sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Bigode de madame salva africano morrendo de sono

Na sexta-feira passada, o "The New York Times" publicou uma notícia tragicômica. A reportagem explicava como os bigodes das mulheres de classe média salvarão 300 mil negros africanos por ano. Explico.

A doença do sono é produzida por um parasita introduzido no sangue pela picada da mosca tsé-tsé: quando o bicho chega ao cérebro, o sujeito entra em coma. A doença voltou a ser endêmica na África Central, onde a mosca prospera entre guerras, fome, Aids etc. Segundo os Médicos Sem-Fronteiras, há 300 mil contaminados por ano.

Por sorte, no fim dos anos 70, foi descoberta a eflornitina, que cura até os pacientes já comatosos. Mas os negros africanos, com sua baixa expectativa de vida, suas doenças sexualmente transmissíveis e suas carteiras vazias, não são os clientes ideais da indústria farmacêutica. Acabou a esperança de que a eflornitina funcionasse também contra algum tipo de câncer -o que tornaria sua preparação rentável. A produtora decidiu parar a fabricação.

E os africanos? Pois é, problema deles. Não vale a pena produzir para um mercado pequeno e pobre. Nessa altura, um milagre: Gillette e Bristol-Myers Squibb lançam um novo produto para a remoção dos pêlos faciais: o creme Vaniqa, a base de eflornitina. A produção continuará.
Um encarte da "Cosmopolitan" de janeiro anuncia que, se algum bigode tiver que se intrometer entre duas bocas (de sexo diferente) que se beijam, melhor que seja o do homem. Graças aos milhões de mulheres que pagarão R$ 100 por um tubo de creme que dura um mês, 300 mil africanos a cada ano voltarão para a vida.

Não é uma prova da sabedoria da economia globalizada? Deve ser. Mas é penoso pensar que, se os bigodes femininos não fossem sensíveis à eflornitina, os africanos já estariam adormecendo para sempre.

Fiquei indignado, querendo a nacionalização das indústrias farmacêuticas: como podemos deixar que a saúde pública seja subordinada a lucros particulares?

Mas, se um gesto de vareta mágica abolisse a globalização e voltássemos para um mundo de indústrias nacionais, os africanos não teriam a menor chance -pois seus países não dispõem dos recursos necessários para descobrir ou produzir remédio nenhum. Mais desconcertante ainda: para os sujeitos da cultura ocidental moderna (ou seja, para nós), o maior incentivo é o interesse particular. O triunfo dos interesses privados sobre a solidariedade social é um corolário de nossa cultura que nunca conseguimos mudar por decreto. Por exemplo, se você estivesse doente à espera de que inventassem uma cura salvadora, gostaria que a pesquisa estivesse só nas mãos de agências públicas? Certo que não. Sonhamos com a solidariedade, mas, para obtermos resultados, contamos com a motivação do apetite de ganho.

Acalma-se um pouco a indignação. Não nacionalizaremos a indústria farmacêutica. Esperando uma mudança de cultura, fazer o quê? Console-se: o cinismo deste mundo organizado pelo jogo dos interesses particulares tem uma falha pela qual se insinuam sentimentos solidários. Veja só: não é um acidente que logo um creme contra os bigodes das madames salve 300 mil africanos. Entre os remédios mais vendidos e rentáveis há o Viagra, o Propécia, contra a careca, a coorte dos antidepressivos etc. Os fármacos que cuidam de nossa performance social são os mesmos que sustentam a indústria farmacêutica. Estamos sempre dispostos a gastar para o sorriso, a cabeleira, a ereção poderosa e agora o lábio glabro. Não é por vaidade. Cultuamos as aparências porque são cruciais: elas decidem nossa posição no mundo, nosso sucesso ou fracasso: triste e peluda para baixo, sociável e depilada para cima.

Mas esse culto das aparências nos torna vulneráveis: nosso cinismo não resiste à aparência da dor. É suficiente lembrar o espectro das vítimas da tsé-tsé para que produzir eflornitina se torne uma exigência moral. As madames exibirão seus lábios glabros em campanhas para angariar fundos contra a mosca e seu parasita.

Somos constituídos pelas aparências, por isso as aparências nos afetam. Nosso cinismo redime-se por ser hipersensível às primeiras páginas. É por isso que a ajuda às vítimas é a grande especialidade ética de nossa cultura. Não sabemos decidir o que é justo e o que é errado. Perseguimos sempre nossos interesses particulares, mas reagimos à visão de feridas abertas. Dito de maneira mais incômoda e mais próxima: só queremos arrasar, mas somos voluntários para ajudar as crianças de rua e abrigar os mendigos. Nosso senso moral é como nossas vidas: cosmético. Bom, melhor do que nada.

PS: O novo presidente americano, apresentando-se como um "conservador compassivo", talvez tenha definido um traço dominante da personalidade ocidental moderna. Talvez tenha achado também uma maneira aceitável de confessar que somos, geralmente, cínicos e mídia-sensíveis.

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