Chegamos à Bienal nos perguntando se "aquilo" é arte, mas nos museus nos sentimos em santuários |
SÁBADO, DIA 4, abre as portas a 54ª Bienal de Arte de Veneza. Gosto do clima cultural antes da abertura (nos jornais, na televisão e nos bares de Castello vingam as polêmicas sobre os curadores, os artistas convidados etc.). Em compensação, na cidade, a abertura é uma chatice: sentados às mesas dos restaurantes mais luxuosos ou plantados na popa das lanchas que servem de táxi, aparecem de repente centenas de personagens que talvez sejam artistas, curadores e intelectuais do mundo inteiro -mas acontece que, para ter cara de artistas, curadores etc., eles se esforçam tanto que parecem ser figurantes pagos por uma agência de turismo local.
Enfim, fico em Veneza até amanhã. E voltarei em julho, quando, passada a primeira semana de glamour, tanto a Bienal quanto as numerosas paralelas estarão abertas e quase desertas -até novembro.
Não sei mais quantas Bienais de Arte de Veneza visitei. Tudo indica que a deste ano será boa, mas, agora, o que me interessa é este fato, que se repete a cada dois anos: nos dias antes de a mostra abrir, a imprensa italiana descobre as primeiras obras que chegam à cidade e sempre pergunta: "Mas, afinal, isto é arte?".
Claro, ninguém consegue responder, nunca. E eu acho ótimo que seja assim.
Corajoso, o crítico Achille Bonito Oliva (no jornal "La Repubblica" de 28 de maio) propôs um catálogo de sugestões ou critérios, que me inspiraram alguns comentários.
1. "É preciso chegar diante da obra desarmados, ou melhor, com um preconceito favorável." A sugestão me fez pensar, paradoxalmente, no excesso de preconceito favorável com o qual, em regra, nós nos aproximamos da arte "clássica". Enquanto entramos numa Bienal perguntando, irônicos, se "aquilo" é arte, entramos nos museus como se fossem santuários. No entanto, há muitas obras dos últimos seis séculos que são formalmente falidas e triviais pelo tema.
Gostaria que, na hora de visitar um museu, a gente pudesse deixar nosso preconceito favorável no vestiário e evitar se extasiar quando não há por quê. No museu da Accademia, na semana passada, uma mãe exasperada tentava incutir respeito (não apreciação: respeito) a um menino de sete anos que achava aquilo tudo muito chato; a cena acontecia diante de uma medíocre crosta do século 17. Não seria mau se nós mesmos aprendêssemos a entrar nos grandes museus (que às vezes são apenas museus grandes) com a irreverência de uma criança que não está a fim de ser entediada.
2. "A arte é forma... Se ela precisa de demasiadas explicações, de legendas, a obra faliu." Aplaudo: gosto de enriquecer minha experiência lendo sobre a de outros diante da mesma obra, mas a obra que PRECISA de um modo de uso é fracassada.
3. "A arte deve pensar o mundo", sugere Bonito Oliva. Concordo, mas sempre parecemos oscilar entre dois estereótipos: o do crítico e o do jornalista.
O estereótipo do crítico prefere ser incompreensível, talvez por medo de simplificar e reduzir.
O estereótipo do jornalista, preocupado com o conforto de seus leitores, resume a obra ao óbvio. Exemplo. Jennifer Allora e Guillermo Calzadilla, artistas norte-americanos, propõem (no pavilhão dos EUA) um tanque de guerra de cabeça para baixo com, em cima, uma esteira sobre a qual correrão (na abertura, suponho) os membros do time de atlética dos EUA.
Já houve jornalistas para decretar que a obra denuncia a guerra e propõe o esporte como alternativa. Caramba! Só para começar: talvez a obra afirme que guerra e esporte são misérias (ou glórias) comparáveis, duas faces da mesma medalha. E que tal se a denúncia dissesse que o horror da guerra não é muito pior do que o domínio exercido sobre nós pela ditadura higienista do corpo em forma?
Bonito Oliva conclui dizendo que "a arte é o domingo da vida", porque representa a suspeita de uma outra beleza, a esperança de um desconcerto. Por isso mesmo, preferiria dizer que a arte é o sábado da vida -na espera de domingos, que sempre decepcionam um pouco.
Enfim, a modernidade (é o que mais gosto nela) é a época da dúvida como valor. Ter uma conduta moral, para nós, significa não parar de se perguntar o que é justo e o que é errado. Da mesma forma, apreciar nossa arte talvez signifique não parar de se perguntar: "Será que isto é arte?".
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