Um grande psicanalista francês, Jacques Lacan, disse um dia que a psicanálise é uma espécie de paranóia dirigida.
A paranóia é aquela forma da personalidade que leva o sujeito a encontrar no mundo muito mais sentido do que lá está. Num delírio paranóico bem formado, há poucos fios soltos, tudo é costurado. Os acontecimentos são mensagens -eventualmente divinas ou extraterrestres e de árdua interpretação, mas mensagens. Há pouquíssimo espaço para uma realidade que não seja justificada por um sentido.
De fato, no começo de uma psicanálise, acontece algo parecido com a paranóia: o sujeito examina seu passado e seu presente, procurando as explicações, as razões ocultas, os impulsos inconfessáveis, os desejos conscientes e inconscientes de seus pais, de seus ancestrais e de outros parentes próximos ou longínquos. É aquela coisa: se você hoje é bancário, é porque seu avô perdeu uma fortuna, porque sua mãe nunca sabia onde seu pai colocava o dinheiro e sempre se queixava de que a família não poupava nada. E mais cem "razões"; algumas, aliás, menos benignas.
Esse anseio paranóico de encontrar um sentido para tudo ou quase, no caso de uma psicanálise, é "dirigido" (pelo psicanalista, é claro) segundo dois eixos.
Por um lado, trata-se de permitir ao paciente que encontre e elabore, para sua história e seu mundo, um sentido que não lhe seja demasiado custoso. Por exemplo, se sua vida se justifica só se você for filho de Deus, é melhor que essa ascendência seja comprovada por batismos, circuncisões ou atos de fé, e não pela necessidade de mostrar sua obediência a Deus mudando de gênero e sexo (não invento; apenas evoco o caso do presidente Schreber, famoso na literatura psicanalítica desde Freud).
Por outro lado, a psicanálise não só orienta (e tenta suavizar) nossa procura louca de um sentido mas também deve, um belo dia, permitir que a gente encare a brutalidade do mundo. No fim de uma análise, espera-se que alguém possa sair do consultório de seu analista e levar, por exemplo, um vaso de flores na cabeça sem que lhe ocorra, nem por um instante, que se trate de um complô, de uma punição merecida por ousar se aventurar no mundo sozinho ou mesmo de uma vingança do próprio terapeuta abandonado. Às vezes, os vasos caem sem mais nem menos.
Atrás desse propósito da psicanálise, há a constatação de que, paradoxalmente, os humanos se queixam da falta de sentido, mas sofrem, na verdade, do contrário, ou seja, do excesso de sentido.
A vida e a morte não têm todo o sentido que gostaríamos que tivessem -longe disso, não é? Oxalá pudéssemos acreditar firmemente na ordem do mundo, como os camponeses na hora do ângelus num quadro de Millet! Oxalá a revolução iminente justificasse cada um de nossos respiros!
No entanto esse sentido, que (segundo a queixa) faz falta, não pára de nos atrapalhar: por ele estamos dispostos a estropiar o próximo ou a sacrificar (quase sempre inutilmente) nossas vidas, a ele devemos, às vezes, a inibição e a extraordinária ineficácia de nossas ações. Explico: em geral, quem achar que o vaso de flores caiu para punir sua culpa ou por conspiração de desejos adversos se imporá exames de consciência ou sairá à procura de seus inimigos. Ele nem terá tempo de regulamentar e fiscalizar as sacadas da cidade de forma que os vasos não caiam mais na cabeça dos passantes.
Ora, é bom constatar que estamos melhor do que previsto. Diante do tsunami da semana passada, é certo, houve quem reagisse atribuindo a culpa aos sismólogos do Pacífico, que não telefonaram a tempo para prevenir (telefonar para quem? Para cada pousada da Indonésia?). O presidente Lula não resistiu à tentação do sentido e comentou que a natureza se vinga porque não a tratamos com carinho (alguém vai ter de descer no mar do platô de Sunda e fazer um cafuné na fratura das placas continentais). Mas, no conjunto, o mundo parece conseguir encarar o desastre como desastre e, talvez por isso mesmo, agir.
No meio das notícias do tsunami, Susan Sontag morreu de leucemia, aos 71 anos. Há duas grandes categorias de intelectuais: os que querem acrescentar sentidos ao mundo e os que preferem desfazer o excesso de sentidos, com os quais, em regra, alimentamos nossas tragédias e consolamos nossa preguiça. Sontag pertencia ao segundo grupo.
Seus livros sobre o câncer ("A Doença como Metáfora") e sobre a Aids ("Aids e Suas Metáforas") contaram bastante para que essas enfermidades parassem de ser pretexto metafórico e, por isso mesmo, se tornassem objeto de uma melhor ação preventiva e terapêutica. Ou seja, para que fosse possível, em nossa cultura, ter câncer sem que essa revelação valesse como a confissão envergonhada de uma inquietude reprimida. E para que fosse possível ter Aids sem que isso fosse a marca da cólera divina contra uma vida vergonhosa e dissoluta.
Com isso, Sontag conquistou seu direito de morrer dignamente, não da "praga do século", não "daquela doença", mas de câncer.
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