemplo.


Acabo de ler (e continuarei relendo por um bom tempo) "The Book of Dreams" (o livro dos sonhos), de Federico Fellini (ed. Rizzoli). São mais de 400 páginas, em grande formato, que reproduzem fotograficamente os cadernos nos quais o diretor italiano registrou seus sonhos, em palavras e desenhos, de 1960 a 1968 e de 1973 a 1990 (ele morreu em 1993).


Tullio Kezich, que assina a introdução, conta que, em 1952, no seu primeiríssimo encontro com Fellini, o diretor lhe perguntou o que ele tinha sonhado no dia anterior. Tullio não sabia e ganhou uma filípica de Fellini sobre a importância de não perder o "trabalho noturno", que seria no mínimo tão significativo quanto o que pensamos e fazemos quando estamos acordados.


Fellini amava dormir e sonhar; ele vivia com um caderno ao lado da cama, onde registrava texto e visões imediatamente, ao despertar. E note-se que seu interesse pelos sonhos era anterior a seu primeiro contato com a psicanálise (que foi desastrado, com um freudiano, em 1954, e bem-sucedido com um junguiano, Ernst Bernhard, de 1960 a 1965, quando Bernhard morreu).


Vários amigos que me viram ler o livro me perguntaram se, então, os sonhos de Fellini serviam de material para seus filmes. A questão não cabe. O que o livro revela é que, para Fellini, o sonho era, por assim dizer, o gênero literário no qual ele vivia (e portanto contava) sua vida- nos cadernos da mesa de cabeceira, nos filmes e no dia a dia.


Cuidado. Fellini não especulava nem um pouco sobre, sei lá, a "precariedade" de nossa percepção, que pode confundir sonho com realidade. Ele nunca se perguntava se o que estava vivendo era sonho ou realidade, porque, para ele, o sonho era, propriamente, o estilo da realidade.


Esse estilo era o que fazia com que seu olhar estivesse constantemente maravilhado ou atônito: graças a esse estilo, ele atravessava (e contava) a vida como "um mistério entre mistérios" (palavras dele).


Pois bem, nós todos adotamos ou inventamos um estilo singular para a história de nossa vida -é o estilo graças ao qual nossa vida se transforma numa história.


Cada um escolhe, provavelmente, o estilo narrativo que torna sua vida mais digna de ser vivida (e contada). Há estilos meditativos, investigativos, introspectivos, paranoicos ou, como no caso de Fellini, oníricos e mágicos.


Quanto a mim, o estilo narrativo da minha vida é, sem dúvida, a aventura. Não só pelos livros que me seduziram na infância ("Coração das Trevas", de Conrad, seria o primeiro da lista). Mas porque a narrativa aventurosa sempre foi o que fez que minha vida valesse a pena, ou seja, não fosse chata, mesmo quando tinha toda razão para ser.


Quando meu filho, aos quatro ou cinco anos, parecia se entediar, eu sempre recorria a um truque, que ele reconhecia como truque, mas que funcionava. Eu me calava e me imobilizava de repente, como se estivesse ouvindo um barulho suspeito e inquietante; logo eu sussurrava: "Atenção! Os piratas!".


Nem ele nem eu acreditávamos na chegada dos piratas, mas ambos achávamos que a vida merecia um pouco de suspense.