quarta-feira, 4 de maio de 2011

Aristocracias e celebridades




Os indivíduos que sofrem de transtornos narcisistas estão dispostos a tudo para se tornarem "famosos"


1) NO VERÃO de 1962, passei um fim de semana na ilha de Wight, no barco de John Wheeler, um cabinado de 24 pés, fabricado em 1908, com um motor tossegoso.
John, 62, livreiro em Londres, contou que, em 1940, com aquele barco, ele atravessara o canal da Mancha para salvar soldados do Exército inglês, que estava sendo decimado pelos bombardeios alemães, na praia francesa de Dunkerque.

Ao ser informado da situação pelo rádio, ele tinha saído mar adentro, na noite. No canal, outros marinheiros do domingo navegavam no escuro, como ele, rumo à costa francesa. Nem todos voltaram.

John contara a história para elogiar o barco, que dera conta do recado. Quando louvei sua coragem, ele minimizou: "Se o rei (George 6º, o mesmo de "O Discurso do Rei') e a rainha ficavam no palácio de Buckingham durante os bombardeios, bem que eu podia encarar umas bombas para trazer nossos moleques para casa".

Lembrei-me disso na semana passada, quando me perguntaram: para quê serve um rei que nem governa? Pois é, a realeza (e a aristocracia, em geral) poderiam servir para lembrar que, às vezes, é melhor perder a vida do que perder a compostura e a dignidade.

2) Nos anos 70, fui convidado a uma caça à raposa na Normandia (França). Em tese, aceito caçar só animais comestíveis, mas sou bom cavaleiro e quis fazer a experiência. Depois de duas horas, eu e outro cavaleiro estávamos atravessando um bosque (desconhecido) num bom galope, quando ouvimos, pela direita, os trombeteiros anunciando "la vue" (ou seja, eles estavam enxergando a raposa).

Fomos com tudo e, na corrida, pulamos um muro de pedra de menos de um metro. Meu cavalo enrijeceu: do outro lado do muro, escondido, abria-se um barranco. Levantei nos estribos, fechei as pernas e puxei as rédeas para que o cavalo se apoiasse na boca. Tive sorte: meu cavalo caiu de joelhos, mas se levantou na hora, comigo em cima. O outro deu uma cambalhota e deixou seu cavaleiro imóvel, no chão.

No fim do dia, havia quatro traumatizados graves, e alguém perdera um olho, arrancado por um galho.


Perguntei ao amigo que me convidara se ele não achava preocupante essa percentagem de feridos. Ele me respondeu, sério, que era inferior à dos mortos franceses na batalha de Agincourt (na qual, em 1415, combatera um antepassado ilustre de sua família).

Entendi assim: o que importava ao meu amigo não era a raposa, e o que importava ao seu antepassado não era a batalha de Agincourt. Para ambos, o que importava era dar prova (ao mundo e a si mesmos) de seu desprendimento da vida.

3) Na "Fenomenologia do Espírito" (1806), Hegel explicava que o mestre é aquele que não hesita em encarar a morte, e o servo é sobretudo escravo de seu próprio desejo de sobreviver. À primeira vista, isso valeria para o mundo antigo, em que bandidos e cavaleiros destemidos erravam pelas terras de camponeses aterrorizados. Mas a definição era também profética: hoje, somos todos servos da vontade de viver mais. Tentamos brilhar por riqueza, competência ou boa saúde -ou seja, pelo sucesso em nosso apego à vida. O que nos deixa uma certa nostalgia do mestre antigo, que desafiava a morte.

4) O dr. Drew Pinsky anima "Celebrity Rehab", uma espécie de "BBB" da TV americana, no qual pessoas famosas, para se curar de suas graves adições, internam-se numa clínica repleta de câmeras e microfones. O programa é duvidoso, mas, em 2009, Pinsky publicou "The Mirror Effect" (o efeito espelho, HarperCollins), cuja tese central diz que a fama não torna ninguém doente, o que acontece é o inverso: muitos se tornam celebridades graças à sua doença. É assim: os indivíduos que sofrem de transtornos narcisistas são inseguros, vazios e dispostos a qualquer coisa para serem conhecidos e reconhecidos. "Qualquer coisa" inclui adições pesadas e condutas de alto risco.

Essas celebridades constituem um novo tipo de aristocracia: uma aristocracia ao avesso. A antiga era feita, em tese, de homens tão fortes que não se importavam em morrer. A nova parece ser feita de homens tão fracos que eles estão dispostos a morrer para mendigar um pouco de atenção.

5) A nostalgia do mestre antigo e de seu desprendimento da vida pode idealizar uma outra figura, além da "celebrity" drogada e suicida: o homem-bomba. Mas me despedirei de Bin Laden na quinta que vem. 

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