Nos anos 70, na França, descobri um estranho fenômeno: a cada ano, cidadãos adultos, em número significativo, mas incerto (na casa dos milhares), sumiam, simplesmente.
Alguns, ao sumirem, cometiam um crime: paravam de pagar dívidas, abandonavam crianças etc. Esses eram contabilizados e procurados ativamente. No entanto, a maioria deixava apenas seus amigos, parentes e conhecidos um pouco (ou muito) preocupados. A polícia, uma vez avisada, registrava a ocorrência, mas não sabia bem o que fazer. Na ausência de um delito, investigar o quê? Mesmo se uma investigação tivesse êxito, por que a polícia comunicaria a quem que fosse o novo paradeiro do "desaparecido"?
A lei nos dá o direito de sumir, sem dever explicações para ninguém. E, de fato, pelo mundo afora (não só na França, é óbvio), há pessoas que, um belo dia, vão embora.
A idéia já me passou pela cabeça. Aliás, ela me tenta a cada vez (e foram muitas vezes, nos últimos anos) em que empacoto ou desempacoto a incrível quantidade de trastes que levo comigo nas mudanças, objetos de "valor afetivo", papéis misteriosos guardados porque "nunca se sabe", fotografias, cartas: o amontoado de contratos puramente simbólicos que me ligam (de uma maneira mais ou menos tolerável) ao meu passado e aos outros.
Essa tentação de sumir pelo vasto mundo me parece expressar a vontade de nascer de novo e, se possível, desta vez, debaixo de um repolho -sem dever nada a ninguém.
Pois é, se essa idéia passou alguma vez por sua cabeça, não perca, sob nenhum pretexto, o novo filme de Wim Wenders, "Estrela Solitária", que estreou na sexta-feira passada. E, se a dita idéia nunca lhe ocorreu, também não perca: no mínimo, o filme (que é uma obra-prima) será de grande ajuda para entender quem é o seu vizinho (às vezes, mais vizinho do que você imagina) que pensa em fugir da vida que ele tem.
Como disse, eu entendia a tentação da fuga como uma vontade de zerar as contas e de recomeçar. Em suma, achava que eu quisesse fugir para o futuro.
Mas o filme de Wenders propõe um caso diferente ou, então, uma interpretação diferente, que poderia valer para todos os fugitivos, ou para sua maioria (inclusive para mim). Por mais que a fuga manifeste uma vontade de recomeçar, sua direção não é necessariamente o futuro; pode ser o passado. Foge-se não só do peso das obrigações acumuladas ao longo da vida, mas também (e talvez sobretudo) de sua insuficiência. Foge-se, por exemplo, na procura daqueles fios que deixamos cair ao longo da estrada e que poderiam ter ligado nossa vida aos outros de uma maneira que valesse a pena.
O protagonista de Wim Wenders (Sam Shepard, que co-assina o roteiro) não corre atrás de uma liberdade perdida. Ao contrário, ele descobre um dia que sua vida foi bem animada e, por isso mesmo, passou sem que ele se desse conta, sem deixar rastos, sem construir laços. E foge para o passado.
Alguém lhe pergunta, num momento crucial do filme: "Do you want to be related?". A frase não pode ser traduzida de maneira sintética, ela não significa apenas "Você quer ser parente de alguém?" (a legenda, no caso, está francamente errada); a pergunta concerne à vontade ou não de estar na malha dos afetos, tristes ou alegres, que organizam uma existência e distribuem as obrigações que esses afetos acarretam. Ou seja, o sentido é: "Quer ou não viver com os outros?".
Logo depois desse momento, o protagonista passa uma noite sentado num sofá que, jogado anteriormente pela janela, está no meio de uma rua. Ele escuta as vozes humildes do cotidiano de quem vive com os outros, as conversas, os gritos, os suspiros ofegantes do amor.
É difícil escolher: podemos viver como heróis de filme de bangue-bangue, entre um adeus cinematográfico ("Não chore, querida, voltarei antes de a neve cair") e uma volta tão cinematográfica quanto o adeus (apareceremos no horizonte, montados num cavalo branco ou numa velha Packard, tanto faz). Ou, então, podemos viver sem cenas triunfais, no murmúrio do dia-a-dia, que nem sempre é engraçado, mas no qual os que estão ao redor de nós podem justificar nossa existência, dar-lhe um sentido que não seja apenas espetacular.
Ou seja, podemos viver para sermos as "estrelas solitárias" do filme de nossa vida ou deixar que os outros nos enredem num emaranhado que será menos glorioso.
Apartes:
1 - Apesar de meu último parágrafo, continuo pensando que o título original, "Don't Come Knocking" (literalmente: não venha bater na minha porta), mereceria uma tradução melhor.
2 - Diante da morna reação de alguns críticos, fico perplexo. Não sei se devo me surpreender com a incapacidade de enxergar a extraordinária qualidade cinematográfica do filme (a luz fria que bate nas ruas de Butte, Montana, parece a extensão dos melhores quadros de Edward Hopper, quando ele pintava o enigma da solidão americana) ou se devo me surpreender com a incapacidade de reconhecer no roteiro uma meditação terna, divertida e profunda sobre um dilema fundamental da subjetividade contemporânea.
quinta-feira, 27 de abril de 2006
quinta-feira, 20 de abril de 2006
Meu jeito de ser crítico (e um pedido para "Filhos do Carnaval")
Meus amigos se queixam: assistir a um filme comigo é uma chatice. É raríssimo que eu saia de um espetáculo disposto a compartilhar críticas alegremente demolidoras.
Minha atitude básica é sempre um preconceito favorável, uma gratidão pelo trabalho de quem escreveu, atuou, dirigiu, montou, editou. Além disso, o esforço para entender e para gostar me parece mais prazeroso e mais "rentável".
Quando era criança, às vezes, um adulto preparava uma "surpresa" (uma mesa posta especialmente para meu aniversário ou uma cestinha de ovos de chocolate para a Páscoa) e me pegava pela mão: "Venha comigo e feche os olhos". Na grande maioria dos casos, não havia surpresa nenhuma; eu já tinha entrevisto os preparativos, alguém chegara em casa no dia anterior com os ovos nos braços. Pior ainda, nada daquilo correspondia ao que eu desejava: a festa de aniversário seria estereotipada e chata, os ovos nunca eram do chocolate de que eu gostava e, de qualquer forma, teria preferido brincar no terreno baldio ao lado de casa.
Podia escolher: dava a mão e fechava os olhos ou, numa declaração de independência, manifestava que eu era grande demais para aquela surpresa "idiota".
Pode ser que desse a mão por preguiça e submissão. Mas acho que me deixava levar porque era mais divertido e instrutivo. Descobria assim o que os adultos imaginavam que fosse a felicidade de uma criança, aprimorava meu entendimento do que eles queriam comigo. Ter acesso ao desejo dos adultos me interessava mais do que me proclamar experto, recusando-me a cair em suas encenações.
Com livros, filmes, peças de teatro, acontecia a mesma coisa. No mínimo, deixando-me seduzir, tentando gostar, descobria (ou imaginava descobrir) para onde o autor queria me levar.
Mais tarde, duas idéias confirmaram essa disposição. Estudando filosofia (kantiana), aprendi que criticar não significa apenas aprovar ou reprovar, mas sobretudo entender como uma obra se tornou possível e, para seu autor, necessária. Estudando psicanálise, adotei uma idéia de Lacan: quem mais se engana é quem emprega sua energia para evitar ser enganado.
Quando, apesar de meus esforços, não consigo gostar de uma obra nem um pouco, prefiro me calar. Os comentários negativos dariam, eventualmente, prova de minha argúcia, mas não diriam nada que prolongasse a obra de maneira a torná-la mais rica, para mim e para os outros. Uma exceção: quando o lugar para onde o autor me leva ou seu jeito de me pegar me indignam, aí grito.
Nesta semana, estreou "Árido Movie", de Lírio Ferreira. Os amigos que foram ao cinema comigo acharam o filme engraçado (e é mesmo), mas saíram criticando: segundo eles, o filme "se perde" entre várias histórias.
Há a história do paulistano que volta ao sertão de Pernambuco para enterrar o pai. Há a história de seus amigos, que querem acompanhá-lo e transformam essa nobre missão numa balada maconheira. Há a história da cineasta que percorre o árido para filmar a água que não tem. Há as histórias de vendeta e cobiça. Há a sabedoria do Meu Velho, que não se sabe se ilumina o sertão ou lucra com a seca. E por aí vai.
Ora, para mim, a curiosa variedade dos enredos é o interesse do filme, pois ela corresponde ao catálogo dos diversos caminhos pelos quais sempre se aventura nossa visão do sertão: a suposição idealizada e nostálgica de sei lá qual sabedoria, o fascínio pelo atraso e por suas tradições violentas, a sedução de um cenário insólito para nossas festinhas etc. Em suma, não é o filme, mas o sertão (seu tema) que se perde por esses caminhos, tornando-se tema inesgotável de ficções, romances, poemas e "instalações" de artistas modernosos.
Quem tem razão: meus amigos ou eu? Não sei, mas fico com a impressão de que eu saí ganhando.
Outro assunto. Nas últimas semanas, assisti, na HBO, a um seriado de seis capítulos, "Filhos do Carnaval", de Cao Hamburger. Faço um pedido à produtora, a Gilberto Gil, à HBO, aos donos de salas de cinema e ao próprio Cao Hamburger: por favor, não deixem que esse extraordinário seriado seja apenas a sorte de quem tem televisão a cabo, assina HBO e conseguiu liberar suas noites de domingo. Distribuam em DVD, passem de novo na TV aberta, transformem em dois filmes de três horas cada um. Dêem um jeito.
"Filhos do Carnaval" é uma das melhores obras dos últimos anos. Raramente a televisão e o cinema nacional conseguiram uma excelência narrativa e formal equivalente. Quem viu não esquece a agilidade da câmara e o uso de uma cor sem tons vermelhos, que dá ao filme uma qualidade dramática parecida com a do melhor preto-e-branco. A narrativa, sem psicologismos, é por isso mesmo estranhamente profunda. O resultado é cativante.
Mais um detalhe: Cao Hamburger demonstra que, quando um filme é grande, a questão de saber se ele "glamouriza" ou não seus personagens (pouco exemplares, de fato) é sem pertinência. Pois eles nos conquistam e nos fazem sonhar sem que tenhamos a menor vontade de ser como eles.
Minha atitude básica é sempre um preconceito favorável, uma gratidão pelo trabalho de quem escreveu, atuou, dirigiu, montou, editou. Além disso, o esforço para entender e para gostar me parece mais prazeroso e mais "rentável".
Quando era criança, às vezes, um adulto preparava uma "surpresa" (uma mesa posta especialmente para meu aniversário ou uma cestinha de ovos de chocolate para a Páscoa) e me pegava pela mão: "Venha comigo e feche os olhos". Na grande maioria dos casos, não havia surpresa nenhuma; eu já tinha entrevisto os preparativos, alguém chegara em casa no dia anterior com os ovos nos braços. Pior ainda, nada daquilo correspondia ao que eu desejava: a festa de aniversário seria estereotipada e chata, os ovos nunca eram do chocolate de que eu gostava e, de qualquer forma, teria preferido brincar no terreno baldio ao lado de casa.
Podia escolher: dava a mão e fechava os olhos ou, numa declaração de independência, manifestava que eu era grande demais para aquela surpresa "idiota".
Pode ser que desse a mão por preguiça e submissão. Mas acho que me deixava levar porque era mais divertido e instrutivo. Descobria assim o que os adultos imaginavam que fosse a felicidade de uma criança, aprimorava meu entendimento do que eles queriam comigo. Ter acesso ao desejo dos adultos me interessava mais do que me proclamar experto, recusando-me a cair em suas encenações.
Com livros, filmes, peças de teatro, acontecia a mesma coisa. No mínimo, deixando-me seduzir, tentando gostar, descobria (ou imaginava descobrir) para onde o autor queria me levar.
Mais tarde, duas idéias confirmaram essa disposição. Estudando filosofia (kantiana), aprendi que criticar não significa apenas aprovar ou reprovar, mas sobretudo entender como uma obra se tornou possível e, para seu autor, necessária. Estudando psicanálise, adotei uma idéia de Lacan: quem mais se engana é quem emprega sua energia para evitar ser enganado.
Quando, apesar de meus esforços, não consigo gostar de uma obra nem um pouco, prefiro me calar. Os comentários negativos dariam, eventualmente, prova de minha argúcia, mas não diriam nada que prolongasse a obra de maneira a torná-la mais rica, para mim e para os outros. Uma exceção: quando o lugar para onde o autor me leva ou seu jeito de me pegar me indignam, aí grito.
Nesta semana, estreou "Árido Movie", de Lírio Ferreira. Os amigos que foram ao cinema comigo acharam o filme engraçado (e é mesmo), mas saíram criticando: segundo eles, o filme "se perde" entre várias histórias.
Há a história do paulistano que volta ao sertão de Pernambuco para enterrar o pai. Há a história de seus amigos, que querem acompanhá-lo e transformam essa nobre missão numa balada maconheira. Há a história da cineasta que percorre o árido para filmar a água que não tem. Há as histórias de vendeta e cobiça. Há a sabedoria do Meu Velho, que não se sabe se ilumina o sertão ou lucra com a seca. E por aí vai.
Ora, para mim, a curiosa variedade dos enredos é o interesse do filme, pois ela corresponde ao catálogo dos diversos caminhos pelos quais sempre se aventura nossa visão do sertão: a suposição idealizada e nostálgica de sei lá qual sabedoria, o fascínio pelo atraso e por suas tradições violentas, a sedução de um cenário insólito para nossas festinhas etc. Em suma, não é o filme, mas o sertão (seu tema) que se perde por esses caminhos, tornando-se tema inesgotável de ficções, romances, poemas e "instalações" de artistas modernosos.
Quem tem razão: meus amigos ou eu? Não sei, mas fico com a impressão de que eu saí ganhando.
Outro assunto. Nas últimas semanas, assisti, na HBO, a um seriado de seis capítulos, "Filhos do Carnaval", de Cao Hamburger. Faço um pedido à produtora, a Gilberto Gil, à HBO, aos donos de salas de cinema e ao próprio Cao Hamburger: por favor, não deixem que esse extraordinário seriado seja apenas a sorte de quem tem televisão a cabo, assina HBO e conseguiu liberar suas noites de domingo. Distribuam em DVD, passem de novo na TV aberta, transformem em dois filmes de três horas cada um. Dêem um jeito.
"Filhos do Carnaval" é uma das melhores obras dos últimos anos. Raramente a televisão e o cinema nacional conseguiram uma excelência narrativa e formal equivalente. Quem viu não esquece a agilidade da câmara e o uso de uma cor sem tons vermelhos, que dá ao filme uma qualidade dramática parecida com a do melhor preto-e-branco. A narrativa, sem psicologismos, é por isso mesmo estranhamente profunda. O resultado é cativante.
Mais um detalhe: Cao Hamburger demonstra que, quando um filme é grande, a questão de saber se ele "glamouriza" ou não seus personagens (pouco exemplares, de fato) é sem pertinência. Pois eles nos conquistam e nos fazem sonhar sem que tenhamos a menor vontade de ser como eles.
quinta-feira, 13 de abril de 2006
O verdadeiro petista
A vida moderna é cansativa. Não estou pensando na correria, na competição forçada, na expectativa constante de crescimento (aprenda mais, ganhe mais, compre mais, namore mais, transe mais, "seja" mais).
Tudo isso pode, de alguma forma, ser administrado, mas sem grande resultado: o cansaço permanece. Por quê?
A explicação é simples: não é a vida, é a subjetividade moderna que é cansativa. Já faz séculos que vivemos, no fundo, sem regras. Claro, há hábitos morais e princípios nos quais acreditamos, mas, justamente, eles valem só porque queremos respeitá-los.
Todas nossas escolhas, em última instância, são questões de foro íntimo; nós devemos decidir, a cada instante, se o que é legal ou conforme aos costumes coincide com o que NOS parece certo ou justo. Agir segundo os costumes e a lei não basta para justificar nem para desculpar. "Fiz assim porque é o que todos fazem ou porque assim manda a lei", para nós, não é uma razão suficiente, visto que respeitar os costumes ou a norma é uma escolha nossa.
Na clínica psicoterápica, aliás, constata-se que as culpas dolorosas não são as culpas por ter transgredido leis e costumes, mas as culpas por ter deixado de escutar nossa voz interior, por ter deixado de seguir nosso desejo ou nossa consciência moral.
Em suma, o que é extenuante, na modernidade, é ser sujeito.
A esse cansaço responde uma nostalgia de tempos passados, em que as regras e a tradição se encarregariam de decidir por nós: apelos aos "valores" perdidos, aspirações a uma vida simples e rural, vocações monásticas.
Mas a grande "cura" desse cansaço é oferecida pelas paixões de grupo, que afogam nossa incerteza no funcionamento coeso de uma coletividade onde esqueceríamos a tarefa de sermos sujeitos para sermos apenas (alívio) funcionários exemplares. Uma vez que estivermos perdidos no grupo, a extenuante pergunta íntima sobre o bem e o mal poderá ser substituída pela questão, mais simples: "Agimos ou não como o grupo manda? Fomos ou não seus instrumentos adequados?".
Os grupos que preenchem essa função estão ao serviço da covardia do sujeito: "A tarefa de decidir no foro íntimo é cansativa? Pois bem, há grupos que oferecem férias, férias da subjetividade".
Um exemplo: um bando de torcedores cruza alguém que se aproxima do estádio com uma bandeira do time oposto. Um torcedor do bando arranca a bandeira das mãos do "inimigo". Em seu estado normal, longe do grupo, o torcedor poderia se perguntar: "Quem sou eu? Um sujeito com história, família, valores, pensamentos próprios? Ou me defino apenas como um torcedor? Quem dita meus atos é minha complexa subjetividade ou o grupo ao qual pertenço hoje?".
A história fornece exemplos menos inócuos.
Há as palavras de Stálin aos camaradas que mostravam um certo desconforto na hora de arrancar aos camponeses russos seus míseros meios de subsistência: elas fazem apelo à necessidade, para os bolcheviques, de serem, como se dizia, "homens de ferro", ou seja, homens de palha de um grupo que os aliviava da responsabilidade de seus atos ("Stálin, a Corte do Czar Vermelho", de Simon Montefiore, acaba de sair em português; é imperdível).
Há o famoso discurso de Himmler aos oficiais SS que se dedicariam à "solução final": salienta a necessidade de eles se mostrarem "à altura" da tarefa genocida, ou seja, de esquecerem os escrúpulos, as compaixões e aquelas "picuinhas" que atormentam e cansam a subjetividade moderna, para que pudessem "ser" SS e exterminar sem "fraquezas".
Dediquei meu doutorado à sedução que é exercida pelos grupos que autorizam seus membros a descansar e a desistir de sua subjetividade. Mantive a tese inédita talvez porque sua questão central me parecesse pertencer a uma outra época, à época "passada" dos totalitarismos.
Pois bem, acho que vou mudar de idéia graças ao deputado Jorge Bittar, que, nestes dias, mostrou-me que a questão continua viva e urgente. A tentação de sacrificar "escrúpulos" morais, de esquecer o foro íntimo e deixar o grupo decidir por nós não é coisa do passado. Está dormindo num canto, esperando momentos propícios.
Jorge Bittar, deputado do PT, não gostou do relatório da CPI dos Correios (ou seja, achou que o relatório não era partidário como ele queria que fosse) e xingou o senador Delcídio Amaral, presidente da dita CPI, também do PT. Além das palavras chulas -as quais substituem uma violência que, num Estado democrático, não pode ser física (não dá para eliminar Delcídio, eh?)-, ele disse (frase impagável) que o senador não se portou "como um verdadeiro petista".
Para quem desiste de ser sujeito para se fazer instrumento do grupo, o outro, o que escuta seu foro íntimo, é um "traidor".
Não é a Câmara, mas o PT que deve condenar oficialmente as palavras de Jorge Bittar. Ou então deveremos entender que o PT é um daqueles grupos que oferecem férias à subjetividade de seus membros, ou seja, que pedem que eles ajam não segundo a complexidade da consciência, não segundo o que lhes parece certo ou errado, mas só como instrumentos ao serviço do partido.
Tudo isso pode, de alguma forma, ser administrado, mas sem grande resultado: o cansaço permanece. Por quê?
A explicação é simples: não é a vida, é a subjetividade moderna que é cansativa. Já faz séculos que vivemos, no fundo, sem regras. Claro, há hábitos morais e princípios nos quais acreditamos, mas, justamente, eles valem só porque queremos respeitá-los.
Todas nossas escolhas, em última instância, são questões de foro íntimo; nós devemos decidir, a cada instante, se o que é legal ou conforme aos costumes coincide com o que NOS parece certo ou justo. Agir segundo os costumes e a lei não basta para justificar nem para desculpar. "Fiz assim porque é o que todos fazem ou porque assim manda a lei", para nós, não é uma razão suficiente, visto que respeitar os costumes ou a norma é uma escolha nossa.
Na clínica psicoterápica, aliás, constata-se que as culpas dolorosas não são as culpas por ter transgredido leis e costumes, mas as culpas por ter deixado de escutar nossa voz interior, por ter deixado de seguir nosso desejo ou nossa consciência moral.
Em suma, o que é extenuante, na modernidade, é ser sujeito.
A esse cansaço responde uma nostalgia de tempos passados, em que as regras e a tradição se encarregariam de decidir por nós: apelos aos "valores" perdidos, aspirações a uma vida simples e rural, vocações monásticas.
Mas a grande "cura" desse cansaço é oferecida pelas paixões de grupo, que afogam nossa incerteza no funcionamento coeso de uma coletividade onde esqueceríamos a tarefa de sermos sujeitos para sermos apenas (alívio) funcionários exemplares. Uma vez que estivermos perdidos no grupo, a extenuante pergunta íntima sobre o bem e o mal poderá ser substituída pela questão, mais simples: "Agimos ou não como o grupo manda? Fomos ou não seus instrumentos adequados?".
Os grupos que preenchem essa função estão ao serviço da covardia do sujeito: "A tarefa de decidir no foro íntimo é cansativa? Pois bem, há grupos que oferecem férias, férias da subjetividade".
Um exemplo: um bando de torcedores cruza alguém que se aproxima do estádio com uma bandeira do time oposto. Um torcedor do bando arranca a bandeira das mãos do "inimigo". Em seu estado normal, longe do grupo, o torcedor poderia se perguntar: "Quem sou eu? Um sujeito com história, família, valores, pensamentos próprios? Ou me defino apenas como um torcedor? Quem dita meus atos é minha complexa subjetividade ou o grupo ao qual pertenço hoje?".
A história fornece exemplos menos inócuos.
Há as palavras de Stálin aos camaradas que mostravam um certo desconforto na hora de arrancar aos camponeses russos seus míseros meios de subsistência: elas fazem apelo à necessidade, para os bolcheviques, de serem, como se dizia, "homens de ferro", ou seja, homens de palha de um grupo que os aliviava da responsabilidade de seus atos ("Stálin, a Corte do Czar Vermelho", de Simon Montefiore, acaba de sair em português; é imperdível).
Há o famoso discurso de Himmler aos oficiais SS que se dedicariam à "solução final": salienta a necessidade de eles se mostrarem "à altura" da tarefa genocida, ou seja, de esquecerem os escrúpulos, as compaixões e aquelas "picuinhas" que atormentam e cansam a subjetividade moderna, para que pudessem "ser" SS e exterminar sem "fraquezas".
Dediquei meu doutorado à sedução que é exercida pelos grupos que autorizam seus membros a descansar e a desistir de sua subjetividade. Mantive a tese inédita talvez porque sua questão central me parecesse pertencer a uma outra época, à época "passada" dos totalitarismos.
Pois bem, acho que vou mudar de idéia graças ao deputado Jorge Bittar, que, nestes dias, mostrou-me que a questão continua viva e urgente. A tentação de sacrificar "escrúpulos" morais, de esquecer o foro íntimo e deixar o grupo decidir por nós não é coisa do passado. Está dormindo num canto, esperando momentos propícios.
Jorge Bittar, deputado do PT, não gostou do relatório da CPI dos Correios (ou seja, achou que o relatório não era partidário como ele queria que fosse) e xingou o senador Delcídio Amaral, presidente da dita CPI, também do PT. Além das palavras chulas -as quais substituem uma violência que, num Estado democrático, não pode ser física (não dá para eliminar Delcídio, eh?)-, ele disse (frase impagável) que o senador não se portou "como um verdadeiro petista".
Para quem desiste de ser sujeito para se fazer instrumento do grupo, o outro, o que escuta seu foro íntimo, é um "traidor".
Não é a Câmara, mas o PT que deve condenar oficialmente as palavras de Jorge Bittar. Ou então deveremos entender que o PT é um daqueles grupos que oferecem férias à subjetividade de seus membros, ou seja, que pedem que eles ajam não segundo a complexidade da consciência, não segundo o que lhes parece certo ou errado, mas só como instrumentos ao serviço do partido.
quinta-feira, 6 de abril de 2006
Corpo e mente
No número de dezembro 2005 do "Archive of General Psychiatry" (vol. 62, nº 12), foi publicada uma pesquisa dirigida por Janice Kiecolt-Glaser, do Institute for Behavioral Medicine Research (instituto de pesquisa em medicina comportamental) da universidade de Ohio, EUA. Seu tema: as interações conjugais negativas e a cicatrização.
Foram escolhidos 42 casais, entre 22 e 77 anos. Nos braços de todos, maridos e mulheres, foram criadas oito pequenas feridas, que foram cobertas de maneira a medir as variações dos fluidos que o corpo produz para facilitar a cicatrização.
Depois disso, os casais foram expostos a duas sessões de "conversa". A primeira foi orientada para que fosse uma troca agradável sobre o que cada um queria modificar em seu comportamento para melhorar a vida do casal. A outra foi orientada para que os casais brigassem (temas preferidos: dinheiro e sogros).
A pesquisa constatou que a cicatrização era sempre mais lenta depois das brigas. Os casais mais briguentos mostraram uma cicatrização que era apenas 60% da dos outros.
É provável que os achados, já bem significativos, subestimem o impacto da hostilidade entre marido e mulher, pois se presume que, em casa, as crises dos casais briguentos sejam crônicas e mais violentas do que sob observação externa.
Conclusão: se você deve e pode programar uma operação, tente primeiro arrumar sua vida afetiva.
Conclusão mais genérica: a má qualidade de uma relação e sua desagregação agem no corpo e são péssimas para a saúde.
É um ovo de Colombo. Alguém poderia perguntar: por que essa pesquisa, se ela comprova uma obviedade que, intuitivamente, todos sabemos desde sempre?
Pois é, pesquisas como essa, aparentemente "inúteis", estão mudando, aos poucos, nossa visão de nós mesmos.
Durante os últimos quatro ou cinco séculos (no mínimo), fomos fundamentalmente dualistas. Ainda hoje, vivemos e pensamos como se a mente e o corpo fossem coisas separadas.
Graças a esse dualismo, nossa ciência se desenvolveu com eficácia e rapidez. Se tivéssemos enxergado as infecções como conseqüência de sortilégios ou males do espírito, não teríamos descoberto a existência de bactérias e os antibióticos para matá-las.
Mas o custo foi grande: uma incapacidade de reconhecer o sujeito como um todo, corpo e mente. Na medicina, admite-se a necessidade de atender com carinho e de escutar um pouco as queixas do paciente. Há médicos para reconhecer que o "estresse" faz mal ("Tire umas férias"). E há enfermidades para as quais "fatores psicológicos" são reconhecidos como causas possíveis: certos casos de pressão alta, algumas disfunções da tireóide e por aí vai. Mesmo nesses casos, o "psíquico" aparece como um fator que "contribui" à enfermidade e ele é quase sempre genérico (o termo "estresse", por exemplo, quer dizer tudo e nada).
A medicina não opera quase nunca com o pressuposto de que o "psíquico" seja, na verdade, uma parte do "físico". Curioso, pois ele é a experiência de transformações químicas e neurônicas que são impostas pelas circunstâncias da vida e que agem sobre o conjunto da subjetividade (corpo e mente).
Talvez as recentes pesquisas que descobrem o "óbvio" anunciem uma mudança cultural, um novo convívio entre mente e corpo -quem sabe, o fim de seu divórcio.
Parece que estamos, aos poucos, descobrindo que nossa subjetividade não é dividida entre corpo e mente. Nessa descoberta, aliás, a psicologia deveria ter a tarefa de definir e diferenciar afetos, emoções e relações com uma sutileza que corresponda à sutileza das tomografias computadorizadas e das análises bioquímicas. Seria bom parar de associar as alterações do cérebro e do corpo, finamente descritas, com platitudes psicológicas, como o fatídico "estresse".
Falando em pesquisas que descobrem o "óbvio", mais uma. No decorrer deste ano, a revista "Psychological Science" publicará uma pesquisa de James A. Coan e outros, que foi recentemente resumida na imprensa americana.
Foram escolhidos 16 casais muito felizes. A mulher de cada casal foi inserida num tubo de ressonância magnética e lhe foi dito que ela receberia uma leve descarga elétrica no tornozelo. As imagens do cérebro mostraram, em todas as mulheres, uma atividade intensa nas regiões envolvidas na expectativa de dor e emoções negativas. Foi suficiente que o marido inserisse a mão no tubo e tocasse sua mulher para que essa atividade cerebral diminuísse, sempre e drasticamente.
Conclusão: o toque de uma pessoa querida é curativo e modifica a atividade cerebral. Visto que a sensação de dor física é ligada ao nível de sua antecipação, uma mão amada pode ser considerada um sedativo eficiente.
Conclusão indireta: a rejeição total sem contato físico não é só uma punição psíquica, é também uma agressão contra o corpo -se é que faz sentido manter a distinção de corpo e mente.
Enfim, uma indicação: viver sem tocar os que a gente ama (por exemplo, criar filhos sem abraços e carinho) significa condená-los a uma dor que não é "só" psíquica.
Foram escolhidos 42 casais, entre 22 e 77 anos. Nos braços de todos, maridos e mulheres, foram criadas oito pequenas feridas, que foram cobertas de maneira a medir as variações dos fluidos que o corpo produz para facilitar a cicatrização.
Depois disso, os casais foram expostos a duas sessões de "conversa". A primeira foi orientada para que fosse uma troca agradável sobre o que cada um queria modificar em seu comportamento para melhorar a vida do casal. A outra foi orientada para que os casais brigassem (temas preferidos: dinheiro e sogros).
A pesquisa constatou que a cicatrização era sempre mais lenta depois das brigas. Os casais mais briguentos mostraram uma cicatrização que era apenas 60% da dos outros.
É provável que os achados, já bem significativos, subestimem o impacto da hostilidade entre marido e mulher, pois se presume que, em casa, as crises dos casais briguentos sejam crônicas e mais violentas do que sob observação externa.
Conclusão: se você deve e pode programar uma operação, tente primeiro arrumar sua vida afetiva.
Conclusão mais genérica: a má qualidade de uma relação e sua desagregação agem no corpo e são péssimas para a saúde.
É um ovo de Colombo. Alguém poderia perguntar: por que essa pesquisa, se ela comprova uma obviedade que, intuitivamente, todos sabemos desde sempre?
Pois é, pesquisas como essa, aparentemente "inúteis", estão mudando, aos poucos, nossa visão de nós mesmos.
Durante os últimos quatro ou cinco séculos (no mínimo), fomos fundamentalmente dualistas. Ainda hoje, vivemos e pensamos como se a mente e o corpo fossem coisas separadas.
Graças a esse dualismo, nossa ciência se desenvolveu com eficácia e rapidez. Se tivéssemos enxergado as infecções como conseqüência de sortilégios ou males do espírito, não teríamos descoberto a existência de bactérias e os antibióticos para matá-las.
Mas o custo foi grande: uma incapacidade de reconhecer o sujeito como um todo, corpo e mente. Na medicina, admite-se a necessidade de atender com carinho e de escutar um pouco as queixas do paciente. Há médicos para reconhecer que o "estresse" faz mal ("Tire umas férias"). E há enfermidades para as quais "fatores psicológicos" são reconhecidos como causas possíveis: certos casos de pressão alta, algumas disfunções da tireóide e por aí vai. Mesmo nesses casos, o "psíquico" aparece como um fator que "contribui" à enfermidade e ele é quase sempre genérico (o termo "estresse", por exemplo, quer dizer tudo e nada).
A medicina não opera quase nunca com o pressuposto de que o "psíquico" seja, na verdade, uma parte do "físico". Curioso, pois ele é a experiência de transformações químicas e neurônicas que são impostas pelas circunstâncias da vida e que agem sobre o conjunto da subjetividade (corpo e mente).
Talvez as recentes pesquisas que descobrem o "óbvio" anunciem uma mudança cultural, um novo convívio entre mente e corpo -quem sabe, o fim de seu divórcio.
Parece que estamos, aos poucos, descobrindo que nossa subjetividade não é dividida entre corpo e mente. Nessa descoberta, aliás, a psicologia deveria ter a tarefa de definir e diferenciar afetos, emoções e relações com uma sutileza que corresponda à sutileza das tomografias computadorizadas e das análises bioquímicas. Seria bom parar de associar as alterações do cérebro e do corpo, finamente descritas, com platitudes psicológicas, como o fatídico "estresse".
Falando em pesquisas que descobrem o "óbvio", mais uma. No decorrer deste ano, a revista "Psychological Science" publicará uma pesquisa de James A. Coan e outros, que foi recentemente resumida na imprensa americana.
Foram escolhidos 16 casais muito felizes. A mulher de cada casal foi inserida num tubo de ressonância magnética e lhe foi dito que ela receberia uma leve descarga elétrica no tornozelo. As imagens do cérebro mostraram, em todas as mulheres, uma atividade intensa nas regiões envolvidas na expectativa de dor e emoções negativas. Foi suficiente que o marido inserisse a mão no tubo e tocasse sua mulher para que essa atividade cerebral diminuísse, sempre e drasticamente.
Conclusão: o toque de uma pessoa querida é curativo e modifica a atividade cerebral. Visto que a sensação de dor física é ligada ao nível de sua antecipação, uma mão amada pode ser considerada um sedativo eficiente.
Conclusão indireta: a rejeição total sem contato físico não é só uma punição psíquica, é também uma agressão contra o corpo -se é que faz sentido manter a distinção de corpo e mente.
Enfim, uma indicação: viver sem tocar os que a gente ama (por exemplo, criar filhos sem abraços e carinho) significa condená-los a uma dor que não é "só" psíquica.
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