quinta-feira, 13 de janeiro de 2005

Atirar para matar

Durante a invasão do Iraque, vários jornalistas se integraram a unidades combatentes do corpo expedicionário dos EUA. Na safra de livros que relatam essas experiências, um se destaca: "Generation Kill" (Geração Matança), de Evan Wright, que acompanhou um pelotão do primeiro batalhão de reconhecimento dos marines (First Recon Marines, tropa de elite), desde a entrada no Iraque até a ocupação de Bagdá.

A unidade em questão era constituída por um destacamento de "humvees". Alguns eram abertos, outros blindados; cada um era equipado com um lançador de granadas ou uma metralhadora ou ainda um canhão leve, todos carregavam quatro ou cinco homens.
Repetidamente, o pelotão teve a perigosa missão de atravessar emboscadas urbanas, precipitando-se pelas vielas, pé na tábua, recebendo e devolvendo fogo.

Evan Wright era repórter da "Rolling Stone", uma publicação atenta à cultura dos jovens. Não lhe escapou a similitude entre a guerra combatida por seu pelotão e aqueles videogames em que se trata de correr esquivando do fogo alheio, atirando, destruindo e, quando der, tentando fazer a diferença entre população civil, cachorros e inimigos.

Nessa tarefa, notou Wright, os jovens soldados do pelotão eram eficientes e entusiastas: a batalha parecia prolongar os passatempos preferidos de sua adolescência.

As observações de Wright me levaram a ler um clássico da psiquiatria militar americana, "On Killing, the Psychological Cost of Learning to Kill in War and Society" (Sobre o Fato de Matar, o Custo Psicológico de Aprender a Matar em Guerra e na Sociedade), de Dave Grossman, publicado em 95. Resumo o argumento.

1) Um fato surpreendente: pesquisas efetuadas durante a Segunda Guerra Mundial pelo general S.L.A. Marshall mostram que, na época, em situação de combate, apenas 20% dos soldados americanos disparavam sua arma.

Outras pesquisas (históricas, no caso) provam que o mesmo vale para as guerras do passado: poucos disparavam sua arma e, entre esses, menos ainda tomavam realmente o inimigo como alvo. A maioria devia atirar ao lado ou para cima, como se quisesse só intimidar o adversário, feito um primata que grita, se agita e bate no seu próprio peito, esperando que o outro se assuste e fuja.

Imaginemos que, numa guerra do século 19, dois pelotões de fuzileiros, cada um com 200 homens dispostos em fileiras compactas, encarem-se a 30 metros um do outro. Pelas armas e pelo ritmo de tiro da época, se os homens apontassem na direção do inimigo, cada pelotão perderia mais de 50 homens por minuto. Ora, esse tipo de enfrentamento podia durar horas, pois as baixas de cada pelotão eram só de um ou dois homens por minuto.

2) Conclusão de Grossman: existe uma forte e saudável inibição que torna difícil matar o próximo, por inimigo que ele seja e mesmo quando o combate impõe a alternativa: ele ou eu. Essa inibição vale para o uso de armas individuais a curta e média distância. Ela não vale para bombardeios aéreos ou de artilharia, em que o soldado não enxerga seu adversário, e não vale para o uso das armas que são servidas por mais de um combatente, como certas metralhadoras (nesse caso, prevalece a vontade de se mostrar à altura da confiança dos camaradas).

3) Após a Segunda Guerra Mundial, os EUA e outros países reagiram à descoberta de Marshall modificando o treinamento militar. O estande e os alvos tradicionais foram substituídos por silhuetas inimigas que surgem repentinamente e devem ser abatidas em bosques, campos ou ambientes urbanos. Também no condicionamento mental dos soldados começou-se a insistir fortemente no ato de matar (não apenas de combater) como função específica do soldado (veja, por exemplo, "Nascido para Matar", de Stanley Kubrick).

4) Os resultados foram imediatos. Na Guerra da Coréia, a percentagem de soldados que dispararam suas armas em combate subiu para 50%. Na Guerra do Vietnã, chegou-se a 95% (pelo livro de Wright, na guerra do Iraque, essa média se manteve ou melhorou).

Grossman observa que o condicionamento que permite que os soldados vençam sua inibição consiste, em grande parte, na repetição infindável de situações virtuais que transformam o ato de atirar para matar em automatismo. Ele nota que os videogames em que se trata de avançar atirando e matando podem fazer parte (e, às vezes, fazem parte mesmo) desse condicionamento.
Cuidado: não acredito que a violência dos jogos (vídeo ou não) prometa comportamentos violentos. Ninguém se torna assaltante porque brincou de polícia-ladrão ou assassino porque chegou até a última fase de "Doom" ou "Quake". Aliás, é possível pensar o contrário: o jogo permite que se expresse uma violência que, sem isso, explodiria na realidade.

Mas nisto Grossman tem razão: apertar o gatilho apontando num semelhante está se tornando mais fácil. A guerra, hoje, tem um custo que excede o teatro de operações, pois ela treina exércitos de jovens para que suprimam sua inibição para matar.
E a gente passou a praticar técnicas desse treinamento como jogos.

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