domingo, 2 de dezembro de 2007

Imagens a bordo de um táxi

Como nas eleições, as pessoas preferem lidar com complôs do que reconhecer o seu próprio destino

1. É frequente que o primeiro da classe, aquele que estúpida e invejosamente os outros chamam de CDF, um dia seja seduzido pelo malandro da classe e acabe aceitando, por exemplo, de acender com ele um cigarro na hora do recreio. Normalmente, o primeiro irá sozinho para a secretaria, pois o malandro saberá cair fora.

É banal que, na adolescência, um menino suponha que a glória social, aquela que lhe abriria as portas do mundo dos homens verdadeiros (ironia), seja uma transgressão, mesmo e sobretudo se descoberta e devidamente punida. Qual melhor marca do macho do que uma tatuagem de presidiário?

Assim, a única questão séria que coloca a recente história do ex-ministro Ricupero concerne não a ele, nem ao que ele disse (que, na verdade, para quem leu a íntegra, é pouca coisa), mas ao nosso país. Que tipo de imagem de virilidade nossa cultura promove, se, para se fazer valer frente a um jornalista –membro de sua família–, um ministro escolhe, como forma de cumplicidade, aparecer e se dizer mais malandro do que ele é?

2. Domingo, no começo da tarde, em Porto Alegre, vou para o aeroporto. Com o motorista de táxi se estabelece uma cumplicidade: juntos, lamentamos as coisas que, supõe-se, ambos adoraríamos estar fazendo. Entoamos um coro sobre os prazeres dos intermináveis churrascos caseiros do domingo, a cervejinha, a costela e por aí vai.

De fato, se ele está trabalhando e eu viajando, talvez na verdade ele compartilhe comigo a ojeriza às conversas vazias de tios e tias, uma antipatia certa pela costela gorda e em geral por toda carne assada coberta (contra qualquer lógica culinária) de sal grosso, e talvez enfim deteste a estupidez e o torpor desta caricatura de descanso.

Mas a imagem do churrasco é o lugar comum do qual dispomos, às pressas, para comungar.

O catálogo das imagens, que constituem os estereótipos comuns do prazer como do dever, é o dicionário dos valores dominantes, a lista, não necessariamente dos deuses aos quais sacrificamos, mas dos deuses em cujo culto nos reconhecemos. O acordo tácito, subentendido sobre estas imagens cimenta nossa vida social. E comanda uma série de escolhas, naturalmente.

3. Depois de descer em São Paulo, outro táxi e outro motorista. As eleições monopolizam a conversa. Milagrosamente, entre Guarulhos e a avenida Faria Lima, ele consegue conciliar uma eloquente indignação contra a classe política corrupta, negligente da coisa pública, desprovida de toda moral republicana, com um irreverente e malandro elogio da sonegação.

Nenhuma contradição: as duas imagens coexistem no céu dos valores sociais. A contradição só surgiria se a referência comum que sua conversa procura fosse, não uma imagem, mas um símbolo qualquer. Em outras palavras, se a referência procurada fosse um valor abstrato, aí a moralidade seria contraditória com a malandragem. As imagens, aparentemente, desconhecem estas dificuldades lógicas. Cada uma vale por si só, à simples condição de ser coletivamente admirada.

4. De novo indo de táxi, inúmeras vezes desde o lançamento do Plano Real, volta exatamente a mesma questão: ``Você acha que vai dar certo?'' Não é uma questão que mobilize um critério científico ou moral (se tal fosse o caso, ela se formularia: ``você acha que o plano é ou está certo?''). Também não é um esforço da imaginação para entrever futuros possíveis (que se formularia: ``no que você acha que poderia dar?''). Qualquer uma destas duas versões da pergunta, aliás, suporia um conhecimento e uma experiência do plano, assim como da realidade que ele pretende transformar.

De fato, a pergunta tantas vezes repetida reduz o futuro a uma simples aposta, torna a realidade uma espécie de absconsa estranheza sobre a qual só um lance de sorte poderia agir, e enfim necessariamente transforma o ministro e candidato em um santinho.

A coisa vale, aliás, para todos os candidatos: qual é o santinho que dá sorte? As imagens –banalidade, esta, repetida até o enjôo em época de eleições– prevalecem sobre critérios e projetos. Menos banal é notar que a prevalência do santinho implica uma dupla desistência: espera-se que a realidade mude por milagre e deixa-se de imaginar o futuro.

A imagem, com efeito, abole o tempo. Ela é um ato de fé em uma espécie de eterno instante, como nos devaneios dos adolescentes que podem se imaginar adultos conformes ao ideário de todos os sucessos sem pensar um instante no como e a que preço se chega lá.

5. A modernidade é paranóica. Desde o século 18, atrás do destino ou da ordem –tradicional ou sagrada– das coisas, nossa leitura do mundo aprende a descobrir a figura de um semelhante, um homem como nós, que nos oprime. É uma das grandes novidades da Ilustração. Esta nova visão do mundo acelerou a história. Se os artífices de nossas infelicidades são nossos semelhantes, podemos nos revoltar, combatê-los. Mas esta aceleração tem um preço.

A frustração se torna a única falta que reconhecemos: o que não temos é sempre e só aquilo de que um outro nos frustra. Marxismo e psicanálise produziram esforços notáveis para corrigir a tendência. Manifestamente em vão: o capitalismo, complexa ordem de nossas sociedades, continua nos aparecendo como a maléfica invenção dos capitais e nossas dificuldades subjetivas mais frequentemente nos aparecem como a suma aritmética das injustiças que os pais nos fizeram em nossa infância indefesa.

É um bom jeito de tirar o corpo fora. Não somos nunca nós, são os outros. O mundo é o teatro das injustiças que sofremos. De repente, o que ganhamos em perspectivas de ação, perdemos em entendimento e em experiência. Do que acontece somos sempre as vítimas (inocentes).

Assim, por exemplo, é quase unânime o coro das vítimas das mídias nesta última eleição. Com algumas exceções (por exemplo um recente notável artigo de Tarso Genro, na Folha de 7/10), prefere lidar com complôs e manipulações do que se reconhecer envolvidos em seu próprio destino.

Qualquer teoria séria das mídias sugeriria que, na verdade, os meios de comunicação de massa tentam oferecer a seus espectadores, em primeiro lugar, as imagens nas quais estes mais querem se espelhar.

Talvez por isso mesmo, aliás, nossa relação com as mídias seja facilmente paranóica. De fato, as imagens que elas nos apresentam, para que possamos refleti-las como tantos espelhos, acabam nos perseguindo. É em relação a elas que medimos nossa inadequação, elas constituem um assíduo e frustrante dever. Na ausência de princípios reguladores, são a versão moderna do que a psicanálise chama de superego.

6. As dificuldades econômicas do Terceiro Mundo parece que são, desde sempre, responsabilidade do Primeiro e sobretudo dos Estados Unidos. Talvez a responsabilidade não esteja lá onde nossa paranóia a procura e encontra, ou seja, na avidez dos ``banqueiros de Londres'', dos quais já falava Mário de Andrade. Talvez ela esteja na inevitável modernidade de nosso Terceiro Mundo: somos, tanto quanto o Primeiro, dominados por imagens. Mas, à diferença do Primeiro, não produzimos imagens, mas adotamos as do primeiríssimo mundo. Por este caminho, aliás, o próprio Primeiro Mundo como um todo se torna nossa imagem ideal.

Isso é suficiente para que nosso imperativo não seja mais o desenvolvimento, mas a imediata adequação a sua imagem. Assim, não nos desenvolvemos. Nos transformamos em caricaturas de desenvolvidos, logo todos de celular porque não há rede telefônica. A pressão narcísica de uma imagem realizada de desenvolvidos impede e atrasa o desenvolvimento. O imperativo de ``chegar no Primeiro Mundo'' (vide Collor, mas também as ambições, por certos aspectos, do discurso de Celso Amorim na ONU) pode acabar na distribuição de gravatas de Hermès na cestas básicas da LBA.

Em suma, o Primeiro Mundo talvez nos estrangule um pouco ou mesmo muito, política e economicamente, mas sua imagem, que adoramos, faz mais e pior. Ela nos pára no meio do caminho com a ilusão de que uma boa mascarada vale qualquer chegada.

Uma parte da desconfiança ou mesmo do ódio que os EUA, por exemplo, parecem às vezes inspirar no Terceiro Mundo é certamente ódio de nossa própria paixão por sua imagem, que nos persegue.

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