quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

O saber dos poucos e o dos muitos


Na era do darwinismo digital das idéias, o jeito de sobreviver é fazer barulho, ocupar espaço

NAS ÚLTIMAS semanas, revisei manuscritos em inglês e em português. Em português, sou enganado pelo meu passado francófono. Em inglês, meu ouvido está enferrujado.


Nos dicionários, a gente nunca encontra exemplos que confirmem exatamente a legitimidade da expressão que queremos usar. Ou, pior, a gente confia em exemplos antigos e acaba usando expressões esquisitas porque Machado já as usou. Fazer o quê? Posso recorrer à internet.

Quero saber se uma regência nominal é "boa"? É só digitá-la entre aspas na barra do Google e repetir a experiência com regências alternativas. Adotarei a mais usada.

É claro, dessa forma, a freqüência do uso sempre valerá mais que a regra. Mas, afinal, em matéria de gramática, o que é a regra, se não a formalização do uso?

Por esse caminho, a longo prazo, acabaremos escrevendo à força de clichês, numa língua empobrecida. Não seria muito grave (sempre haverá poetas para inventar novos jeitos de se expressar) se uma coisa parecida não acontecesse com as idéias. Como assim?

Saiu, em 2007, "The Culture of the Amateur" (a cultura do amador), de Andrew Keen. Keen não é um tecnófobo; ao contrário, é uma figura do Vale do Silício e colabora com publicações on-line. Apesar disso (ou por causa disso), ele escreveu uma ata de acusação contra a constituição e a difusão do saber na internet.

Resumindo: estamos na era do darwinismo digital das idéias, em que o jeito de sobreviver é fazer barulho, ocupar espaço. O sonho de uma informação produzida pelos próprios cidadãos, sem intermediários, desaguou no pesadelo de centenas de milhões de cidadãos escrevendo indiscriminadamente sobre qualquer aspecto do passado, do presente e do futuro do mundo (segundo os cálculos de Keen, nasce um blog a cada segundo).

Nunca foi tão fácil plantar notícias falsas e criar consensos ao redor de opiniões estapafúrdias: a difusão multiplica a crença, e a crença dos muitos vira autoridade. Um exemplo: logo depois da inundação de Nova Orleans, as notícias sobre estupros e assaltos no Superdome (onde se hospedavam os refugiados) foram plantadas na net; os jornais acreditaram e repercutiram.


A legislação está perplexa e impotente: mesmo nos EUA, onde é fácil perseguir a imprensa escrita por calúnia, é quase impossível se defender das "notícias" on-line. Quem dispõe de meios técnicos básicos pode manipular qualquer informação, destruir impunemente a reputação de um candidato e por aí vai.

Prova pelo contrário: nos EUA, nas pós-graduações em jornalismo, é regra que nenhum fato pode ser considerado conferido só por ter sido "encontrado", mesmo repetidamente, na internet. As próprias páginas on-line dos jornais são suspeitas: um hacker médio consegue facilmente construir uma "sombra", que imita perfeitamente a página que você imagina estar consultando.


Recebi recentemente, por e-mail, uma coluna "minha" que nunca escrevi. No e-mail, ela aparecia como um "copia e cola" da página on-line do caderno Ilustrada da Folha da quinta anterior. Fato curioso: o texto não afirmava nada de extravagante, nada que eu não pudesse assinar.


Em suma, Keen tem razão. Seus alertas contra o "saber" duvidoso espalhado pelo Google, pela Wikipédia e pela simples proliferação da rede são justificados.

No entanto, seu livro lembra os gritos de alerta que surgiram, no começo do século 19, contra as possíveis perversões da democracia (e, por exemplo, o barateamento do custo da impressão de libelos anônimos). A idéia era que o clamor dos muitos emudeceria a voz dos poucos sábios que, de fato, sabem do que eles falam.

Não há como discordar. Mas resta que, a cada vez que encontro um argumento contra a desordem produzida pela livre e louca circulação de informações e pensamentos, ocorre-me o seguinte: num tribunal, se você for processado um dia, por quem preferirá ser julgado?
Pela expertise (sem ironia) de um juiz ou pela atrapalhada mistura de razões, convicções e sentimentos que animam os membros de um júri popular?

Eu preferiria o júri. Assim como ainda prefiro a bagunça da internet ao privilégio exclusivo de autoridades instituídas. Desejo a todos um 2008 fascinante, confuso e variado como a net -apenas corrigido pela capacidade (e o prazer) de separar, de vez em quando, o joio do trigo.

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