Salvo imprevistos, no domingo que vem, dia 30 de janeiro, os iraquianos irão às urnas.
Circula pela internet um áudio de dois minutos, em que o terrorista jordaniano Abu Musab al Zarqawi, ligado à Al Qaeda, opõe-se às eleições, ameaçando eleitores e candidatos: "Nós declaramos uma guerra amarga contra o princípio de democracia e contra todos os que seguem essa ideologia errada. Qualquer um que tente ajudar esse sistema é parte disso". Como explicou a reportagem da Folha na segunda-feira passada, para Al Zarqawi, o sistema democrático "seria uma forma de substituir as leis de Deus pelas leis dos homens e da maioria, baseada em princípios não-islâmicos, como liberdade de religião e expressão e separação entre a religião e o Estado". Nas palavras de Al Zarqawi: "Os que votam são infiéis".
Nas eleições, é previsível a vitória dos xiitas, que constituem o 60% da população do Iraque. Mesmo abrandado, o projeto xiita é o mais próximo do que deseja Al Zarqawi. Então, por que ele não está feliz?
É que o terrorista jordaniano não se preocupa com o resultado de domingo. Ele odeia o próprio processo eleitoral e a idéia de democracia.
Para quem concorda com Samuel Huntington no "Choque de Civilizações", é mais uma "prova" de que o islamismo e o mundo árabe seriam culturalmente alérgicos às idéias ocidentais e modernas de autogoverno, de pacto social, de liberdade.
As culturas, às vezes, podem se opor radicalmente. Mas, no caso que nos interessa, não estou convencido de que exista uma incompatibilidade formal entre o Islã ou a cultura árabe e as idéias de democracia, liberdade e Estado laico. Mas há, isso sim, uma razão histórica específica que pode tornar qualquer idéia ocidental detestável no mundo islâmico e árabe. Mas vamos com calma.
Repete-se com freqüência que o Islã não admite a separação de Estado e religião, enquanto Cristo recomenda dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César. Conclui-se que o Islã seria inconciliável com uma democracia moderna. Mas a separação entre igreja e Estado, por mais que fosse anunciada pela frase do evangelho, não foi um presente da teologia católica. Ao contrário, na história do Ocidente, o apetite da Igreja Católica pelo poder mundano foi enorme e foi estancado a duras penas. Por outro lado, no passado (Espanha do século 13, por exemplo), o Islã foi uma religião exemplarmente moderna, precursora da Renascença européia.
Conclusão: provavelmente, toda religião instituída preferiria dominar não só as almas, mas também os corpos e o Estado. Desse ponto de vista, o Islã não é diferente do catolicismo.
Quem defende o "Choque de Civilizações" dirá, então, que o inimigo do Estado moderno e democrático não é tanto o Islã quanto a cultura árabe. Recomendo uma obra prima de antropologia psicológica, "The Arab Mind" (o espírito árabe), de Raphael Patai -livro que foi adotado pelo exército americano no Iraque, na (vã) esperança de munir as forças de ocupação de algum instrumento de compreensão da cristaleira na qual passeiam com seus tanques.
Patai mostra que, no fundamento mítico do espírito árabe, está a figura do beduíno, nômade e livre. Ibn Khaldun, o gênio árabe do século 14, escreveu que os árabes podem "gostar de selvageria porque essa significa liberdade da autoridade e nenhuma subserviência à uma liderança".
Ora, se o Islã é tão sedento de poder político quanto o catolicismo, se o "espírito árabe" começa com o anélito beduíno de liberdade, o que justificaria uma resistência árabe ou muçulmana ao ideário político da modernidade ocidental?
Patai propõe uma resposta. No mundo árabe, a recusa das idéias políticas modernas seria a expressão de um "ódio do Ocidente", que tem uma origem histórica singular. Não basta observar que a colonização do mundo árabe foi rápida e feroz e que a descolonização é recente. Afinal, há outras grandes culturas (a Índia, por exemplo) que sofreram o mesmo destino colonial sem que a reação antiocidental impedisse o acesso à modernidade política.
Mas "de todas as nações que foram colônias, só os árabes encontraram o Ocidente repetidamente em campo de batalha e o derrotaram, sujeitando-o ao seu domínio. Aconteceu na Espanha a partir do século 8º. Ainda no século 18, quando a liderança islâmica passara nas mãos da Turquia, a Europa centro-meridional até a Hungria estava sob dominação muçulmana".
Para Patai, no espírito de uma cultura, é crucial a lembrança do passado: o repúdio do Ocidente na cultura árabe expressa um desejo de revanche muito singular, pois ele não se alimenta apenas na memória das injúrias da colonização. Ele se alimenta na consciência nostálgica de um passado que foi de grande superioridade cultural e militar.
Faz todo sentido: os traços que uma cultura valoriza são os que mais favorecem a constituição de uma identidade comum, ou seja, quase sempre, os que enaltecem o sentimento de grandeza do grupo. Moral: se amássemos menos nossas "identidades", talvez parássemos de contar os pontos em jogos mortíferos que duram séculos.
quinta-feira, 27 de janeiro de 2005
quinta-feira, 20 de janeiro de 2005
Um teatro, um centro comercial e um monumento
No centro de São Paulo, na rua Jaceguai, bem no começo do Minhocão, surge o teatro Oficina, projetado por Lina Bo Bardi para abrigar a companhia de José Celso Martinez. O teatro, que é um paralelepípedo retângulo estreito, insinua-se hoje num quarteirão quase inteiramente demolido, com a exceção do Oficina (que é tombado) e de dois prédios elevados de habitações.
A demolição faz parte de um amplo projeto imobiliário do grupo Silvio Santos, que planeja a reabilitação do bairro do Bexiga.
Durante décadas, o teatro Oficina se opôs ao projeto, pedindo que, ao lado do Oficina, fosse construído um grande teatro de estádio, e não um shopping.
Pois bem, como a Folha noticiou no sábado passado, a antiga diatribe entre o grupo Silvio Santos e o teatro Oficina chegou a uma conclusão feliz. É uma festa constatar que houve um diálogo entre um teatro insubstituível na história e no presente da cultura brasileira e um projeto de investimento crucial para o futuro do bairro do Bexiga e de São Paulo.
Devemos estar (ou ser), apesar de tudo, menos divididos do que imaginamos, se é possível que, pela audácia e generosidade de Silvio Santos, um enorme empreendimento financeiro banque a aposta de construir o shopping center que é destinado a revitalizar a área inteira ao redor de um teatro de mil lugares.
Os arquitetos Marcelo Ferraz, Francisco Fanucci e Marcelo Suzuki desenharam um projeto admirável.
O shopping contemporâneo mais freqüente adota o modelo da "ilha da fantasia": é uma espécie de terra do nunca fechada para a rua, um templo para celebrar o consumo e suas esperanças narcisistas.
Mas existe um outro tipo de shopping, que pode privilegiar as trocas sociais que o comércio proporciona. Em geral, são espaços integrados na circulação entre as calçadas que os delimitam e abertos para a rua (um exemplo paulistano é o Conjunto Nacional).
Os arquitetos optaram por um shopping não só aberto à circulação entre as ruas mas também organizado ao redor de um centro que é ao ar livre (podendo ser coberto por um teto retrátil em caso de grande frio) e, sobretudo, que não é um umbigo periodicamente ocupado pela árvore de Natal. A circulação entre as lojas, em cada andar do shopping, ocorrerá graças a grandes sacadas irregulares (os paulistanos se lembrarão da Galeria do Rock), que olham justamente para o teatro de estádio.
O teatro está, como previsto, ao lado do Oficina, com o qual pode se comunicar. Mas ele não é integrado ao shopping, como acontece, por exemplo, com as salas de cinema na maioria dos centros comerciais de hoje. Ele está no centro do edifício, porém não se confunde com ele. É um cubo, de 40 metros de lado, que caiu do céu ou surgiu da terra num acidente sísmico. O cubo, aliás, é de um material diferente do usado no resto do projeto: é de concreto literalmente vivo, ou seja, povoado de bromélias e plantas crescendo no próprio material. À diferença do shopping, o cubo é quase fechado, espécie de monólito de "2001: Uma Odisséia no Espaço".
Essa irrupção, terrestre ou celeste, parece ter demolido o coração do shopping e, portanto, impõe sua massa como centro enigmático da circulação comercial.
Entre o cubo e as sacadas do shopping, surge uma parede de plantas vivas, como se a expansão urbana tivesse comprimido a mata originária até transformá-la numa lâmina vertical.
O projeto é um monumento grandioso, perfeitamente adequado ao lugar que o acolherá: celebra a vida urbana, a convivência inelutável e cerrada entre a cultura e o consumo e entre o concreto e o verde.
Só resta esperar que vivamos o suficiente para vê-lo realizado e para estar na inauguração do teatro de estádio, com uma peça dirigida por Zé Celso e com Silvio Santos na primeira fileira.
A demolição faz parte de um amplo projeto imobiliário do grupo Silvio Santos, que planeja a reabilitação do bairro do Bexiga.
Durante décadas, o teatro Oficina se opôs ao projeto, pedindo que, ao lado do Oficina, fosse construído um grande teatro de estádio, e não um shopping.
Pois bem, como a Folha noticiou no sábado passado, a antiga diatribe entre o grupo Silvio Santos e o teatro Oficina chegou a uma conclusão feliz. É uma festa constatar que houve um diálogo entre um teatro insubstituível na história e no presente da cultura brasileira e um projeto de investimento crucial para o futuro do bairro do Bexiga e de São Paulo.
Devemos estar (ou ser), apesar de tudo, menos divididos do que imaginamos, se é possível que, pela audácia e generosidade de Silvio Santos, um enorme empreendimento financeiro banque a aposta de construir o shopping center que é destinado a revitalizar a área inteira ao redor de um teatro de mil lugares.
Os arquitetos Marcelo Ferraz, Francisco Fanucci e Marcelo Suzuki desenharam um projeto admirável.
O shopping contemporâneo mais freqüente adota o modelo da "ilha da fantasia": é uma espécie de terra do nunca fechada para a rua, um templo para celebrar o consumo e suas esperanças narcisistas.
Mas existe um outro tipo de shopping, que pode privilegiar as trocas sociais que o comércio proporciona. Em geral, são espaços integrados na circulação entre as calçadas que os delimitam e abertos para a rua (um exemplo paulistano é o Conjunto Nacional).
Os arquitetos optaram por um shopping não só aberto à circulação entre as ruas mas também organizado ao redor de um centro que é ao ar livre (podendo ser coberto por um teto retrátil em caso de grande frio) e, sobretudo, que não é um umbigo periodicamente ocupado pela árvore de Natal. A circulação entre as lojas, em cada andar do shopping, ocorrerá graças a grandes sacadas irregulares (os paulistanos se lembrarão da Galeria do Rock), que olham justamente para o teatro de estádio.
O teatro está, como previsto, ao lado do Oficina, com o qual pode se comunicar. Mas ele não é integrado ao shopping, como acontece, por exemplo, com as salas de cinema na maioria dos centros comerciais de hoje. Ele está no centro do edifício, porém não se confunde com ele. É um cubo, de 40 metros de lado, que caiu do céu ou surgiu da terra num acidente sísmico. O cubo, aliás, é de um material diferente do usado no resto do projeto: é de concreto literalmente vivo, ou seja, povoado de bromélias e plantas crescendo no próprio material. À diferença do shopping, o cubo é quase fechado, espécie de monólito de "2001: Uma Odisséia no Espaço".
Essa irrupção, terrestre ou celeste, parece ter demolido o coração do shopping e, portanto, impõe sua massa como centro enigmático da circulação comercial.
Entre o cubo e as sacadas do shopping, surge uma parede de plantas vivas, como se a expansão urbana tivesse comprimido a mata originária até transformá-la numa lâmina vertical.
O projeto é um monumento grandioso, perfeitamente adequado ao lugar que o acolherá: celebra a vida urbana, a convivência inelutável e cerrada entre a cultura e o consumo e entre o concreto e o verde.
Só resta esperar que vivamos o suficiente para vê-lo realizado e para estar na inauguração do teatro de estádio, com uma peça dirigida por Zé Celso e com Silvio Santos na primeira fileira.
quinta-feira, 13 de janeiro de 2005
Atirar para matar
Durante a invasão do Iraque, vários jornalistas se integraram a unidades combatentes do corpo expedicionário dos EUA. Na safra de livros que relatam essas experiências, um se destaca: "Generation Kill" (Geração Matança), de Evan Wright, que acompanhou um pelotão do primeiro batalhão de reconhecimento dos marines (First Recon Marines, tropa de elite), desde a entrada no Iraque até a ocupação de Bagdá.
A unidade em questão era constituída por um destacamento de "humvees". Alguns eram abertos, outros blindados; cada um era equipado com um lançador de granadas ou uma metralhadora ou ainda um canhão leve, todos carregavam quatro ou cinco homens.
Repetidamente, o pelotão teve a perigosa missão de atravessar emboscadas urbanas, precipitando-se pelas vielas, pé na tábua, recebendo e devolvendo fogo.
Evan Wright era repórter da "Rolling Stone", uma publicação atenta à cultura dos jovens. Não lhe escapou a similitude entre a guerra combatida por seu pelotão e aqueles videogames em que se trata de correr esquivando do fogo alheio, atirando, destruindo e, quando der, tentando fazer a diferença entre população civil, cachorros e inimigos.
Nessa tarefa, notou Wright, os jovens soldados do pelotão eram eficientes e entusiastas: a batalha parecia prolongar os passatempos preferidos de sua adolescência.
As observações de Wright me levaram a ler um clássico da psiquiatria militar americana, "On Killing, the Psychological Cost of Learning to Kill in War and Society" (Sobre o Fato de Matar, o Custo Psicológico de Aprender a Matar em Guerra e na Sociedade), de Dave Grossman, publicado em 95. Resumo o argumento.
1) Um fato surpreendente: pesquisas efetuadas durante a Segunda Guerra Mundial pelo general S.L.A. Marshall mostram que, na época, em situação de combate, apenas 20% dos soldados americanos disparavam sua arma.
Outras pesquisas (históricas, no caso) provam que o mesmo vale para as guerras do passado: poucos disparavam sua arma e, entre esses, menos ainda tomavam realmente o inimigo como alvo. A maioria devia atirar ao lado ou para cima, como se quisesse só intimidar o adversário, feito um primata que grita, se agita e bate no seu próprio peito, esperando que o outro se assuste e fuja.
Imaginemos que, numa guerra do século 19, dois pelotões de fuzileiros, cada um com 200 homens dispostos em fileiras compactas, encarem-se a 30 metros um do outro. Pelas armas e pelo ritmo de tiro da época, se os homens apontassem na direção do inimigo, cada pelotão perderia mais de 50 homens por minuto. Ora, esse tipo de enfrentamento podia durar horas, pois as baixas de cada pelotão eram só de um ou dois homens por minuto.
2) Conclusão de Grossman: existe uma forte e saudável inibição que torna difícil matar o próximo, por inimigo que ele seja e mesmo quando o combate impõe a alternativa: ele ou eu. Essa inibição vale para o uso de armas individuais a curta e média distância. Ela não vale para bombardeios aéreos ou de artilharia, em que o soldado não enxerga seu adversário, e não vale para o uso das armas que são servidas por mais de um combatente, como certas metralhadoras (nesse caso, prevalece a vontade de se mostrar à altura da confiança dos camaradas).
3) Após a Segunda Guerra Mundial, os EUA e outros países reagiram à descoberta de Marshall modificando o treinamento militar. O estande e os alvos tradicionais foram substituídos por silhuetas inimigas que surgem repentinamente e devem ser abatidas em bosques, campos ou ambientes urbanos. Também no condicionamento mental dos soldados começou-se a insistir fortemente no ato de matar (não apenas de combater) como função específica do soldado (veja, por exemplo, "Nascido para Matar", de Stanley Kubrick).
4) Os resultados foram imediatos. Na Guerra da Coréia, a percentagem de soldados que dispararam suas armas em combate subiu para 50%. Na Guerra do Vietnã, chegou-se a 95% (pelo livro de Wright, na guerra do Iraque, essa média se manteve ou melhorou).
Grossman observa que o condicionamento que permite que os soldados vençam sua inibição consiste, em grande parte, na repetição infindável de situações virtuais que transformam o ato de atirar para matar em automatismo. Ele nota que os videogames em que se trata de avançar atirando e matando podem fazer parte (e, às vezes, fazem parte mesmo) desse condicionamento.
Cuidado: não acredito que a violência dos jogos (vídeo ou não) prometa comportamentos violentos. Ninguém se torna assaltante porque brincou de polícia-ladrão ou assassino porque chegou até a última fase de "Doom" ou "Quake". Aliás, é possível pensar o contrário: o jogo permite que se expresse uma violência que, sem isso, explodiria na realidade.
Mas nisto Grossman tem razão: apertar o gatilho apontando num semelhante está se tornando mais fácil. A guerra, hoje, tem um custo que excede o teatro de operações, pois ela treina exércitos de jovens para que suprimam sua inibição para matar.
E a gente passou a praticar técnicas desse treinamento como jogos.
A unidade em questão era constituída por um destacamento de "humvees". Alguns eram abertos, outros blindados; cada um era equipado com um lançador de granadas ou uma metralhadora ou ainda um canhão leve, todos carregavam quatro ou cinco homens.
Repetidamente, o pelotão teve a perigosa missão de atravessar emboscadas urbanas, precipitando-se pelas vielas, pé na tábua, recebendo e devolvendo fogo.
Evan Wright era repórter da "Rolling Stone", uma publicação atenta à cultura dos jovens. Não lhe escapou a similitude entre a guerra combatida por seu pelotão e aqueles videogames em que se trata de correr esquivando do fogo alheio, atirando, destruindo e, quando der, tentando fazer a diferença entre população civil, cachorros e inimigos.
Nessa tarefa, notou Wright, os jovens soldados do pelotão eram eficientes e entusiastas: a batalha parecia prolongar os passatempos preferidos de sua adolescência.
As observações de Wright me levaram a ler um clássico da psiquiatria militar americana, "On Killing, the Psychological Cost of Learning to Kill in War and Society" (Sobre o Fato de Matar, o Custo Psicológico de Aprender a Matar em Guerra e na Sociedade), de Dave Grossman, publicado em 95. Resumo o argumento.
1) Um fato surpreendente: pesquisas efetuadas durante a Segunda Guerra Mundial pelo general S.L.A. Marshall mostram que, na época, em situação de combate, apenas 20% dos soldados americanos disparavam sua arma.
Outras pesquisas (históricas, no caso) provam que o mesmo vale para as guerras do passado: poucos disparavam sua arma e, entre esses, menos ainda tomavam realmente o inimigo como alvo. A maioria devia atirar ao lado ou para cima, como se quisesse só intimidar o adversário, feito um primata que grita, se agita e bate no seu próprio peito, esperando que o outro se assuste e fuja.
Imaginemos que, numa guerra do século 19, dois pelotões de fuzileiros, cada um com 200 homens dispostos em fileiras compactas, encarem-se a 30 metros um do outro. Pelas armas e pelo ritmo de tiro da época, se os homens apontassem na direção do inimigo, cada pelotão perderia mais de 50 homens por minuto. Ora, esse tipo de enfrentamento podia durar horas, pois as baixas de cada pelotão eram só de um ou dois homens por minuto.
2) Conclusão de Grossman: existe uma forte e saudável inibição que torna difícil matar o próximo, por inimigo que ele seja e mesmo quando o combate impõe a alternativa: ele ou eu. Essa inibição vale para o uso de armas individuais a curta e média distância. Ela não vale para bombardeios aéreos ou de artilharia, em que o soldado não enxerga seu adversário, e não vale para o uso das armas que são servidas por mais de um combatente, como certas metralhadoras (nesse caso, prevalece a vontade de se mostrar à altura da confiança dos camaradas).
3) Após a Segunda Guerra Mundial, os EUA e outros países reagiram à descoberta de Marshall modificando o treinamento militar. O estande e os alvos tradicionais foram substituídos por silhuetas inimigas que surgem repentinamente e devem ser abatidas em bosques, campos ou ambientes urbanos. Também no condicionamento mental dos soldados começou-se a insistir fortemente no ato de matar (não apenas de combater) como função específica do soldado (veja, por exemplo, "Nascido para Matar", de Stanley Kubrick).
4) Os resultados foram imediatos. Na Guerra da Coréia, a percentagem de soldados que dispararam suas armas em combate subiu para 50%. Na Guerra do Vietnã, chegou-se a 95% (pelo livro de Wright, na guerra do Iraque, essa média se manteve ou melhorou).
Grossman observa que o condicionamento que permite que os soldados vençam sua inibição consiste, em grande parte, na repetição infindável de situações virtuais que transformam o ato de atirar para matar em automatismo. Ele nota que os videogames em que se trata de avançar atirando e matando podem fazer parte (e, às vezes, fazem parte mesmo) desse condicionamento.
Cuidado: não acredito que a violência dos jogos (vídeo ou não) prometa comportamentos violentos. Ninguém se torna assaltante porque brincou de polícia-ladrão ou assassino porque chegou até a última fase de "Doom" ou "Quake". Aliás, é possível pensar o contrário: o jogo permite que se expresse uma violência que, sem isso, explodiria na realidade.
Mas nisto Grossman tem razão: apertar o gatilho apontando num semelhante está se tornando mais fácil. A guerra, hoje, tem um custo que excede o teatro de operações, pois ela treina exércitos de jovens para que suprimam sua inibição para matar.
E a gente passou a praticar técnicas desse treinamento como jogos.
quinta-feira, 6 de janeiro de 2005
O tsunami, o câncer, a Aids e outras coisas que não têm sentido
Um grande psicanalista francês, Jacques Lacan, disse um dia que a psicanálise é uma espécie de paranóia dirigida.
A paranóia é aquela forma da personalidade que leva o sujeito a encontrar no mundo muito mais sentido do que lá está. Num delírio paranóico bem formado, há poucos fios soltos, tudo é costurado. Os acontecimentos são mensagens -eventualmente divinas ou extraterrestres e de árdua interpretação, mas mensagens. Há pouquíssimo espaço para uma realidade que não seja justificada por um sentido.
De fato, no começo de uma psicanálise, acontece algo parecido com a paranóia: o sujeito examina seu passado e seu presente, procurando as explicações, as razões ocultas, os impulsos inconfessáveis, os desejos conscientes e inconscientes de seus pais, de seus ancestrais e de outros parentes próximos ou longínquos. É aquela coisa: se você hoje é bancário, é porque seu avô perdeu uma fortuna, porque sua mãe nunca sabia onde seu pai colocava o dinheiro e sempre se queixava de que a família não poupava nada. E mais cem "razões"; algumas, aliás, menos benignas.
Esse anseio paranóico de encontrar um sentido para tudo ou quase, no caso de uma psicanálise, é "dirigido" (pelo psicanalista, é claro) segundo dois eixos.
Por um lado, trata-se de permitir ao paciente que encontre e elabore, para sua história e seu mundo, um sentido que não lhe seja demasiado custoso. Por exemplo, se sua vida se justifica só se você for filho de Deus, é melhor que essa ascendência seja comprovada por batismos, circuncisões ou atos de fé, e não pela necessidade de mostrar sua obediência a Deus mudando de gênero e sexo (não invento; apenas evoco o caso do presidente Schreber, famoso na literatura psicanalítica desde Freud).
Por outro lado, a psicanálise não só orienta (e tenta suavizar) nossa procura louca de um sentido mas também deve, um belo dia, permitir que a gente encare a brutalidade do mundo. No fim de uma análise, espera-se que alguém possa sair do consultório de seu analista e levar, por exemplo, um vaso de flores na cabeça sem que lhe ocorra, nem por um instante, que se trate de um complô, de uma punição merecida por ousar se aventurar no mundo sozinho ou mesmo de uma vingança do próprio terapeuta abandonado. Às vezes, os vasos caem sem mais nem menos.
Atrás desse propósito da psicanálise, há a constatação de que, paradoxalmente, os humanos se queixam da falta de sentido, mas sofrem, na verdade, do contrário, ou seja, do excesso de sentido.
A vida e a morte não têm todo o sentido que gostaríamos que tivessem -longe disso, não é? Oxalá pudéssemos acreditar firmemente na ordem do mundo, como os camponeses na hora do ângelus num quadro de Millet! Oxalá a revolução iminente justificasse cada um de nossos respiros!
No entanto esse sentido, que (segundo a queixa) faz falta, não pára de nos atrapalhar: por ele estamos dispostos a estropiar o próximo ou a sacrificar (quase sempre inutilmente) nossas vidas, a ele devemos, às vezes, a inibição e a extraordinária ineficácia de nossas ações. Explico: em geral, quem achar que o vaso de flores caiu para punir sua culpa ou por conspiração de desejos adversos se imporá exames de consciência ou sairá à procura de seus inimigos. Ele nem terá tempo de regulamentar e fiscalizar as sacadas da cidade de forma que os vasos não caiam mais na cabeça dos passantes.
Ora, é bom constatar que estamos melhor do que previsto. Diante do tsunami da semana passada, é certo, houve quem reagisse atribuindo a culpa aos sismólogos do Pacífico, que não telefonaram a tempo para prevenir (telefonar para quem? Para cada pousada da Indonésia?). O presidente Lula não resistiu à tentação do sentido e comentou que a natureza se vinga porque não a tratamos com carinho (alguém vai ter de descer no mar do platô de Sunda e fazer um cafuné na fratura das placas continentais). Mas, no conjunto, o mundo parece conseguir encarar o desastre como desastre e, talvez por isso mesmo, agir.
No meio das notícias do tsunami, Susan Sontag morreu de leucemia, aos 71 anos. Há duas grandes categorias de intelectuais: os que querem acrescentar sentidos ao mundo e os que preferem desfazer o excesso de sentidos, com os quais, em regra, alimentamos nossas tragédias e consolamos nossa preguiça. Sontag pertencia ao segundo grupo.
Seus livros sobre o câncer ("A Doença como Metáfora") e sobre a Aids ("Aids e Suas Metáforas") contaram bastante para que essas enfermidades parassem de ser pretexto metafórico e, por isso mesmo, se tornassem objeto de uma melhor ação preventiva e terapêutica. Ou seja, para que fosse possível, em nossa cultura, ter câncer sem que essa revelação valesse como a confissão envergonhada de uma inquietude reprimida. E para que fosse possível ter Aids sem que isso fosse a marca da cólera divina contra uma vida vergonhosa e dissoluta.
Com isso, Sontag conquistou seu direito de morrer dignamente, não da "praga do século", não "daquela doença", mas de câncer.
A paranóia é aquela forma da personalidade que leva o sujeito a encontrar no mundo muito mais sentido do que lá está. Num delírio paranóico bem formado, há poucos fios soltos, tudo é costurado. Os acontecimentos são mensagens -eventualmente divinas ou extraterrestres e de árdua interpretação, mas mensagens. Há pouquíssimo espaço para uma realidade que não seja justificada por um sentido.
De fato, no começo de uma psicanálise, acontece algo parecido com a paranóia: o sujeito examina seu passado e seu presente, procurando as explicações, as razões ocultas, os impulsos inconfessáveis, os desejos conscientes e inconscientes de seus pais, de seus ancestrais e de outros parentes próximos ou longínquos. É aquela coisa: se você hoje é bancário, é porque seu avô perdeu uma fortuna, porque sua mãe nunca sabia onde seu pai colocava o dinheiro e sempre se queixava de que a família não poupava nada. E mais cem "razões"; algumas, aliás, menos benignas.
Esse anseio paranóico de encontrar um sentido para tudo ou quase, no caso de uma psicanálise, é "dirigido" (pelo psicanalista, é claro) segundo dois eixos.
Por um lado, trata-se de permitir ao paciente que encontre e elabore, para sua história e seu mundo, um sentido que não lhe seja demasiado custoso. Por exemplo, se sua vida se justifica só se você for filho de Deus, é melhor que essa ascendência seja comprovada por batismos, circuncisões ou atos de fé, e não pela necessidade de mostrar sua obediência a Deus mudando de gênero e sexo (não invento; apenas evoco o caso do presidente Schreber, famoso na literatura psicanalítica desde Freud).
Por outro lado, a psicanálise não só orienta (e tenta suavizar) nossa procura louca de um sentido mas também deve, um belo dia, permitir que a gente encare a brutalidade do mundo. No fim de uma análise, espera-se que alguém possa sair do consultório de seu analista e levar, por exemplo, um vaso de flores na cabeça sem que lhe ocorra, nem por um instante, que se trate de um complô, de uma punição merecida por ousar se aventurar no mundo sozinho ou mesmo de uma vingança do próprio terapeuta abandonado. Às vezes, os vasos caem sem mais nem menos.
Atrás desse propósito da psicanálise, há a constatação de que, paradoxalmente, os humanos se queixam da falta de sentido, mas sofrem, na verdade, do contrário, ou seja, do excesso de sentido.
A vida e a morte não têm todo o sentido que gostaríamos que tivessem -longe disso, não é? Oxalá pudéssemos acreditar firmemente na ordem do mundo, como os camponeses na hora do ângelus num quadro de Millet! Oxalá a revolução iminente justificasse cada um de nossos respiros!
No entanto esse sentido, que (segundo a queixa) faz falta, não pára de nos atrapalhar: por ele estamos dispostos a estropiar o próximo ou a sacrificar (quase sempre inutilmente) nossas vidas, a ele devemos, às vezes, a inibição e a extraordinária ineficácia de nossas ações. Explico: em geral, quem achar que o vaso de flores caiu para punir sua culpa ou por conspiração de desejos adversos se imporá exames de consciência ou sairá à procura de seus inimigos. Ele nem terá tempo de regulamentar e fiscalizar as sacadas da cidade de forma que os vasos não caiam mais na cabeça dos passantes.
Ora, é bom constatar que estamos melhor do que previsto. Diante do tsunami da semana passada, é certo, houve quem reagisse atribuindo a culpa aos sismólogos do Pacífico, que não telefonaram a tempo para prevenir (telefonar para quem? Para cada pousada da Indonésia?). O presidente Lula não resistiu à tentação do sentido e comentou que a natureza se vinga porque não a tratamos com carinho (alguém vai ter de descer no mar do platô de Sunda e fazer um cafuné na fratura das placas continentais). Mas, no conjunto, o mundo parece conseguir encarar o desastre como desastre e, talvez por isso mesmo, agir.
No meio das notícias do tsunami, Susan Sontag morreu de leucemia, aos 71 anos. Há duas grandes categorias de intelectuais: os que querem acrescentar sentidos ao mundo e os que preferem desfazer o excesso de sentidos, com os quais, em regra, alimentamos nossas tragédias e consolamos nossa preguiça. Sontag pertencia ao segundo grupo.
Seus livros sobre o câncer ("A Doença como Metáfora") e sobre a Aids ("Aids e Suas Metáforas") contaram bastante para que essas enfermidades parassem de ser pretexto metafórico e, por isso mesmo, se tornassem objeto de uma melhor ação preventiva e terapêutica. Ou seja, para que fosse possível, em nossa cultura, ter câncer sem que essa revelação valesse como a confissão envergonhada de uma inquietude reprimida. E para que fosse possível ter Aids sem que isso fosse a marca da cólera divina contra uma vida vergonhosa e dissoluta.
Com isso, Sontag conquistou seu direito de morrer dignamente, não da "praga do século", não "daquela doença", mas de câncer.
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