quinta-feira, 20 de março de 2008

O moralizador


Moralizador é quem impõe ferozmente aos outros os padrões que ele não consegue respeitar

ELIOT SPITZER era governador do Estado de Nova York até sua resignação na semana passada.

Sua fortuna política e sua popularidade eram ligadas à sua atuação prévia como procurador agressivo e inflexível contra os crimes financeiros e contra as redes de prostituição e seus clientes.

Ora, descobriu-se que ele era freguês de uma rede de prostituição de luxo e que também recorria a artimanhas financeiras para que seus pagamentos -substanciais: US$ 80 mil (R$ 140 mil)- não fossem identificados.

Esse fato de crônica (no fundo, trivial) foi para a primeira página dos jornais do mundo inteiro -aparentemente, pela surpresa que causou: quem podia imaginar tamanha hipocrisia? Esse "espanto" geral foi, para mim, a verdadeira notícia da semana.

Começou no dia em que Spitzer deu sua primeira declaração pública, reconhecendo os fatos e a culpa, ao lado de sua mulher, impávida.

No programa "360", da CNN, o âncora, Anderson Cooper, convocou dois comentaristas. Um deles, uma mulher, psicóloga ou psiquiatra, ofereceu imediatamente uma explicação correta e óbvia. Ela disse, mais ou menos: é muito freqüente que um moralizador raivoso castigue nos outros tendências e impulsos que são os seus e que ele não consegue dominar. Cooper (que já passeou pelos piores cenários de guerra e catástrofes naturais) quase levou um susto e cortou rapidamente, acrescentando que essas eram, "claramente", suposições, hipóteses etc. Não é curioso?

Em regra, prefiro as idéias que são propostas, justamente, como hipóteses ou sugestões que cada um pode testar no seu foro íntimo.

Mas, hoje, considerar a dita declaração da especialista como uma suposição parece ser uma hipocrisia pior (e mais perigosa) do que a de Spitzer.

Afinal, depois de um bom século de psicologia e psiquiatria dinâmicas, estamos certos disto: o moralizador e o homem moral são figuras diferentes, se não opostas. 1) O homem moral se impõe padrões de conduta e tenta respeitá-los; 2) O moralizador quer impor ferozmente aos outros os padrões que ele não consegue respeitar.

Na mesma primeira declaração, Spitzer confessou, contrito, que ele não conseguira observar seus próprios padrões morais. Tudo bem: qualquer homem moral poderia confessar o mesmo. Mas ele acrescentou imediatamente que, a bem da verdade, esses eram os padrões morais de quem quer que seja.

Aqui está o problema: o padrão moral que ele se impõe, mas não consegue respeitar, é considerado por ele como um padrão que deveria valer para todos. Com que finalidade? Simples: uma vez estabelecido seu padrão como universal, ele pode, como promotor ou governador, impô-lo aos outros, ou seja, ele pode compensar suas próprias falhas com o rigor de suas exigências para com os outros.

Quem coloca ruidosamente a caça aos marajás no centro de sua vida está lidando (mal) com sua própria vontade de colocar a mão no pote de marmelada. Quem esbraveja raivosamente contra "veados" e travestis está lidando (mal) com suas fantasias homossexuais. Quem quer apedrejar adúlteros e adúlteras está lidando (mal) com seu desejo de pular a cerca ou (pior) com seu sadismo em relação a seu parceiro ou sua parceira.

O exemplo da adúltera, aliás, serve para lembrar que a psicologia dinâmica, no caso, confirma um legado da mensagem cristã: o apedrejador sempre quer apedrejar sua própria tentação ou sua culpa.

A distinção entre homem moral e moralizador tem alguns corolários relevantes. Primeiro, o moralizador é um homem moral falido: se soubesse respeitar o padrão moral que ele se impõe, ele não precisaria punir suas imperfeições nos outros. Segundo, é possível e compreensível que um homem moral tenha um espírito missionário: ele pode agir para levar os outros a adotar um padrão parecido com o seu. Mas a imposição forçada de um padrão moral não é nunca o ato de um homem moral, é sempre o ato de um moralizador.

Em geral, as sociedades em que as normas morais ganham força de lei (os Estados confessionais, por exemplo) não são regradas por uma moral comum, nem pelas aspirações de poucos e escolhidos homens exemplares, mas por moralizadores que tentam remir suas próprias falhas morais pela brutalidade do controle que eles exercem sobre os outros. A pior barbárie é isto: um mundo em que todos pagam pelos pecados de hipócritas que não se agüentam.

domingo, 16 de março de 2008

Os filmes de Rambo retratam as variações do espírito americano nos últimos 25 anos

Rambo


"RAMBO 4" está em cartaz no Brasil desde a sexta-feira passada.
Assisti ao filme mais de um mês atrás, no dia de sua estréia nos Estados Unidos. Foi numa sala do cinema AMC, na rua 42, em Nova York, e o espetáculo era mais na platéia do que na tela: já durante as propagandas e os trailers, surgiam gritos que queriam apressar a chegada do guerreiro: "Rambooo!!".

É fácil entender por que John Rambo é um herói popular: ele é um concentrado dos devaneios do indivíduo ocidental. É o pistoleiro de "Gatilho Relâmpago": ninguém imagina quem ele é e do que ele é capaz (parecemos inócuos pais de família, mas somos tigres adormecidos, viu? Não cutuque). É Shane, o andarilho misterioso de "Os Brutos Também Amam" (e de seu remake "O Cavaleiro Solitário"), que chega, faz justiça e vai embora ferido, levando consigo o coração de mulheres e crianças. É o delegado de "Matar ou Morrer", que, sozinho ou quase, enfrenta a todos. E é também, desde o primeiro filme da série, um homem à procura de um pai. Que mais poderíamos querer da vida?

Claro, Rambo é execrado por quem gostaria que nosso repertório de sonhos fosse diferente. Além disso, os filmes de Rambo são, no mínimo, desiguais. Mas não quero falar nem da qualidade cinematográfica dos filmes nem da relação de Rambo com o protótipo do herói promovido pelo western hollywoodiano.

Há um outro aspecto da série que me interessa mais: os filmes de Rambo traçam um retrato das variações de um estado de espírito dos norte-americanos nos últimos 25 anos.

O primeiro, "First Blood" (primeiro sangue, mas, no Brasil, o título foi "Rambo"), de 1982 (inspirado num romance de 1972), expressava perfeitamente o conflito de uma nação que passava da oposição contra a guerra no Vietnã, nos anos 70, à sensação culpada de ter traído seus próprios soldados.

O segundo, de 1985, era a conseqüência imediata do primeiro: o resgate dos hipotéticos prisioneiros da mesma guerra lavava, enfim, a honra nacional. Poucos anos mais tarde, o sucesso do musical "Miss Saigon" confirmava essa peripécia espiritual: a vergonha de uma guerra impopular era substituída pela vergonha de ter abandonado amigos, aliados, presos e (essa era a novidade do musical) as crianças nascidas dos amores de guerra.

No terceiro, de 1988, Rambo já desistira de guerrear. Ele só ia à luta, no Afeganistão ocupado pelos soviéticos, para salvar o coronel Trautman, seu mentor. Mesmo na Guerra Fria "tradicional", em suma, só vale a pena lutarmos se for para defender os "nossos", ou seja, os mais próximos.

Hoje, o quarto (e último, imagino) filme de Rambo é uma espécie de conclusão lógica: intervir, meter-se na casa dos outros é impossível. Os missionários, com Bíblias e remédios, não mudam nada no horror que eles visitam. No melhor dos casos, eles satisfazem sua própria consciência culpada; no pior, eles acabam mortos. A força tampouco muda nada, ela deixa mais um rastro de sangue, e as coisas continuam iguais. Só resta voltar para casa.

No meio da atual aventura iraquiana, que não tem saída em vista e produziu, como efeito, a substituição de um horror por outro, a derradeira aventura de Rambo completa uma longa argumentação pelo isolacionismo -que é uma antiga tentação americana, crescente desde a Guerra do Vietnã.

É possível que uma vitória dos democratas nas eleições presidenciais de novembro leve os EUA a adotar a escolha final de Rambo. Seria um alívio? Pode ser. Mas talvez seja mais sábio ficar com um "veremos".

Afinal, não sabemos como seria o mundo sem o intervencionismo americano.

Na semana passada, também estreou "Jogos de Poder", de Mike Nichols. O filme narra a história verídica (e, aliás, francamente engraçada) de como se decidiu e se tornou possível a ajuda dos EUA à resistência mujahidin contra a ocupação soviética, nos anos 80. Considerando que adotamos facilmente um estilo paranóico na interpretação das decisões políticas (ou seja, imaginamos conclaves sofisticados e maquiavélicos), o filme é, ao mesmo tempo, salutar e inquietante. Saí da sala com esta impressão: no caso, aparecem duas diferenças básicas entre uma improvisação dos Parlapatões e a suposta "decisão estratégica" do governo dos EUA: 1) O espaço dos Parlapatões é na praça Roosevelt, e o governo dos EUA está em Washington; 2) Os Parlapatões têm muito menos dinheiro do que os EUA.

quinta-feira, 13 de março de 2008

É proibido viajar


A modernidade, que começou com a livre circulação, acaba proibindo a viagem

NO EPISÓDIO dos jovens pesquisadores brasileiros barrados em Madri, as autoridades espanholas agiram como se o cônsul-geral do Brasil contasse lorotas para facilitar o trânsito de imigrantes ilegais. O desrespeito justifica a "retaliação" brasileira.

No mais, a cada dia, as fronteiras do mundo (não só do primeiro) barram alguém que tenta viajar, sobretudo se for jovem, solteiro e sem as aparências de uma "vida feita".

Ao atravessar uma fronteira, o passaporte prova que estamos em paz com a Justiça de nosso país. As outras nações devem decidir se somos hóspedes desejáveis. Nas últimas décadas, as "condições" para ser desejável se multiplicaram. Hoje, no caso da Espanha: 1) 70 por dia de permanência planejada; 2) passagem de volta marcada; 3) reserva de hotel, já pago; 4) para quem se hospedar com parentes, formulário preenchido pelos mesmos; 5) quem se desloca para trabalhar deve dispor de um contrato assinado. Normas muito parecidas valem na maioria dos países.

O escândalo é que essas condições podem nos parecer "aceitáveis". Afinal, qualquer Estado quer proteger o emprego de seus cidadãos impedindo a chegada de imigrantes não-autorizados, não é? Pois é, Michel Foucault é mesmo o pensador para os nossos tempos: o sistema social e produtivo dominante ordena nossas vidas furtivamente, convencendo-nos de que não há opressão, mas apenas necessidades "racionais". Se achamos essas regras "aceitáveis", é porque já adotamos a idéia de que, no nosso mundo, só é legítimo ter moradia fixa e profissão estável.

As pessoas com moradia fixa podem, quando elas dispõem dos meios necessários, adquirir uma passagem de ida e volta e sair de seu lar seguindo um programa pré-estabelecido -ou seja, podem ser, ocasionalmente, turistas.

Escárnio: prefere-se que os turistas sejam otários, pagando de antemão. Há uma pousada melhor da que estava prevista? Você quer encurtar a viagem? Pena, você já pagou. Mas isso é o de menos. Importa o seguinte. A modernidade, que começou com a circulação (livre ou forçada) de todos os agentes econômicos, acaba parindo, nem mais nem menos, a proibição da viagem. Como assim? Pois é, viajar não tem nada a ver com férias num resort ou com ser transportado de cidade em cidade para que os cicerones nos mostrem as coisas "memoráveis".

Para começar, viajar é usar uma passagem só de ida.
- Quanto tempo você vai ficar?
- Não faço a menor idéia. Um dia? Três meses? Um ano?
- E você vai para onde?
- Não sei. Talvez eu curta uma pequena enseada, alugue um quarto numa casa de pescadores e fique comendo caranguejos com os pés na areia. Talvez, já no avião ou pelas ruas de Barcelona, eu me apaixone por uma holandesa, um russo ou uma argelina e os siga até o país deles, por uma semana ou um mês.

Se a paixão durar, ficarei por lá.
- E o dinheiro?
- Não sei, meu amigo. Toco violão, posso ganhar um trocado numa esquina ou no metrô. Também posso lavar pratos, ajudar na colheita, cortar lenha, lavar carros e vender pulôveres. E, se a coisa apertar, tenho endereços de parentes e conhecidos que nem sabem que estou viajando, mas não me recusarão uma sopa e um banho quente. Além disso, em Paris, quando fecha o mercado da rua Saint Antoine, sobram na calçada as frutas e as saladas que não foram vendidas; em São Paulo, Londres e Nova York, conheço dezenas de igrejas que oferecem um pão com manteiga; em Varanasi, ao meio dia, distribuem riso com curry e carne aos peregrinos.

Cem anos depois da invenção do passaporte com fotografia, chegamos nisto: uma ordem que só permite se movimentar para consumir férias ou para se relocar segundo os imperativos da produção.

As regras que barram o viajante expressam nossa própria miséria coletiva: perdemos de vez o sentimento de que a vida é uma aventura. Preferimos a vida feita à vida para fazer.
Para quem quiser ler sobre a história da documentação de viagem, uma sugestão: "Invention of the Passport: Surveillance, Citizenship and the State" (invenção do passaporte: vigilância, cidadania e o Estado), de Torpey, Chanuk e Arup (Cambridge University Press).
Para quem quiser viajar, outra sugestão: a mentira, num mundo opressivo, é uma forma aceitável de resistência.

sábado, 8 de março de 2008

Batalha de mitos: casamento ou liberdade?



Em 1973, em plena efervescência do feminismo americano, Marabel Morgan publicou um livro de conselhos às mulheres que quisessem construir relacionamentos satisfatórios ou reanimar casamentos moribundos. Chamava-se "The Total Woman" (A Mulher Total) e foi um best sel-ler. A autora propunha que as mulheres se submetessem à liderança de seus maridos e fossem sempre sexy e atenciosas. Ficou famosa a sugestão de esperar a chegada do homem, às seis da tarde, de "baby-doll" e salto alto (variando cores e modelos, pois a surpresa é a mãe do desejo).

Na época, li o livro com raiva. Seu sucesso provava que a América profunda continuava longe do espírito dos anos 60. As propostas de Morgan só podiam seduzir um público que, para nossa geração rebelde, era o protótipo da alienação. Os verdadeiros casais felizes, pensávamos, serão os que inventaremos, feitos de indivíduos que se manterão autônomos em qualquer relacionamento.

Não deu muito certo: os anos 60 não inventaram o casal feliz. Talvez as reivindicações de autonomia e de liberdade não sejam os melhores ingredientes para um bolo de casamento.
Eis que as idéias de Morgan encontram uma segunda vida no recente livro de Laura Doyle: "The Surrendered Woman" (A Mulher Rendida -ou submissa, vencida, entregue). Doyle acaba de causar sensação na imprensa americana (e brasileira: deu uma entrevista para a "Veja" no fim de janeiro), propondo 27 conselhos às mulheres para que vivam casamentos valiosos.
Como no caso de Morgan, é fácil reduzir o livro de Doyle a uma série de sugestões pitorescas que parecem feitas para suscitar piadas. Há, por exemplo, a proposta de nunca criticar o marido que está dirigindo. Imagine que ele pegue a auto-estrada na direção errada. Você, mulher, não diga nada, deixe que ele se afaste de sua destinação durante quilômetros, mas não critique, não se faça de sabida e não profira nenhum comentário sardônico.

Exagero? É possível, mas Doyle sabe muito bem qual é o pior momento de um casal: quando os cônjuges colocam o prazer de zombar, de criticar e de controlar o outro acima do que poderiam esperar do convívio harmonioso.

Marabel Morgan também sabia disso e escrevia: "O que causa a maioria dos problemas em seu casamento? Acho que o culpado é geralmente o conflito entre dois egos separados... cada um gritando "eu, eu, eu".".

Moral da história: para inventar um relacionamento agradável e produtivo, o projeto de conviver deve ser mais importante do que as exigências individuais. No fundo, o que Doyle pede não é tanto que a mulher se submeta ao marido, mas que ela se submeta ao bem da relação. Sem isso o casamento não passa de uma arena onde dois indivíduos gostam de se pegar.

A maioria das pessoas que se queixam de sua vida de casal não está disposta a sacrificar quase nada para que a relação funcione. Queixam-se, mas não querem negociar suas exigências solitárias. Decida: é mais importante para você ter razão numa briga ou conviver amorosamente com o outro? É mais importante prevalecer ou desistir para que o companheirismo seja mantido?

O casamento perfeito é um grande ideal da modernidade: um sonho de felicidade amorosa, sexual e reprodutiva. Mas frequentemente esse ideal é abstrato: todos dizem que querem realizá-lo, mas poucos estão dispostos a colocar as mãos na massa.

Somos este paradoxo: sonhamos com casamentos perfeitos, mas curtimos sobretudo nossas neuroses celibatárias.

As leitoras de Doyle podem objetar: tudo bem, é necessário dedicar-se ao bem do casal, mas por que essa tarefa seria só das mulheres? Cadê os sacrifícios pedidos aos homens? Doyle responde que obviamente ambos os parceiros devem entregar as armas. Se ela se endereça às mulheres, é porque conhece bem os jeitos de elas sabotarem um casal. Os homens que encontrem seus caminhos próprios. De qualquer forma, a pergunta "por que logo eu deveria mudar antes do outro?" é sempre uma reação celibatária que seria melhor esquecer. Quem se preocupa com isso não está se preocupando com o casamento, apenas não quer perder uma competição com o parceiro. O que importa mais, enfim: o relacionamento ou a vontade de ganhar um jogo no qual quem se corrigisse primeiro perderia por humilhação?

O ideal do casamento perfeito é um mito moderno -e uma maldição, por ser um imperativo impossível de ser realizado. Ao ler Doyle, surge a suspeita de que talvez esse ideal seja perfeitamente realizável, mas com a condição de querer, ou seja, de sacrificar uma porção de nossas ambições de autonomia. O problema é que idealizamos a autonomia ainda mais loucamente do que o casamento perfeito. Em suma, sofremos de uma batalha entre mitos.

Errata: muitos leitores notaram que, na coluna da semana passada, chamei Edward Osborne Wilson, o autor de "Sociobiology", de Edmund Wilson. Nenhuma injúria: Edmund Wilson é um grande crítico literário. E confesso que admiro mais a obra de Edmund do que a de Edward. Peço vênia.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Será que era só isso?

Nos últimos anos, subiu o índice de suicídio na população entre 40 e 64 anos. Por quê?

O "NEW YORK Times" de 19 de fevereiro publicou os resultados de uma pesquisa dos Centers for Disease Control and Prevention dos EUA (centros para controle e prevenção das doenças).
A pesquisa mostra que, de 1999 a 2004, na população entre 45 e 54 anos de idade, o índice de suicídios aumentou, em média, 20% (31% entre as mulheres).

No mesmo período, os suicídios de adolescentes aumentaram 2% e os de pessoas idosas diminuíram.

Em 2004, nos EUA, 32 mil mortes foram oficialmente atribuídas a suicídio. Ampliando a faixa da meia-idade, constata-se que, dessas mortes, mais de 14 mil são de pessoas entre 40 e 64 anos. Segundo o "New York Times", o fenômeno não seria apenas americano: um estudo recente aponta que, em 80 países, as pessoas de meia-idade são as menos "felizes". As explicações são hipotéticas.

Por exemplo, no que concerne às mulheres, desde 2002, diminuiu fortemente o uso da reposição hormonal na menopausa. Talvez o déficit de estrógeno tenha efeitos depressivos diretos ou indiretos.

Também observa-se que pessoas de meia-idade são grandes consumidoras de antidepressivos. Talvez um uso vacilante dessa medicação (com interrupções brutais sem acompanhamento psiquiátrico) seja responsável por momentos de aflição irresistível. Mas é mais provável que, no caso, o consumo de antidepressivos seja apenas prova suplementar de que as pessoas dessa idade são especialmente "vulneráveis".

Em suma, resta a pergunta: o que acontece, entre os 40 e os 64, que levaria ao suicídio mais indivíduos do que em outras faixas etárias?

Sabemos que as adversidades desesperam os adolescentes porque eles têm dificuldade em enxergar um futuro possivelmente diferente.

E imaginamos com facilidade que as enfermidades e o sentimento do fim que se aproxima possam levar alguns idosos a precipitar o desfecho. Mas adultos na plena força da vida?

É claro, a meia-idade é a época em que os executivos que perdem seu emprego ficam no limbo -demasiado qualificados e já "velhos" para retomar sua carreira. Mas, nos exemplos trazidos pelo "New York Times", os suicidas de meia-idade não parecem ser vítimas de crises profissionais.
Algumas observações:

1) Nas últimas décadas, mesmo nas fileiras de quem acredita em Deus ou na revolução futura, vem se impondo a vontade (ou a necessidade) de justificar a vida "por ela mesma". As aspas servem aqui para lembrar que ninguém sabe o que isso significa. Alguns pensam nos prazeres que eles se permitem, outros na satisfação de serem úteis ao próximo, outros ainda avaliam a qualidade estética de sua história ou valorizam a variedade e a intensidade de suas experiências. Seja como for, a vida deveria valer a pena pelo que a gente faz, pela própria experiência de viver.

2) Acrescente-se que, a partir dos anos 60, os adultos de nossa cultura começaram a se preocupar com a adolescência -ou seja, entre outras coisas, passaram a querer furiosamente que suas crianças se preparassem para elas serem "felizes" um dia (em todos os sentidos: sucesso amoroso e financeiro, êxtase, bom humor permanente).

3) Chegam hoje à meia-idade as gerações que cresceram esperando uma "felicidade" que daria sentido à longa "preparação" de sua adolescência e convencidas de que a vida deve se justificar por ela mesma. Os que fracassaram têm sorte: eles podem se dizer que a coisa não deu certo. Os que se acham bem-sucedidos esbarram, inevitavelmente, numa questão inquietante: "Então, é isso? Era só isso?".

Estreou na sexta passada "Antes de Partir", de Rob Reiner, com Jack Nicholson e Morgan Freeman. É a história de dois homens que aprendem que eles têm seis meses de vida, escrevem uma lista das coisas que gostariam de fazer antes de morrer e saem pelo mundo afora. Alguns críticos adoraram, outros acharam que os atores não salvam um roteiro em que as últimas vontades dos protagonistas parecem oscilar entre a obviedade (beijar a moça mais linda, pular de pára-quedas, fazer um safári) e a pieguice (reencontrar os que a gente ama de verdade, causar alegria na vida dos outros etc.).

Para mim, é a própria trivialidade da lista dos dois amigos que faz o charme do filme. Na hora de bater as botas, diante da pergunta "Que mais poderia ter sido minha vida?", é tocante constatar que, no fundo, gostaríamos que tivesse sido mais do mesmo.


quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

"Me Larga!" (e me abraça!)


As separações são decididas por dinâmica que pouco tem a ver com os defeitos do outro

ÀS VEZES , milagrosamente, um psicanalista consegue transmitir os resultados de sua experiência clínica do jeito certo: sem simplificar, mas sendo mais cuidadoso com o leitor leigo do que preocupado em impressionar a turma dos colegas.

É o caso do livro de Marcel Rufo, "Me Larga! Separar-se para Crescer", recentemente traduzido em português pela Martins Fontes.

Rufo, 62, francês, terapeuta de crianças e adolescentes, segue passo a passo as peregrinações pelas quais o indivíduo conquista sua autonomia, ou seja, o difícil caminho que leva da fusão inicial com a mãe à independência rebelde do adolescente.

Ao longo do percurso, ele apresenta inúmeras vinhetas clínicas: crianças agressivas, infelizes na escola, com enuresia, pré-adolescentes adotados ou que se imaginam sê-lo, outros que fogem sem parar, jovens que se drogam ou querem acabar com sua vida, assim como pais que largam os filhos cedo demais e outros que não os largam nunca.
Mas "Me Larga!" não é apenas um livro para pais e filhos sobre as dores do crescimento. A leitura é, para qualquer um, uma ocasião imperdível para refletir um pouco sobre o conflito (que nunca pára de nos assolar) entre nossos sonhos de sossego e nossos anseios de independência -conflito especialmente complicado, aliás, porque ele se repete dentro de cada um dos campos que nele se enfrentam: o amparo da dependência é também o porto seguro que (mesmo remoto e fantasiado) nos dá a força de continuar navegando para o largo, e não há liberdade sem a nostalgia de um lar que nos prenderia.

Como escreve Rufo: "Prender-se, desprender-se, voltar, sair novamente, encontrar, abandonar... Toda a nossa vida segue esse movimento permanente". E relacionar-se significa encontrar um mágico equilíbrio nesse movimento: "Cada qual precisa do outro para se construir e se conquistar, para se tranqüilizar às vezes, e para compartilhar momentos, idéias e desejos. O outro é precioso na medida em que representa uma abertura para o mundo".

Ou seja: a solução do conflito entre dependência e autonomia nunca é definitiva e é um paradoxo. Como é possível encontrar amarras que nos libertem?

Em suma, o conflito entre nossa necessidade de amparo e apego e, do outro lado, nossa sede de separação e independência é central na constituição de nossa subjetividade e continua crucial durante a vida toda. Sugiro um exemplo.

Em geral, atribuímos tanto os apaixonamentos quantos as separações de nossa vida amorosa ao outro, que se revela, segundo os casos, sublime, incompetente ou sacana. Ou então, às circunstâncias, facilitadoras ou infelizes. Mas talvez os percalços de nossa vida amorosa sejam decididos por uma luta que se trava dentro de nós e que pouco tem a ver com as qualidades e os defeitos do outro ou com as adversidades do mundo.

Talvez a gente se apaixone e se separe sobretudo conforme o ritmo do antigo e inesgotável conflito interno entre nossas aspirações de navegador solitário (a imagem é de Rufo) e nossa nostalgia de uma fusão na qual, enfim, poderíamos descansar de vez. Prova disso?

Primeiro, obviamente, pense nas separações, por assim dizer, "abstratas": aquelas que acontecem em razão de um surto irresistível de independência num dos dois ou em ambos e, inversamente, naquelas que são maneiras de manter o conforto de outro apego: "Gosto de você, mas me largue, porque você me leva para liberdade demais; prefiro ficar aqui no quentinho".

Logo, lendo o livro de Rufo, é fácil reencontrar as modalidades da ruptura amorosa na lista dos percalços das separações pelas quais a criança conquista sua autonomia: separar-se para não ser abandonado, separar-se para crescer e medir o alcance de nossa liberdade, separar-se para testar o outro, para verificar que ele não nos deixará por isso, e por aí vai.

É como se os altos e baixos de nossa vida amorosa fossem, antes de mais nada, a expressão de um conflito entre liberdade e apego que está em nosso âmago e nunca se resolve.

À primeira vista, muitos acharão essa idéia incongruente com sua experiência. Mas, antes de descartá-la, façam o seguinte. Depois de uma separação, quando os "erros" e as "falhas" do outro se afastaram um pouco na memória e começam a parecer irrelevantes, pergunte-se, por exemplo: "Mas, afinal, por que nós nos separamos?" Na maioria dos casos, a gente não sabe responder.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Bigode de madame salva africano morrendo de sono

Na sexta-feira passada, o "The New York Times" publicou uma notícia tragicômica. A reportagem explicava como os bigodes das mulheres de classe média salvarão 300 mil negros africanos por ano. Explico.

A doença do sono é produzida por um parasita introduzido no sangue pela picada da mosca tsé-tsé: quando o bicho chega ao cérebro, o sujeito entra em coma. A doença voltou a ser endêmica na África Central, onde a mosca prospera entre guerras, fome, Aids etc. Segundo os Médicos Sem-Fronteiras, há 300 mil contaminados por ano.

Por sorte, no fim dos anos 70, foi descoberta a eflornitina, que cura até os pacientes já comatosos. Mas os negros africanos, com sua baixa expectativa de vida, suas doenças sexualmente transmissíveis e suas carteiras vazias, não são os clientes ideais da indústria farmacêutica. Acabou a esperança de que a eflornitina funcionasse também contra algum tipo de câncer -o que tornaria sua preparação rentável. A produtora decidiu parar a fabricação.

E os africanos? Pois é, problema deles. Não vale a pena produzir para um mercado pequeno e pobre. Nessa altura, um milagre: Gillette e Bristol-Myers Squibb lançam um novo produto para a remoção dos pêlos faciais: o creme Vaniqa, a base de eflornitina. A produção continuará.
Um encarte da "Cosmopolitan" de janeiro anuncia que, se algum bigode tiver que se intrometer entre duas bocas (de sexo diferente) que se beijam, melhor que seja o do homem. Graças aos milhões de mulheres que pagarão R$ 100 por um tubo de creme que dura um mês, 300 mil africanos a cada ano voltarão para a vida.

Não é uma prova da sabedoria da economia globalizada? Deve ser. Mas é penoso pensar que, se os bigodes femininos não fossem sensíveis à eflornitina, os africanos já estariam adormecendo para sempre.

Fiquei indignado, querendo a nacionalização das indústrias farmacêuticas: como podemos deixar que a saúde pública seja subordinada a lucros particulares?

Mas, se um gesto de vareta mágica abolisse a globalização e voltássemos para um mundo de indústrias nacionais, os africanos não teriam a menor chance -pois seus países não dispõem dos recursos necessários para descobrir ou produzir remédio nenhum. Mais desconcertante ainda: para os sujeitos da cultura ocidental moderna (ou seja, para nós), o maior incentivo é o interesse particular. O triunfo dos interesses privados sobre a solidariedade social é um corolário de nossa cultura que nunca conseguimos mudar por decreto. Por exemplo, se você estivesse doente à espera de que inventassem uma cura salvadora, gostaria que a pesquisa estivesse só nas mãos de agências públicas? Certo que não. Sonhamos com a solidariedade, mas, para obtermos resultados, contamos com a motivação do apetite de ganho.

Acalma-se um pouco a indignação. Não nacionalizaremos a indústria farmacêutica. Esperando uma mudança de cultura, fazer o quê? Console-se: o cinismo deste mundo organizado pelo jogo dos interesses particulares tem uma falha pela qual se insinuam sentimentos solidários. Veja só: não é um acidente que logo um creme contra os bigodes das madames salve 300 mil africanos. Entre os remédios mais vendidos e rentáveis há o Viagra, o Propécia, contra a careca, a coorte dos antidepressivos etc. Os fármacos que cuidam de nossa performance social são os mesmos que sustentam a indústria farmacêutica. Estamos sempre dispostos a gastar para o sorriso, a cabeleira, a ereção poderosa e agora o lábio glabro. Não é por vaidade. Cultuamos as aparências porque são cruciais: elas decidem nossa posição no mundo, nosso sucesso ou fracasso: triste e peluda para baixo, sociável e depilada para cima.

Mas esse culto das aparências nos torna vulneráveis: nosso cinismo não resiste à aparência da dor. É suficiente lembrar o espectro das vítimas da tsé-tsé para que produzir eflornitina se torne uma exigência moral. As madames exibirão seus lábios glabros em campanhas para angariar fundos contra a mosca e seu parasita.

Somos constituídos pelas aparências, por isso as aparências nos afetam. Nosso cinismo redime-se por ser hipersensível às primeiras páginas. É por isso que a ajuda às vítimas é a grande especialidade ética de nossa cultura. Não sabemos decidir o que é justo e o que é errado. Perseguimos sempre nossos interesses particulares, mas reagimos à visão de feridas abertas. Dito de maneira mais incômoda e mais próxima: só queremos arrasar, mas somos voluntários para ajudar as crianças de rua e abrigar os mendigos. Nosso senso moral é como nossas vidas: cosmético. Bom, melhor do que nada.

PS: O novo presidente americano, apresentando-se como um "conservador compassivo", talvez tenha definido um traço dominante da personalidade ocidental moderna. Talvez tenha achado também uma maneira aceitável de confessar que somos, geralmente, cínicos e mídia-sensíveis.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Eleições americanas

No fundo, as eleições nos Estados Unidos são o melhor seriado do momento

Volto das férias com um caderno de notas sobre as eleições presidenciais norte-americanas. Escolho algumas.

1) Provavelmente, em novembro, o republicano John McCain enfrentará um dos democratas -Hillary Clinton ou Barack Obama. Segundo as pesquisas atuais, McCain/Clinton seria quase um empate, e Obama ganharia de McCain.

Torço pelos democratas, mas modero meu otimismo. O racismo, o machismo e o medo do que é diferente e novo são forças que trabalham na sombra.

Muitos eleitores declaram que votarão em uma mulher ou em um negro sem problema. Mas outra coisa é o que acontece no segredo da cabine eleitoral. O discurso conservador sabe instilar temor na massa da pequena classe média branca: "Mas você quer mesmo eleger uma mulher ou um negro como presidente?

Vamos deixar para outra vez?"

Funciona assim: você não tem quase nada a perder, não tem privilégio algum que valha a pena ser defendido, nada que justifique manter as coisas como estão. Mas, justamente, ao votar contra a mudança, você afirma que seu status merece ser protegido, ou seja, você se convence de que conquistou algo na vida que você não pode se arriscar a perder. O que é isso? Nada, apenas essa falsa convicção.

2) Hillary Clinton não é a candidata das mulheres. E Barack Obama não é o candidato dos negros (como foi Jesse Jackson em 1984 e 1988).

Quarenta anos após o movimento pelos direitos civis, uma mulher e um negro são candidatos à presidência sem que cor ou gênero sejam estandartes -ou seja, como cidadãos numa sociedade em que cor e gênero seriam "acidentes" que não implicam uma agenda específica.
Se isso é verdade, os anos 60 foram a verdadeira revolução bem-sucedida do século passado.

3) Obama, 46, é o único candidato que pertence a uma geração cuja visão do mundo não é o fruto direto nem da Guerra Fria, nem da Guerra do Vietnã, nem da contracultura. É lógico que ele tenha a simpatia da maioria dos jovens. Talvez seja por isso também que sua popularidade atravesse as fronteiras partidárias: Obama não enxerga o mundo como uma luta entre "eles" e "nós".

4) A viabilidade da candidatura de Obama prova a boa saúde do "experimento americano" (que é, entre outras coisas, o projeto de uma sociedade de imigração em que os cidadãos valem pelo que fazem, e não pelo que devem a seus antepassados). Obama é filho de um imigrante africano muçulmano e foi criado inicialmente na religião islâmica; seu segundo nome é Hussein. Alguns, pelos bares e pelas ondas de rádio do país, acham isso um disparate. Mas, para a metade dos americanos, no meio de uma guerra que é, no mínimo, apresentada como cultural, isso não constitui um empecilho. Você imagina, sei lá, os franceses elegendo como presidente, em 1939, um sujeito chamado Adolf, filho de imigrante alemão?

5) Não adianta zapear: as eleições norte-americanas são como a Copa do Mundo. Salvo que mesmo um jogo das eliminatórias, como o "caucus" de um Estado só, ganha a primeira página.
É óbvio que, pelo peso geopolítico dos EUA, as eleições norte-americanas acarretam conseqüências mundiais. Mas não é só isso que desperta o interesse da torcida internacional.
Faz um século que a realidade americana parece ser matéria privilegiada de romance ou de filme (aqui está, aliás, o fundamento da dita hegemonia hollywoodiana).

A razão é cultural e simples: o mito fundador do "experimento americano" é também a idéia do indivíduo que, ao tentar "fazer a América", é o único artífice de seu destino -bom ou ruim. E esse mito é uma matriz narrativa básica e inesgotável de nossa cultura.

Há os que podem contar suas vidas e os que não conseguem. Mas, de uma certa forma, o americano ideal, homem político ou mendigo perdido nas vinhas da ira, sempre vive sua vida e a conta para si mesmo como romance ou roteiro de aventuras.

As memórias de guerra de McCain serviram de roteiro para um telefilme, de 2005, que concorreu ao Emmy. Obama ganhou o Grammy de melhor álbum falado por seu livro de memórias, em 2005, e acaba de ganhar outro por seu segundo livro (neste ano, ele competia com os ex-presidentes Bill Clinton e Jimmy Carter). Hillary, verdadeira heroína do caso Lewinski, é autora de uma autobiografia de sucesso.

No fundo, as eleições americanas são o melhor seriado do momento.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Reparação


A brutalidade de nosso desejo sempre nos deixa a tarefa de reparar o objeto desejado


ESTREOU NA sexta passada "Desejo e Reparação", de Joe Wright -uma adaptação, essencialmente fiel, da obra-prima de Ian McEwan, "Reparação" (ed. Companhia das Letras).


O filme recebeu o Globo de Ouro para melhor drama e será certamente um sucesso de público. O livro de Ian McEwan é já um clássico e um best-seller. Por quê?

Certo, Joe Wright fez um filme maravilhoso, e McEwan é um dos melhores escritores do momento. Mas não é só isso.

Acontece que, na tela ou nas páginas, a história contada revela e ilustra um canto ao mesmo tempo escuro e familiar da subjetividade de todos nós, ou melhor, como se diz em psicologia, um mecanismo psíquico que governa nossa vida muito além do que a gente pensa.

Resumindo: uma menina, dotada de uma certa predisposição artística e inspirada por uma paixão amorosa e pelo ciúme inconfessável que essa paixão produz, faz uma sacanagem que estraga radicalmente a vida da irmã assim como a do jovem que ama essa irmã e é amado por ela.

A menina, ao crescer, tenta expiar sua culpa e descobre que ela poderá remir-se escrevendo não tanto a verdade do que aconteceu, mas uma história, um romance. É de uma vida dedicada à literatura que ela esperará a redenção: um romance reparará, enfim, o ato funesto que ela cometeu.

Os distribuidores brasileiros do filme mudaram o título de McEwan.

Acrescentando "desejo" a "reparação", eles fizeram uma escolha aceitável. Evitaram, em particular, a tentação de optar por algo como "Culpa e Reparação", termos ligados por uma implicação óbvia: a gente faz uma besteira, sente-se culpado e tenta acalmar a culpa reparando os danos -às vezes, trata-se de uma decisão consciente, outras vezes, nossa vida inteira se organiza ao redor de um projeto reparador sem que a gente saiba direito por quê (afinal, somos sempre culpados de alguma coisa, não é?).

Claro, a culpa pode exigir reparação, mas talvez a vontade de reparar os tortos não seja apenas a conseqüência das culpas que nos tocam por causa de nossos malfeitos. Talvez essa vontade seja algo mais radical, mais originário.

Foi uma grande psicanalista, Melanie Klein, que introduziu a "reparação" entre os conceitos da psicanálise. A idéia básica é a seguinte: um belo dia, o bebê se dá conta de que os objetos de seu amor são pessoas inteiras (por exemplo, ele descobre que não gosta apenas do seio que o alimenta, das mãos que cuidam dele etc., mas da mãe como um todo). Logo, nosso bebê começa a sentir a necessidade de "reparar" os "danos" que sua visão anterior do mundo teria causado -em suma, de reconstituir o corpo materno que ele havia consumido aos pedaços.

Isso pode parecer bastante exótico aos olhos do leigo. Mas, para entender, basta considerar que nunca paramos de oscilar entre a vontade de despedaçar o outro e a vontade de reparar os estragos. Como assim?

É simples e está no título do filme ("Desejo e Reparação"). No desejo sexual, em geral dilaceramos o outro desejado. Por exemplo, o desejo, sempre um pouco fetichista, prefere os pedaços: o decote, a voz, um olhar, a perna cortada pela cinta-liga, a queda dos rins, a forma dos lábios e por aí vai. Quando amamos a quem desejamos, o amor nos ajuda a reparar os efeitos do estilo carniceiro do nosso desejo: idealizamos o amado e a amada para que a beleza que neles enxergamos os preserve de nossa própria crueldade.

Falando em beleza, justamente, Melanie Klein e seus primeiros alunos já pensavam que talvez a vontade ou a necessidade de reparar o mundo (despedaçado por nosso próprio desejo) fosse a força que anima nossas ambições estéticas.

A incrível persistência humana na tentativa de criar algo bonito lhes parecia ser o jeito que inventamos para compensar a violência de nossa cobiça (não só sexual, aliás). Ou seja, os danos produzidos pela brutalidade de nosso querer nos dariam vontade de arrumar o mundo, de embelezá-lo, de fazê-lo ficar "bom de novo", como dizia Klein.

Em suma, talvez nossa capacidade de criar algo misteriosa e extraordinariamente "bonito" (como o livro de McEwan e o filme de Wright) seja a maneira que encontramos para proteger aos outros, a nós mesmos e ao mundo contra a "loucura" de nossos desejos.

Nota: é bem possível que nossa paixão ecológica de hoje tenha uma origem parecida. Afinal, ela tenta preservar e restaurar o que não sabemos deixar de destruir.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Liberdade para o quê?


Liberdade não consiste em escolher nas prateleiras do supermercado

QUANDO JANTO fora, prefiro os restaurantes onde sou um cliente conhecido, porque, em princípio, eles aceitam com um sorriso meu comportamento, que é um pouco atípico: não gosto de ler o cardápio, peço o prato do qual estou a fim naquela noite, que ele esteja ou não no menu. Caso a cozinha não disponha dos ingredientes necessários, o maître e eu imaginamos um compromisso próximo de meus desejos.

Nota: às vezes os que lêem o cardápio do começo ao fim, à força de hesitar entre massas, risoto, carne ou peixe, acabam se entupindo de pão e couvert -e assim perdem o apetite.
Pensei nisso ao reler "O Paradoxo da Escolha, Por que Mais é Menos", de Barry Schwartz, recentemente traduzido em português (ed. Girafa). Schwartz constata, com razão, que a multiplicação das possibilidades de escolha (que é própria da sociedade de consumo) constitui, de fato, um fardo.

Exemplo: queremos comprar uma calça jeans e descobrimos que existem infinitos cortes, desbotamentos, preços etc. Ótimo, somos LIVRES PARA escolher entre centenas de jeans. Mas, de repente, eis que NÃO somos LIVRES DE uma tarefa, no fundo, fútil: a de encontrar a calça que nos veste melhor na perfeita relação custo/benefício.

Na hora de escolher um carro, uma faculdade, uma profissão, um país ou uma cidade em que morar, as escolhas possíveis são, hoje, incontáveis. Portanto seríamos mais livres, não é? Pode ser. Em compensação, temos a trabalhosa (e, às vezes, desanimadora) incumbência de escolher.

Schwartz opõe dois tipos subjetivos: os "maximizadores" e "os que se contentam com algo suficientemente bom". Os maximizadores querem absolutamente fazer a escolha certa; os outros sabem se satisfazer sem ter que alcançar a certeza de que fizeram o melhor negócio.
Ora, constata Schwartz com razão, o maximizador não é nunca feliz: ele é corroído pelo remorso e pela dúvida (será que examinou efetivamente todas as possibilidades?).

Schwartz chega a imaginar que a epidemia de depressão das últimas décadas tenha uma relação com a multiplicação das escolhas possíveis e, portanto, com a insatisfação crônica de nosso lado maximizador. Obviamente, os que sabem se satisfazer vivem melhor. Conclusão de Schwartz: o excesso de liberdade nem sempre é bom.

Tudo bem. Mas vamos aplicar a visão de Schwartz ao campo amoroso. É claro que, se a tradição nos obrigasse a nos casar com a moça escolhida pelos anciões de nossa aldeia, a vida amorosa seria mais fácil. A liberdade para se juntar com quem quisermos é, de fato, uma complicação: para ter a certeza de que Fulano é meu homem fatal, com quantos Sicranos deverei compará-lo?
Por outro lado, se adotarmos a sabedoria dos que sabem se contentar com o que lhes agrada, nossos parceiros e parceiras não vão gostar.

Em geral, preferimos ser amados por quem acha que somos a melhor escolha possível, em absoluto.

Ou seja, na vida amorosa, os maximizadores sofreriam como sempre, enquanto os que "se contentam" seriam detestados por parceiros e parceiras. Como fica? Pois é, talvez a vida amorosa seja um bom exemplo para descobrir os limites das idéias de Schwartz, porque, nela, a liberdade certamente não consiste em poder escolher o amado numa lista de pretendentes. Amar tem mais a ver com "encontrar" do que com "escolher".

O livro de Schwartz é ótimo e divertido sem contar que pode ajudar todas as pessoas que se inibem diante da multiplicidade dos possíveis. Mas Schwartz parte de um pressuposto, que está implícito desde seu primeiro exemplo (o dos jeans): ele considera a pluralidade das escolhas possíveis como o índice da liberdade. Quando constata que essa liberdade é fonte de tormentos, ele conclui que talvez seja melhor sermos menos livres e mais felizes.

Ora, a visão que Schwartz tem da liberdade é parasitada pelo próprio modelo do consumo, cujos impasses ele castiga.

Ser livre não significa poder escolher entre os objetos disponíveis nas prateleiras do supermercado; ser livre significa saber criar o que queremos e encontrá-lo, mesmo e sobretudo quando não está em lista alguma de liquidações e promoções. Certo, o mal-estar do maximizador é uma patologia da liberdade de escolha. Mas a liberdade de escolher entre as ofertas que estão nos cardápios é, por sua vez, uma deformação da verdadeira liberdade -a de inventar.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

"Meu Nome Não É Johnny'


Os desmandos dos filhos constituem o consolo dos pais diante da inelutabilidade da morte

NOS anos 90, João Guilherme Estrella, um jovem de classe média-alta carioca, tornou-se "barão" do varejo de cocaína. Ele exportou "pura" para a Europa, foi preso com seis quilos da droga e, num processo memorável pela sinceridade do acusado e pela inteligência da juíza, foi condenado a dois anos de internação num manicômio judicial. Ele cumpriu a pena e é hoje um produtor musical.

Estréia amanhã "Meu Nome Não É Johnny", de Mauro Lima, com atuações notáveis de Cléo Pires e Selton Mello. O filme se inspira no livro homônimo (Record, reeditado nesta ocasião) em que Guilherme Fiuza reconstruiu e contou a história de João Guilherme Estrella.

O filme (como o livro) começa com uma breve descrição da infância de João Guilherme. Por um momento, pensei (receei) que a narrativa adotasse a explicação que quase sempre liga a toxicomania dos filhos à permissividade dos pais. É aquela lengalenga: os pais nunca souberam dizer não, e os filhos, incapazes de encarar qualquer frustração, procuram na droga a garantia de uma gratificação constante. Pois é, o filme é muito mais inteligente e verdadeiro do que esse clichê explicativo.

Um exemplo. O pai de João Guilherme tolera que o filho estoure um rojão na sala quando o Vasco marca um gol. Mas é melhor a gente não se apressar em julgar e condenar: o pai também exige que o moleque trabalhe para pagar ao menos a metade da prancha de surfe que ele quer.

Quase todos os pais se reconhecerão nessa mistura em que coexistem a fascinação pelas façanhas do filho (deixe, que esse menino vai longe) e as tentativas desesperadas de inculcar nele uma ética do esforço. Esse paradoxo é o drama básico de todos os pais modernos.

No começo de sua "carreira" de traficante, João Guilherme vivia na casa de família junto com o pai, que se separara e estava gravemente doente. Enquanto o pai esperava a morte confinado no seu quarto, cocaína e maconha rolavam soltas nas animadíssimas reuniões organizadas pelo filho na sala da casa.
O espectador talvez se indigne: o pai está cego? Não vê o que está acontecendo? Ou então: como o filho faz a festa enquanto o pai está morrendo?

Mas uma outra leitura é sugerida pelos bonitos planos em que Mauro Lima enquadra frontalmente a casa do Jardim Botânico ou mostra o pai se virando na cama no meio da noite: o quarto do pai doente e a sala da bagunça não são mundos separados.

A contradição é só aparente entre os desmandos do filho e a agonia do pai: talvez, no fundo, o pai queira mesmo o barulho da festa que não o deixa dormir.

É sempre assim. Os filhos são tudo o que nos resta para acreditarmos que a vida continua, e eles têm a tarefa de serem "felizes" para compensar as amarguras de nosso tempo que se acaba. Condenamos os excessos nos quais eles se engajam, mas é apenas "pelo bem deles". O gozo dos filhos, por mais que seja reprovado, é um espetáculo que consola os pais da inelutabilidade de sua própria morte.

João Guilherme Estrella foi traficante de droga. Mas o verdadeiro traficante nunca toca na droga; ele só vende. Para fazer a diferença entre traficante e usuário, a lei só pode indicar critérios quantitativos, que são freqüentemente incorretos: João Guilherme movimentou enormes quantidades de cocaína, mas ele mesmo chegou a cheirar, numa semana, o despropósito de cem gramas. A juíza viu mais o drogado que o traficante. Com razão: ao longo de sua "carreira", João Guilherme não acumulou nenhuma reserva de dinheiro nem organizou uma quadrilha, ele apenas viveu anos na ânsia de uma fruição frenética. Durante o processo, a juíza perguntou a João Guilherme se ele sabia que estava fazendo algo errado ou ilegal.

João Guilherme respondeu que ele não tinha muito clara a distinção entre o que é certo e o que não é. Claro, ele devia saber que algumas substâncias são ilícitas por lei. Mas há uma distinção mais profunda que muitos perdem -não só os toxicômanos, também todos os entusiastas que, a mando dos pais, saem à conquista do mundo. Ou seja, todos nós, quem mais quem menos.

Há um momento, no filme, em que João Guilherme e alguns amigos cheiradíssimos circulam de carro pelo Rio lançando um grito comum: "O Rio de Janeiro é nosso!!!". Que o Rio fosse dele -aliás, que o mundo fosse dele- era tudo o que o pai de João Guilherme queria. E é tudo o que qualquer pai quer para o filho, não é?

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

O saber dos poucos e o dos muitos


Na era do darwinismo digital das idéias, o jeito de sobreviver é fazer barulho, ocupar espaço

NAS ÚLTIMAS semanas, revisei manuscritos em inglês e em português. Em português, sou enganado pelo meu passado francófono. Em inglês, meu ouvido está enferrujado.


Nos dicionários, a gente nunca encontra exemplos que confirmem exatamente a legitimidade da expressão que queremos usar. Ou, pior, a gente confia em exemplos antigos e acaba usando expressões esquisitas porque Machado já as usou. Fazer o quê? Posso recorrer à internet.

Quero saber se uma regência nominal é "boa"? É só digitá-la entre aspas na barra do Google e repetir a experiência com regências alternativas. Adotarei a mais usada.

É claro, dessa forma, a freqüência do uso sempre valerá mais que a regra. Mas, afinal, em matéria de gramática, o que é a regra, se não a formalização do uso?

Por esse caminho, a longo prazo, acabaremos escrevendo à força de clichês, numa língua empobrecida. Não seria muito grave (sempre haverá poetas para inventar novos jeitos de se expressar) se uma coisa parecida não acontecesse com as idéias. Como assim?

Saiu, em 2007, "The Culture of the Amateur" (a cultura do amador), de Andrew Keen. Keen não é um tecnófobo; ao contrário, é uma figura do Vale do Silício e colabora com publicações on-line. Apesar disso (ou por causa disso), ele escreveu uma ata de acusação contra a constituição e a difusão do saber na internet.

Resumindo: estamos na era do darwinismo digital das idéias, em que o jeito de sobreviver é fazer barulho, ocupar espaço. O sonho de uma informação produzida pelos próprios cidadãos, sem intermediários, desaguou no pesadelo de centenas de milhões de cidadãos escrevendo indiscriminadamente sobre qualquer aspecto do passado, do presente e do futuro do mundo (segundo os cálculos de Keen, nasce um blog a cada segundo).

Nunca foi tão fácil plantar notícias falsas e criar consensos ao redor de opiniões estapafúrdias: a difusão multiplica a crença, e a crença dos muitos vira autoridade. Um exemplo: logo depois da inundação de Nova Orleans, as notícias sobre estupros e assaltos no Superdome (onde se hospedavam os refugiados) foram plantadas na net; os jornais acreditaram e repercutiram.


A legislação está perplexa e impotente: mesmo nos EUA, onde é fácil perseguir a imprensa escrita por calúnia, é quase impossível se defender das "notícias" on-line. Quem dispõe de meios técnicos básicos pode manipular qualquer informação, destruir impunemente a reputação de um candidato e por aí vai.

Prova pelo contrário: nos EUA, nas pós-graduações em jornalismo, é regra que nenhum fato pode ser considerado conferido só por ter sido "encontrado", mesmo repetidamente, na internet. As próprias páginas on-line dos jornais são suspeitas: um hacker médio consegue facilmente construir uma "sombra", que imita perfeitamente a página que você imagina estar consultando.


Recebi recentemente, por e-mail, uma coluna "minha" que nunca escrevi. No e-mail, ela aparecia como um "copia e cola" da página on-line do caderno Ilustrada da Folha da quinta anterior. Fato curioso: o texto não afirmava nada de extravagante, nada que eu não pudesse assinar.


Em suma, Keen tem razão. Seus alertas contra o "saber" duvidoso espalhado pelo Google, pela Wikipédia e pela simples proliferação da rede são justificados.

No entanto, seu livro lembra os gritos de alerta que surgiram, no começo do século 19, contra as possíveis perversões da democracia (e, por exemplo, o barateamento do custo da impressão de libelos anônimos). A idéia era que o clamor dos muitos emudeceria a voz dos poucos sábios que, de fato, sabem do que eles falam.

Não há como discordar. Mas resta que, a cada vez que encontro um argumento contra a desordem produzida pela livre e louca circulação de informações e pensamentos, ocorre-me o seguinte: num tribunal, se você for processado um dia, por quem preferirá ser julgado?
Pela expertise (sem ironia) de um juiz ou pela atrapalhada mistura de razões, convicções e sentimentos que animam os membros de um júri popular?

Eu preferiria o júri. Assim como ainda prefiro a bagunça da internet ao privilégio exclusivo de autoridades instituídas. Desejo a todos um 2008 fascinante, confuso e variado como a net -apenas corrigido pela capacidade (e o prazer) de separar, de vez em quando, o joio do trigo.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Presentes para as festas

Nossas tentativas de entender o mundo sempre oscilam entre "zoom in" e "zoom out"


TENHO UM carinho especial pelos livros de imagens de Istvan Banyai.


Dois estão disponíveis no Brasil: "Zoom", em sua 16ª reimpressão (Brinque-Book), e "O Outro Lado", que acaba de ser publicado (Cosac Naify). São livros sem palavras, em que a série de imagens constitui uma história e, ao mesmo tempo, uma reflexão.Nesta época de amigos secretos e de propósitos para o Ano Novo, esses dois pequenos livros são o brinde que mais gosto de oferecer. Além de agradar (espero) a adultos e crianças, eles dizem algo essencial sobre minha maneira de pensar e de viver, ou melhor, sobre como gostaria de conseguir pensar e viver. "O Outro Lado" é, dos dois, o mais fantasioso e, talvez, o mais complexo.

À força de folheá-lo, cheguei a este resumo de sua sabedoria:
1) sempre há um outro lado;

2) vale a pena, em cada situação, olhar para nós mesmos do ponto de vista daqueles que estamos observando;
 
3) esse esforço não é apenas um jogo no qual brincaríamos de passar de um lado ao outro do espelho;
 
4) tampouco trata-se apenas de saber se colocar nos sapatos dos outros (o que já não seria mal);
 
5) os desenhos revelam que, quando a gente se desloca para o lugar dos outros, quando a gente se mexe para "o outro lado", algo muda: o resultado final não é só a mesma cena vista de ângulos opostos, mas é, de repente, uma nova cena.

Veja se você concorda. "Zoom" é de uma leitura mais imediata, mas não por isso é menos rico. Para não estragar o prazer dos leitores, invento uma seqüência parecida com a do livro, mas diferente dela: no começo, você vê alguém de costas, sentado à frente de uma tela de computador, e imagina que esse seja o cenário da história que começa.

O zoom, afastando seu olhar, amplia o campo visual, e eis que aparece o seguinte: aquele cenário inicial é uma propaganda de informática numa revista que está nas mãos de alguém sentado na sala de espera do dentista. Antes de decidir que esse seria, então, o cenário da história, espere: o zoom vai recuar de novo.

E por aí vai. "Zoom" pode ser lido do começo ao fim (sucessão de ampliações do campo visual - "zoom out") ou do fim ao começo ("zoom in": aproximação progressiva do nosso olhar, que, portanto, enxerga de maneira cada vez mais detalhada, mas também com cada vez menos compreensão do conjunto, que se perde a cada aproximação).

Para quem lê do começo ao fim, o livro vale como uma meditação apaziguadora sobre a pouca relevância das pequenas coisas nas quais encalha o narcisismo da gente -a começar pela nossa própria pessoa. Ele lembra um pouco aquelas fantasias por meio das quais as crianças tentam aliviar o fardo do olhar dos pais, que permanentemente tenta convencê-las de que elas são seres únicos e extraordinários.

Nessas fantasias, as crianças imaginam, por exemplo, que nosso "universo" seja apenas um viveiro de bactérias no ventre de um gigante -os terremotos e as inundações sendo, respectivamente, acessos de tosse ou bebedeiras de nosso hóspede desmedido. E não acaba assim: o gigante, por sua vez, sem se dar conta, poderia ser um vírus no corpo de um supergigante, que, por sua vez... Mas, fora esse exercício salutar, que encolhe o narcisismo (ele sim, gigantesco) do qual sofremos normalmente, "Zoom" é também uma espécie de meditação, por assim dizer, cognitiva.

Explico. Nossas tentativas de entender e explicar o mundo estão sempre oscilando entre um "zoom in" e um "zoom out". Ou seja, entre a aproximação máxima que nos permite encontrar a causa de nossos males no microscópio (invasores invisíveis, genes, cromossomos etc.) e a distância máxima que nos leva a procurar a explicação do que acontece, por exemplo, na disposição dos astros na hora de nosso nascimento ou no dia de hoje.

Com isso, alimentamos oposições, quase sempre estéreis, entre explicações pelo infinitamente pequeno e explicações pelo quadro mais amplo -no meu campo, entre a descrição da química invisível que regula nossa mente e a consideração de eventos externos que nos afetam.

Meu propósito, para o ano que vem, é que a gente não fique travado carregando na mão apenas duas objetivas separadas, uma macro e uma teleobjetiva, mas que estejamos dispostos a acionar constantemente o nosso zoom -"zoom in" e "zoom out".

E também, quase ia esquecer, que sejamos capazes de enxergar sempre "o outro lado".

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Os novos janízaros

A assimilação cultural pode ser desejada, mas é sempre vivida como traição e violência

A REVISTA "Foreign Affairs" está publicando os programas de política estrangeira dos candidatos à presidência dos EUA (no número de novembro/dezembro 2007, foi a vez de Hillary Clinton e John McCain).
Os candidatos têm idéias diferentes sobre o futuro do Iraque, a condução da guerra contra o terror etc., mas todos compartilham uma preocupação com a "idéia americana".
Por exemplo, Hillary Clinton cita um discurso famoso de Daniel Webster, que, em 1825, assinalava que os EUA deveriam cuidar não de seu poder, mas do poder da "idéia americana", segundo a qual "com sabedoria e conhecimento, os homens podem governar a si mesmos" (resumo perfeito do que há de melhor na modernidade ocidental).
Em suma, os presidenciáveis discordam na avaliação das políticas que enfraqueceram a autoridade moral dos EUA. Mas todos querem restaurar o caráter exemplar da experiência norte-americana.
A lógica atrás dessa urgência é esta: "eles" nos odeiam porque nos julgam por alguns atos errados e não pelo que somos; é preciso lembrar que, aos trancos e barrancos, continuamos os mesmos que inventaram e defenderam a democracia e a liberdade do indivíduo, contra inimigos externos e internos. É preciso lembrar que somos os mesmos que inventaram narrativas que alimentam os sonhos do mundo inteiro.
Parece uma boa estratégia para captar simpatia, mas é fundada numa ingenuidade da razão. Explico.
Em geral, diante de qualquer outro que tenha valor de exemplo para nós, somos, no mínimo, ambivalentes. Ou seja, podemos endereçar a esse outro pedidos de ajuda e até de adoção, mas também queremos derrubá-lo. Por quê? Porque a sedução que o exemplo exerce sobre nós é vivida como uma violência que nos incita a "trair" nosso jeito habitual de ser, nossa inércia. De fato, odiamos, no exemplo, nossa própria vontade de igualá-lo.
A todos (não só aos presidenciáveis americanos), recomendo a leitura de um maravilhoso pequeno romance, "O Fundamentalista Relutante", de Mohsin Hamid (ed. Alfaguara). O autor (assim como o protagonista do livro) é muçulmano paquistanês, estudou nas melhores universidades americanas e foi consultor em Nova York.
O romance (em forma de monólogo endereçado a um americano, numa cidade paquistanesa) joga uma luz singular sobre o enfrentamento entre o Islã e o Ocidente e, bem além disso, sobre o conflito que surge DENTRO de cada cultura e de cada sujeito quando seduzidos e conquistados pela modernidade ocidental.
Num trecho do livro, o protagonista lembra a história dos janízaros, corpo de elite do exército do sultão, composto de crianças cristãs levadas como escravas e educadas na lei islâmica.
O que teria sido da legendária fidelidade dos janízaros se eles tivessem sido capturados quando já adolescentes ou adultos? Ou se fossem criados mantendo um contato constante com suas famílias e sua cultura de origem?
O sultão não faria uma besteira dessas. Mas é o que o Ocidente faz a cada dia, integrando (alistando) indivíduos pelo mundo afora. O Ocidente aposta na idéia "razoável" de que o charme da liberdade individual e as vantagens materiais do "progresso" amenizem ou compensem, em seus "novos janízaros", qualquer sensação de que, ao integrar-se, eles trairiam suas origens. É uma aposta perdedora.
O novo janízaro pode desejar ardentemente sua "conversão" cultural, mas o modelo segundo o qual ele entenderá e justificará sua mudança é o do escravo arrancado à força de sua terra, de seus costumes e de sua família. O ódio contra a cultura que assimila será tanto mais violento quanto mais a assimilação for fruto de uma escolha e de uma ambição do próprio sujeito que se integra (a tropa de elite dos terroristas, desde o 11 de setembro até os últimos atentados de Londres ou da Escócia, é composta por sujeitos bem integrados na sociedade ocidental).
Nota aos presidenciáveis americanos: na era da globalização, ser símbolo e exemplo da cultura dominante significa também, inevitavelmente, constituir-se como objeto de ódio. A expansão do individualismo ocidental é provavelmente sem volta, mas continuará produzindo, durante um bom tempo, novos janízaros raivosos -revoltados contra a integração que eles mesmos desejam e que, justamente por isso, parece-lhes constituir uma traição dos seus e de si mesmos.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

"A Vida dos Outros"

O mistério é a banalidade do bem: por que alguns encontram a vontade de resistir ao horror?

É UMA HISTÓRIA que já contei, mas não tenho como evitar esta breve repetição. Anos atrás, defendi uma tese de doutorado sobre a questão seguinte: como é possível que homens quaisquer, sem nenhuma predisposição moral ou patológica, homens como você e eu, possam se tornar algozes?

O exemplo central da tese eram os inúmeros sujeitos que, durante o nazismo, atuaram, direta ou indiretamente, como agentes de extermínio.

Excluí a minoria que era motivada por uma certeza ideológica e os pouquíssimos sádicos, que, aliás, eram descartados pelo próprio processo seletivo dos SS. Também confirmei que, no caso da "tarefa" genocida, as punições para quem não obedecesse às ordens eram mínimas, se não nulas.
Sobraram-me, então, batalhões de reservistas, pais de família, "brava gente", provavelmente animados pela mesma moral básica que todos compartilhamos. Como explicar sua complacência e seus atos?

Cheguei a esta resposta inquietante: qualquer um (ou quase) pode se esquecer de sua humanidade não por convicção nem por crueldade ou por medo, mas, simplesmente, pelo descanso que ele encontra na obediência, no sentimento de fazer parte de uma máquina da qual ele pode ser uma pequena engrenagem. Desejar, pensar e agir como indivíduo é penoso; muito mais fácil é renunciar à subjetividade (sempre atormentada) para transformar-se em burocrata do mal.

Meus argumentos convenceram os que os leram. Mas fiquei com uma pergunta: tinha jogado um pouco de luz sobre a "banalidade do mal" (como dizia Hannah Arendt), mas o que continuava misterioso era a banalidade do bem. Entendia como milhares de homens comuns puderam se tornar algozes; não sabia por que alguns, nas mesmas condições, tinham encontrado a vontade de resistir.

Não penso nos que, animados por seus ideais, levantaram as armas ou a voz contra os totalitarismos do século 20. Gostaria de entender os pequenos gestos de resistência que surgiram do nada, sem uma motivação que fosse clara para o próprio agente.

Gostaria de entender o fascista simpatizante que, um dia, no meio de uma batida policial, escondeu um judeu, um homossexual ou um resistente. Ou o burocrata que, de repente, apagou o nome de uma família de uma lista de deportação ou avisou alguém que ia ser preso, para que fugisse a tempo.

No nosso cotidiano imediato, na esquina de casa, por que, às vezes, se abrem frestas de humanidade e resistência na parede uniforme da complacência?

Estreou, na semana passada, "A Vida dos Outros", o filme alemão, de F. H. von Donnersmarck, que foi Oscar de melhor filme estrangeiro em 2007.

Os fatos narrados acontecem durante os últimos anos da Alemanha Oriental, um regime talvez inigualado em seu caráter totalitário e policial.

Claro, é uma história de homens transformados em burocratas sinistros pela vontade de impor seu capricho aos outros e, sobretudo, pelo vazio de sua vida. Mas é também a história do ato de coragem repentino (pequeno ou grande, depende do ponto de vista) de Gerd Wiesler, um oficial da Stasi, a polícia do regime.

Saí do cinema me perguntando o que, no filme, tinha motivado a insubordinação de Wiesler. Foi a descoberta das razões sórdidas de seus superiores? Foi a simpatia por suas vítimas ou, quem sabe, o amor por uma delas? Foi a leitura de um poema de Brecht? Ou a escuta de uma sonata? Ou talvez a comparação entre a miséria silenciosa de sua existência e o ruído de amores, conversas e idéias na vida dos que eram objetos de sua escuta contínua?

Numa cena tocante do filme, Wiesler chega em casa (uma espécie de protótipo do anonimato), cobre seu espaguete com extrato de tomate frio e senta diante do televisor que transmite crônicas políticas do regime. Há, na vida de Wiesler, uma irrelevância e um deserto afetivos que são o próprio estigma da complacência burocrática, mas que talvez sejam, ao mesmo tempo, a causa de uma vontade inesperada de fazer, por uma vez, a diferença, de se permitir um ato que valha a pena ser lembrado e contado. Raramente assisti a um filme que, de maneira discreta e humilde, me ajudasse tanto a entender o que, de repente, no marasmo, pode nos devolver nossa humanidade e nos levar a fazer a coisa certa.

PS: O livro de José Saramago mencionado na coluna passada, "O Conto da Ilha Desconhecida", foi publicado em 1998 e reimpresso recentemente.

domingo, 2 de dezembro de 2007

Imagens a bordo de um táxi

Como nas eleições, as pessoas preferem lidar com complôs do que reconhecer o seu próprio destino

1. É frequente que o primeiro da classe, aquele que estúpida e invejosamente os outros chamam de CDF, um dia seja seduzido pelo malandro da classe e acabe aceitando, por exemplo, de acender com ele um cigarro na hora do recreio. Normalmente, o primeiro irá sozinho para a secretaria, pois o malandro saberá cair fora.

É banal que, na adolescência, um menino suponha que a glória social, aquela que lhe abriria as portas do mundo dos homens verdadeiros (ironia), seja uma transgressão, mesmo e sobretudo se descoberta e devidamente punida. Qual melhor marca do macho do que uma tatuagem de presidiário?

Assim, a única questão séria que coloca a recente história do ex-ministro Ricupero concerne não a ele, nem ao que ele disse (que, na verdade, para quem leu a íntegra, é pouca coisa), mas ao nosso país. Que tipo de imagem de virilidade nossa cultura promove, se, para se fazer valer frente a um jornalista –membro de sua família–, um ministro escolhe, como forma de cumplicidade, aparecer e se dizer mais malandro do que ele é?

2. Domingo, no começo da tarde, em Porto Alegre, vou para o aeroporto. Com o motorista de táxi se estabelece uma cumplicidade: juntos, lamentamos as coisas que, supõe-se, ambos adoraríamos estar fazendo. Entoamos um coro sobre os prazeres dos intermináveis churrascos caseiros do domingo, a cervejinha, a costela e por aí vai.

De fato, se ele está trabalhando e eu viajando, talvez na verdade ele compartilhe comigo a ojeriza às conversas vazias de tios e tias, uma antipatia certa pela costela gorda e em geral por toda carne assada coberta (contra qualquer lógica culinária) de sal grosso, e talvez enfim deteste a estupidez e o torpor desta caricatura de descanso.

Mas a imagem do churrasco é o lugar comum do qual dispomos, às pressas, para comungar.

O catálogo das imagens, que constituem os estereótipos comuns do prazer como do dever, é o dicionário dos valores dominantes, a lista, não necessariamente dos deuses aos quais sacrificamos, mas dos deuses em cujo culto nos reconhecemos. O acordo tácito, subentendido sobre estas imagens cimenta nossa vida social. E comanda uma série de escolhas, naturalmente.

3. Depois de descer em São Paulo, outro táxi e outro motorista. As eleições monopolizam a conversa. Milagrosamente, entre Guarulhos e a avenida Faria Lima, ele consegue conciliar uma eloquente indignação contra a classe política corrupta, negligente da coisa pública, desprovida de toda moral republicana, com um irreverente e malandro elogio da sonegação.

Nenhuma contradição: as duas imagens coexistem no céu dos valores sociais. A contradição só surgiria se a referência comum que sua conversa procura fosse, não uma imagem, mas um símbolo qualquer. Em outras palavras, se a referência procurada fosse um valor abstrato, aí a moralidade seria contraditória com a malandragem. As imagens, aparentemente, desconhecem estas dificuldades lógicas. Cada uma vale por si só, à simples condição de ser coletivamente admirada.

4. De novo indo de táxi, inúmeras vezes desde o lançamento do Plano Real, volta exatamente a mesma questão: ``Você acha que vai dar certo?'' Não é uma questão que mobilize um critério científico ou moral (se tal fosse o caso, ela se formularia: ``você acha que o plano é ou está certo?''). Também não é um esforço da imaginação para entrever futuros possíveis (que se formularia: ``no que você acha que poderia dar?''). Qualquer uma destas duas versões da pergunta, aliás, suporia um conhecimento e uma experiência do plano, assim como da realidade que ele pretende transformar.

De fato, a pergunta tantas vezes repetida reduz o futuro a uma simples aposta, torna a realidade uma espécie de absconsa estranheza sobre a qual só um lance de sorte poderia agir, e enfim necessariamente transforma o ministro e candidato em um santinho.

A coisa vale, aliás, para todos os candidatos: qual é o santinho que dá sorte? As imagens –banalidade, esta, repetida até o enjôo em época de eleições– prevalecem sobre critérios e projetos. Menos banal é notar que a prevalência do santinho implica uma dupla desistência: espera-se que a realidade mude por milagre e deixa-se de imaginar o futuro.

A imagem, com efeito, abole o tempo. Ela é um ato de fé em uma espécie de eterno instante, como nos devaneios dos adolescentes que podem se imaginar adultos conformes ao ideário de todos os sucessos sem pensar um instante no como e a que preço se chega lá.

5. A modernidade é paranóica. Desde o século 18, atrás do destino ou da ordem –tradicional ou sagrada– das coisas, nossa leitura do mundo aprende a descobrir a figura de um semelhante, um homem como nós, que nos oprime. É uma das grandes novidades da Ilustração. Esta nova visão do mundo acelerou a história. Se os artífices de nossas infelicidades são nossos semelhantes, podemos nos revoltar, combatê-los. Mas esta aceleração tem um preço.

A frustração se torna a única falta que reconhecemos: o que não temos é sempre e só aquilo de que um outro nos frustra. Marxismo e psicanálise produziram esforços notáveis para corrigir a tendência. Manifestamente em vão: o capitalismo, complexa ordem de nossas sociedades, continua nos aparecendo como a maléfica invenção dos capitais e nossas dificuldades subjetivas mais frequentemente nos aparecem como a suma aritmética das injustiças que os pais nos fizeram em nossa infância indefesa.

É um bom jeito de tirar o corpo fora. Não somos nunca nós, são os outros. O mundo é o teatro das injustiças que sofremos. De repente, o que ganhamos em perspectivas de ação, perdemos em entendimento e em experiência. Do que acontece somos sempre as vítimas (inocentes).

Assim, por exemplo, é quase unânime o coro das vítimas das mídias nesta última eleição. Com algumas exceções (por exemplo um recente notável artigo de Tarso Genro, na Folha de 7/10), prefere lidar com complôs e manipulações do que se reconhecer envolvidos em seu próprio destino.

Qualquer teoria séria das mídias sugeriria que, na verdade, os meios de comunicação de massa tentam oferecer a seus espectadores, em primeiro lugar, as imagens nas quais estes mais querem se espelhar.

Talvez por isso mesmo, aliás, nossa relação com as mídias seja facilmente paranóica. De fato, as imagens que elas nos apresentam, para que possamos refleti-las como tantos espelhos, acabam nos perseguindo. É em relação a elas que medimos nossa inadequação, elas constituem um assíduo e frustrante dever. Na ausência de princípios reguladores, são a versão moderna do que a psicanálise chama de superego.

6. As dificuldades econômicas do Terceiro Mundo parece que são, desde sempre, responsabilidade do Primeiro e sobretudo dos Estados Unidos. Talvez a responsabilidade não esteja lá onde nossa paranóia a procura e encontra, ou seja, na avidez dos ``banqueiros de Londres'', dos quais já falava Mário de Andrade. Talvez ela esteja na inevitável modernidade de nosso Terceiro Mundo: somos, tanto quanto o Primeiro, dominados por imagens. Mas, à diferença do Primeiro, não produzimos imagens, mas adotamos as do primeiríssimo mundo. Por este caminho, aliás, o próprio Primeiro Mundo como um todo se torna nossa imagem ideal.

Isso é suficiente para que nosso imperativo não seja mais o desenvolvimento, mas a imediata adequação a sua imagem. Assim, não nos desenvolvemos. Nos transformamos em caricaturas de desenvolvidos, logo todos de celular porque não há rede telefônica. A pressão narcísica de uma imagem realizada de desenvolvidos impede e atrasa o desenvolvimento. O imperativo de ``chegar no Primeiro Mundo'' (vide Collor, mas também as ambições, por certos aspectos, do discurso de Celso Amorim na ONU) pode acabar na distribuição de gravatas de Hermès na cestas básicas da LBA.

Em suma, o Primeiro Mundo talvez nos estrangule um pouco ou mesmo muito, política e economicamente, mas sua imagem, que adoramos, faz mais e pior. Ela nos pára no meio do caminho com a ilusão de que uma boa mascarada vale qualquer chegada.

Uma parte da desconfiança ou mesmo do ódio que os EUA, por exemplo, parecem às vezes inspirar no Terceiro Mundo é certamente ódio de nossa própria paixão por sua imagem, que nos persegue.

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Ilhas desconhecidas


O amor e a viagem nos fazem descobrir que há algo, em nós, que não conhecíamos até então

QUANDO ERA criança, um senhor canadense, Mr. Evans, foi contratado por meus pais para "treinar" meu inglês. O método de Mr. Evans consistia em narrar grandes eventos da História (com H maiúsculo) como se ele tivesse sido uma testemunha ocular. Conseqüência: há detalhes íntimos de várias cenas famosas que não sei mais se são fatos ou fantasias de Mr. Evans.

Uma fonte de inspiração de Mr. Evans era a expedição de Lewis e Clark, que, entre 1804 e 1806, abriu o caminho do Oeste americano. Segundo Mr. Evans, em 7 de abril de 1805, deixando Fort Mandan para se aventurar no território desconhecido das grandes planícies, Lewis, pensativo, teria dito a George Gibson (o melhor atirador da expedição): "New land, George" (uma nova terra, George).

Nunca pude confirmar a veracidade da dita conversa. Mas essa frase, aparentemente trivial, foi incorporada no meu léxico familiar. A cada vez que, numa viagem de férias, saíamos do país, meu irmão e eu não parávamos de repetir: "New land, George". Ainda hoje, quando chego num lugar desconhecido, penso em Lewis e Gibson.

Mais tarde, meu irmão e eu passamos a usar a mesma expressão quando - numa festa, por exemplo - avistávamos mulheres que despertavam nosso interesse. Um dos dois, invariavelmente, levantava a mão espalmada, como se quisesse proteger os olhos do sol, e dizia: "New land, George".

Na literatura, não é raro que um corpo amado e desejado seja comparado à paisagem de terras incógnitas. John Donne, num de seus mais lindos poemas (do século 17), chamou sua amada de "minha América, minha terra recém-descoberta". De fato, há mesmo uma relação entre o amor e a verdadeira viagem. Vamos ver qual.
De vez em quando, tenho vontade de viajar. O que chamo de viajar não tem muito a ver com viagens de férias. Tampouco significa necessariamente desbravar terras virgens.

Encontrei a melhor definição do que é viajar numa maravilhosa e breve fábula de José Saramago, que acaba de ser publicada, "O Conto da Ilha Desconhecida" (Companhia das Letras). O protagonista explica assim seu desejo: "Quero encontrar a ilha desconhecida. Quero saber quem eu sou quando nela estiver".

Viajar é isto: deslocar-se para um lugar onde possamos descobrir que há, em nós, algo que não conhecíamos até então. Sem estragar o prazer dos leitores, só direi que, no fim da fábula de Saramago, talvez o protagonista não encontre sua ilha, mas ele encontra uma mulher. A moral da história é incerta, entre duas leituras opostas.

Primeira leitura: quem casa não viaja (a não ser de férias); casar-se é desistir de viajar. É o que pensam, com freqüência, homens e mulheres casados. E é também o que os leva, às vezes, a se separarem. Quando achamos que o outro nos impede de viajar, ou seja, que ele nos priva da aventura de descobrir o que poderia haver de diferente em nós, o casal se torna nosso inimigo. Claro, na maioria dos casos, acusamos o casal de uma inércia que é só nossa.

Exemplo: anos atrás, na França, um amigo se interessava pelas pessoas que desaparecem sem razão aparente e refazem sua vida alhures, sob outro nome, como se tivessem sido vítimas de uma amnésia repentina. Em todos os casos em que meu amigo conseguira entrevistar esses "desaparecidos", os mesmos constatavam que, depois de seu sumiço, em poucos anos, eles tinham reconstruído uma situação de vida parecida com aquela que tinha motivado sua fuga.
Segunda leitura: o protagonista descobre que a mulher ao seu lado é a própria ilha desconhecida que ele procurava e que a verdadeira viagem é o encontro com um outro amado. Faz todo sentido, pois o amor e a viagem, em princípio, têm isto em comum: ambos nos fazem descobrir em nós algo que não estava lá antes.

O outro amado nos transforma. Tanto quanto a chegada numa terra incógnita, ele nos revela algo inesperado em nós.

Por isso, aliás, o viajante e o amante podem esbarrar em problemas análogos: às vezes, ao sermos transformados pela viagem ou pelo amor, não gostamos do que encontramos, não gostamos dos efeitos em nós do amor ou da viagem. Essa é, em geral, a única razão séria para se separar ou para voltar da viagem.

Moral dessa coluna (e talvez da fábula de Saramago): os outros não são nenhum inferno, são uma viagem. Agora, para amar, como para viajar, é preciso ter determinação e coragem.

A história de Querô



Não é a denúncia, mas a qualidade da história que pode nos revelar uma realidade injusta

CONSTATAÇÃO DE bilheteria: os espectadores brasileiros se interessam cada vez menos pelos filmes nacionais que tratam da miséria social.

A leitura, na imprensa, de comentários sobre essa mudança do gosto dá a impressão de que estaríamos lidando com uma espécie de "Cansei" cultural: quem tem R$ 10 para gastar no cinema procuraria, naquelas duas horas, o sossego de pensar em realidades diferentes das que assolam sua vida cotidiana e a do país.

Depois de cercas elétricas e seguranças armados na porta de casa, eis que a última defesa seria a simples negação: não me falem mais disso.

Pois é, não acredito nessa tese. Em compensação, constato o seguinte: com as devidas exceções, o cinema de denúncia é chato. E não é o caso de pensar que o sentimento de chatice seja uma defesa psicológica do espectador. É mais provável que, freqüentemente, a intenção de denunciar produza filmes chatos. Como assim "chatos"?

O cinema, como qualquer ficção, pode nos fazer descobrir realidades que desconhecíamos ou preferíamos ignorar. Ele pode nos deixar indignados, apavorados e, como se diz, mais "conscientes" do drama social ao redor de nós. Mas isso acontece quando, primeiro, o filme nos conquista, ou seja, banalmente, quando ele nos conta uma história em cujos conflitos, dramas e alegrias reconhecemos os percalços de nossa própria vida.

Ora, na sexta passada, estreou "Querô", de Carlos Cortez. O filme está em poucas salas, talvez porque se presuma que os espectadores resistam a mais um filme de denúncia da miséria social brasileira.

É uma pena, porque "Querô" não é um filme sobre a miséria social brasileira: é um filme tocante que conta a história de Querô, um adolescente da Baixada Santista que ganhou esse apelido por ter sido abandonado pela mãe, uma prostituta que se matou ingerindo querosene.

Obviamente, ao longo do filme, visitamos os antros do porto de Santos e os porões da Febem. Nesse passeio, talvez enxerguemos algo que preferiríamos não saber, mas isso acontece graças à complexidade e à intensidade da história que nos é contada. Em suma, acontece porque Querô, tão diferente, parece tão próximo a nós.

Raramente acordamos de uma noite dormida em cima das cordas de um barco abandonado, mas todos sabemos sonhar com a liberdade absoluta que é "prêmio" (envenenado) da marginalidade. Raramente devemos escolher entre o amor e o assassinato, mas não é raro que, um dia, tenhamos desistido de um amor que nos transformaria para seguir um dever iníquo ou pela simples força do que parece ser o destino. Poucos foram abandonados quando bebês, mas muitos sofrem do sentimento radical de um desamor, no mínimo, imaginário. Poucos foram abusados brutalmente, mas o ódio e a vontade de matar nos são mais familiares do que gostamos de admitir.

A qualidade humana da experiência narrada e a maestria de quem narra fazem com que uma história nos prenda, por ela se tornar, por assim dizer, universal (ou quase). Nesse caso, pode acontecer, "de brinde", que seu pano social de fundo nos deixe indignados.

Carlos Cortez se vale da extraordinária atuação do estreante Maxwell Nascimento como Querô. Ele poderia, aliás, ter confiado mais em Nascimento, cujo rosto fala alto e dispensa a esporádica evocação cinematográfica dos pensamentos do protagonista.

A origem do roteiro do filme é o romance de Plínio Marcos, "Querô: Uma Reportagem Maldita", de 1976.
Em 2002, a adaptação cinematográfica de uma peça de Plínio Marcos permitiu um filme memorável, "Dois Perdidos Numa Noite Suja", de José Joffily. No passado, houve várias outras adaptações cinematográficas de obras de Plínio Marcos, inclusive uma do próprio "Querô".

Não as conheço, mas, no caso dessas duas adaptações, aposto que ambas devem uma boa parte de sua qualidade ao carinho de Plínio Marcos pelo mundo e submundo que ele descrevia.

Um censor da época da ditadura disse um dia a Plínio Marcos que sua obra era subversiva porque continha palavrões. Plínio Marcos achou estranho, pois ele usava palavrões não para subverter, mas porque escrevia o diálogo de quem trabalha no mercado e de quem conversa nas cadeias e nos puteiros. E não fazia isso para denunciar nem para chocar, mas porque esses eram os protagonistas das histórias que ele conhecia, que lhe pareciam valer a pena e que ele gostava de contar.

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Narciso no país das maravilhas


A maioria dos objetos são drogas: satisfazem um anseio parecido com o do toxicômano

ESSE É o subtítulo de um estudo publicado recentemente (2006) pela Routledge, "The Self Psychology of Addiction and its Treatment" (a psicologia-do-self da adicção e de seu tratamento). Os autores, Richard Ulman e Harry Paul, são psicanalistas (da psicologia do self, a escola de Heinz Kohut), terapeutas de toxicômanos e eles mesmos drogadictos em remissão.
O estudo, embora estritamente clínico, propõe uma visão da toxicomania que, ao meu ver, vale como interpretação geral da modernidade. Explico.

Na laboriosa tentativa de encontrar um lugar no mundo, cada um de nós se alimenta de duas fontes: 1) as aspirações, as normas e os brasões transmitidos por nossos ascendentes, coisas que podem nos dar a sensação de que temos uma missão na vida; 2) o amor, mais ou menos incondicional, que nos acolhe e agasalha nos primórdios de nossa existência permitindo, aliás, que ela vingue.

Em suma: legados paternos e cuidados maternos (é óbvio que qualquer um pode fazer função de pai ou de mãe).
Ora, na modernidade, bebemos sobretudo na segunda fonte. Por isso, somos todos narcisos, ou seja, mais preocupados em sermos gostados, amados e admirados pelos outros do que com deveres e princípios.

Problema: em geral, o modelo do amor graças ao qual seríamos "alguém" (que sempre significa "alguém muito especial") é o momento em que, pendurados ao peito materno, ou melhor, com a mãe pendurada aos nossos lábios, estaríamos ao centro de um mundo controlado por nós: basta chamar, chorar etc. para que ela apareça e nos faça felizes.

Logicamente, com esse sonho narcisista encravado no nosso âmago, torna-se difícil lidar com separações, frustrações etc. E, infelizmente, o mundo é um pouco mais cruel do que a mãe-padrão e sempre muito mais cruel do que a mãe mítica e escrava que gostaríamos de ter tido.
Como aprendemos a encarar perdas, danos e fracassos?

Quem lia as tiras de Charlie Brown, de Charles Schultz, deve se lembrar do cobertor que Linus carregava sempre consigo: quando as coisas não iam bem, ele agarrava o cobertor e chupava o dedo; era seu jeito de reencontrar, momentaneamente, a felicidade perdida. O cobertor de Linus é um exemplo perfeito do que D. W. Winnicott, um grande psicanalista, chamou de "objetos transicionais": são objetos inanimados, mas que representam um amor do qual não conseguimos ainda nos separar.

Eles funcionam como o lápis entre os dentes do fumante que quer parar de fumar: não substitui o cigarro, mas, na luta para deixar o vício, oferece conforto nas crises de abstinência. Ou como a mamadeira da noite quando o desmame acabou há tempos, mas ainda bate, digamos assim, uma "nostalgia amorosa".

À força de brincar com cobertores e chupetas, a gente deveria aprender a 1) dispensar cobertores e chupetas,

2) lidar com a precariedade da presença e do amor dos outros. Mas não é tão simples assim, até porque, nessa tarefa, o mundo não nos ajuda. Narciso vive no país das maravilhas, diante de uma imensa vitrina de objetos que nos prometem o seguinte: ao alcançá-los, ganharemos o amor, a admiração e (por que não) a inveja de todos. E alcançá-los é fácil -basta comprar: chocolate, relógios, charutos ou pacotes de férias.

Quem precisa de amores incertos com pessoas de verdade ou de objetos "transicionais" que as representem? Os objetos do consumo são a melhor escolha; sobre eles temos um controle absoluto.

As drogas propriamente ditas oferecem algumas vantagens marginais: são baratas e, graças à crise de abstinência, garantem a ilusão de dominar perfeitamente a alternância de insatisfação e contentamento. Mas, na verdade, para Narciso no país das maravilhas, qualquer objeto de consumo serve.

Poderia ser o melhor dos mundos, se não fosse por dois detalhes. 1) Se hesito entre um carro e uma amizade ou um amor, é bem provável que minha experiência afetiva seja miserável; 2) se espero a felicidade dos objetos, desaprendo a agir e a desejar. No próximo domingo é a primeira fase da Fuvest, e passei o ano dormindo no cursinho? Não é o caso de me desesperar, vou para o shopping comprar um sapato simplesmente "divino".

Agora, falando sério, por que se opor à liberação das drogas? Afinal, a maioria dos objetos em venda livre satisfaz, no fundo, um anseio parecido com o do toxicômano. Relaxe e goze...

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

A história da gente


O ideal da modernidade é a esperança de que "as pessoas" sejam sempre, de certa forma, "a gente"

EM SÃO Paulo, "People - Histórias de Nova York", de Danny Leiner, estreou na semana passada, num cinema só (Gemini).

Num site, encontrei a seguinte crítica do filme: "Com referências ao incidente de 2001 ou não, "People" é bastante chato, alternando entre cinco histórias triviais centradas em personagens medíocres e sem nenhuma qualidade. Difícil dizer porque alguém assistiria a um filme sobre pessoas comuns e chatas". Só para explicar: o "incidente de 2001" é o ataque terrorista de 11 de setembro.

Essa crítica me deu vontade de assistir ao filme, pois tenho um carinho especial por enredos "plurais", em que várias histórias se cruzam ou, simplesmente, coexistem. Tenho mais carinho ainda pela vida de pessoas triviais e "chatas".

E não é só isso. Obviamente, os eventos que são e serão mencionados nos livros de história transformam nossa vida concreta. Há os efeitos diretos de todo tipo de bomba na porta de casa e há as ações de quem se engaja. Mas, sobretudo, há caminhos discretos e ocultos pelos quais o espírito dos tempos e os "grandes" acontecimentos afetam o cotidiano mais íntimo de todos nós.
Por isso, aliás, tenho uma paixão antiga pela trilogia "USA", de John Dos Passos (traduzida pela Rocco em três volumes, "Paralelo 42", "1919" e "O Grande Capital"). A pluralidade dos personagens, o uso, no texto, de manchetes de jornal, propagandas, letras de músicas populares etc. me parecem escrever uma história coral e complexa, na qual me reconheço, embora seja de outra época e de outro lugar.

O herdeiro de Dos Passos, na literatura americana de hoje, é Don DeLillo. Ao ler "Submundo" (Companhia das Letras), vivi uma emoção parecida com a que me foi proporcionada pelos volumes de "USA": o sentimento de uma relação, silenciosa, mas ativa, entre as nossas histórias e a História. DeLillo, justamente, acaba de publicar "Homem em Queda" (mesma editora), romance situado em Nova York no próprio dia 11 de setembro de 2001 e nos primeiros anos após o ataque (para um dos personagens, um terrorista, no ano anterior).

"Homem em Queda" é muito mais forte e tocante do que o filme "People", mas as duas obras têm isto em comum: são narrativas plurais, com o mesmo momento histórico como tema e pano de fundo. Nelas, os efeitos do ataque nas vidas dos personagens são vistos de maneira diferente. Em "People", aparentemente, nada ou pouco mudou -há até uma crítica feroz da teimosia terapêutica, que quer encontrar traumas para explicar condutas e "aliviar" sofrimentos. Ao passo que, em "Homem em Queda", uma ferida aberta transforma a vida de todos ou quase. Mas o que importa é o que segue.

Quando aprendi o português, nos anos 80, fui seduzido por várias propriedades exclusivas da língua lusitana. Uma delas era a expressão "a gente". Nas outras línguas latinas, para designar uma coletividade na qual quem fala está incluído, é preciso usar o "nós" da primeira pessoa do plural (que indica um sujeito coletivo constituído) ou, então, recorrer ao impessoal (que, ao contrário, não inclui necessariamente quem fala). Em português, se digo "a gente" em vez de "as pessoas", isso implica que faço parte do sujeito, mas sem que exista propriamente um "nós" sólido e definido.

A distância entre "as pessoas" e "a gente" pode ser pequena, mas percorrê-la é um gesto civilizador: os ideais da modernidade ocidental repousam sobre a esperança de que "as pessoas" sejam sempre, de alguma forma, "a gente". Ora, as melhores ficções, sobretudo as plurais, como o novo livro de DeLillo, produzem este milagre: transformam "as pessoas" em "a gente", e isso sem nos distribuir carteirinhas, sem nos cooptar num sujeito coletivo. A ética moderna, dos "Principia Ethica" de G. E. Moore (1903) à "Teoria da Justiça" de John Rawls (Martins Fontes), esbarra sempre na pergunta seguinte: qual é o traço comum que, embora sejamos indivíduos livres, diferentes e soltos de tradições compartilhadas, leva-nos (mais freqüentemente do que possa parecer) a escolher o mesmo bem, na concórdia?

Outra pergunta (ou talvez outra formulação da mesma): qual é a parcela comum de humanidade que nos torna capazes de reconhecer que a vida dos outros tem sempre algo a ver com a nossa?
Na espera de uma resposta, as ficções continuam nos ajudando a transformar a História (com maiúscula) e as histórias dos outros em história da gente.