segunda-feira, 26 de dezembro de 2005
O fim do ano e o medo de perder
É engraçado. Muitas vezes, acho que o futuro nos preocupa demais, a ponto de nos impedir de saborear o presente. Mas, por outro lado (e paradoxalmente), parece-me que nossos projetos são quase sempre modestos, inibidos, sem ousadia, como se não nos permitíssemos sonhar e correr atrás de nossos sonhos.
Os adolescentes, por exemplo, são constantemente convidados a sacrificar seu presente e a preparar-se para as exigências do futuro ("não saia, pare de vagabundear e sente-se para estudar"). Ao mesmo tempo, na maioria dos casos, o futuro com o qual eles sonham (e que deveria funcionar como seu pensamento dominante) é curiosamente razoável, "sossegado", mas mediano, se não medíocre.
Claro, os pais adotam, de fato, em relação aos filhos, uma espécie de moral estóica: quem desejar menos não será, talvez, mais feliz, mas será sem dúvida menos infeliz em caso de fracasso e de frustração. Queremos tanto o bem de nossos rebentos que acabamos cortando suas asas: "sonha bem quem sonha pouco".
Mas essa explicação não basta: não só os jovens parecem sonhar à surdina. A gente também. Por que será que, quando sonhamos e projetamos o futuro, somos facilmente medrosos?
Em 2002, surpreendentemente, um psicólogo ganhou o prêmio Nobel de Economia: Daniel Kahneman. Todos os seus trabalhos (muitos dos quais escritos com Amos Tversky, que morreu em 1996 e, portanto, não pôde ser premiado junto com seu colega) questionam um pressuposto da teoria econômica (hoje quase defunto), segundo o qual o sujeito da economia (ou seja, nós, quando tomamos decisões econômicas) seguiria princípios racionais, escolhendo o que é mais útil e mais proveitoso.
A teoria que tornou Kahneman e Tversky famosos se chama "Prospect Theory", teoria do prospecto, ou seja, teoria de como a gente avalia as expectativas futuras, no momento de decidir. Eles escreveram dois textos cruciais sobre o assunto, um em 1979 e outro em 1992 (disponíveis ambos on-line no endereço http://prospect-theory.behaviouralfinance.net/).
A "Prospect Theory"" mostra o seguinte: na hora de correr um risco ou de evitá-lo, nossa decisão não é guiada apenas pela consideração das chances efetivas de sucesso ou fracasso, mas outros fatores menos "racionais" (em particular, o medo de perder) tornam-se determinantes.
Escolho uma das experiências realizadas por Kahneman. Note-se que o valor em jogo (digamos, R$ 1.000) corresponde a um terço da renda média do grupo social de onde vêm os entrevistados (as experiências foram realizadas na Suécia e repetidas e confirmadas nos EUA). No começo da experiência, supõe-se que o sujeito tenha recebido, de presente, um dinheiro; dessa forma, as perdas eventuais não mudariam perigosamente sua condição financeira.
Então, você já recebeu R$ 1.000. Agora, você deve escolher entre A) receber R$ 500 certos e B) correr um risco pelo qual há 50% de chances de você ganhar R$ 1.000 e 50% de chances de você não ganhar nada. A grande maioria dos entrevistados (84%) escolhe ficar com os 500 certos e evita o risco de não ganhar nada na esperança de ganhar mais.
Situação inversa. Você recebeu, de presente, R$ 2.000. Agora, você deve escolher entre A) perder 500 inevitavelmente e B) correr um risco pelo qual há 50% de chances de você perder R$ 1.000 e 50% de chances de você não perder nada e ficar com todos os seus 2.000. Aqui uma boa maioria dos entrevistados (69%) prefere correr o risco de perder mais, na esperança, obviamente, de não perder nada. Só 31% optam pela perda inevitável de R$ 500.
Conclusão: quando se trata de ganhar, nossa aversão ao risco é muito maior do que quando se trata de perder. Em outras palavras, não é para ganhar, mas para não perder que estamos dispostos a mais sacrifícios. Para não perder, estamos até prontos a correr o risco de perder mais ainda.
De fato, muitos jogadores conseguem deixar a mesa quando estão ganhando, contentando-se com o dinheiro que levarão para casa, mas são poucos os jogadores que conseguem parar de jogar quando estão perdendo. Em regra, o jogador não se resigna às perdas e segue apostando e acreditando numa mudança da sorte, até esgotar sua conta e seu crédito. Outro exemplo é o do investidor que se agarra a ações que declinam ruinosamente e prefere esperar um milagre a vender e limitar seu desastre.
Ora, a descoberta de Kahneman e Tversky se aplica fora do âmbito estreitamente econômico: na hora de arriscar, o que fala mais alto é o medo de perder. Quando limitamos medrosamente nossos sonhos, o que vale não é tanto a vontade de torná-los mais razoáveis e realizáveis, mas o medo de abandonar o conforto resignado do status quo.
Os psicanalistas dizem a mesma coisa, em termos apenas diferentes: não há desejo sem perdas, e quem não aceita perder se impede de desejar.
Enfim, meus votos para todos: um Ano Novo sem medo de perder.
quinta-feira, 22 de dezembro de 2005
Espírito de Nata
Um pequeno brinquedo novo, na sua caixa, custa por volta de R$ 10 (menos, se você se aventurar na rua 25 de Março).
Segundo suas possibilidades, compre de cinco a dez panetones e de cinco a dez brinquedos (para meninas e meninos). Coloque tudo no carro e circule pelas ruas; se puder, leve seus filhos consigo. Quando encontrar crianças pedindo esmola ou vendendo chicletes, ofereça a cada uma um panetone e um brinquedo. Não vale jogar o pacote pela janela e sair correndo: abra o vidro inteiramente e troque umas palavras. Aproxime-se.
Claro, seu gesto não vai mudar o Brasil nem o mundo. Tampouco vai resolver os problemas das crianças que você encontrará. Será que servirá só para acalmar um pouco sua culpa social?
Nada disso. Seu gesto terá um efeito específico, relevante e comprovado -um efeito em você mesmo. Explico.
Em 2001, a revista "Science" (vol. 293, nº 5.537) publicou uma pesquisa de Joshua Greene, Jonathan Cohen e outros, "An fRMI Investigation of Emotional Engagement in Moral Judgment" (uma investigação por ressonância magnética funcional do engajamento emocional no juízo moral).
Foram propostos dilemas práticos a uma série de sujeitos cujo funcionamento cerebral estava sendo monitorado.
Seja o dilema seguinte: há um trem descontrolado que, se continuar no seu curso, matará inevitavelmente cinco pessoas. Numa cabine de controle do tráfico ferroviário, você pode acionar um interruptor que desviará o trem. Detalhe incômodo: em seu novo percurso, também inevitavelmente, o trem matará uma pessoa. A grande maioria dos sujeitos escolhe o mal menor e aciona o interruptor sem hesitar.
Agora, um dilema apenas diferente. Imagine o mesmo trem descontrolado, mas, desta vez, para evitar a catástrofe que mataria cinco passoas, você deve empurrar sobre os trilhos um ser humano, que você não conhece, mas que está de seu lado. O sacrifício do desconhecido salvará os cinco. A situação é parecida à anterior, mas a maioria dos sujeitos testados se recusa a agir. Os que decidem empurrar o vizinho chegam à sua decisão num tempo muito mais longo do que o tempo necessário aos sujeitos do primeiro teste para acionar o interruptor.
Greene e Cohen constatam que, no segundo teste, a atividade cerebral dos sujeitos envolve uma grande agitação emocional, ausente no caso do primeiro teste. Eles concluem que, quando o cenário comporta uma relação próxima e pessoal, a decisão deixa de ser completamente racional ou funcional.
O fato não é surpreendente. Entende-se que, na maioria dos casos, a proximidade do outro produza um mínimo de empatia afetiva que torna complicado, por exemplo, jogá-lo nas rodas de um trem.
Talvez seja por isso que, para decidir a morte da criança que come um sorvete ao seu lado, o terrorista se transforma em homem-bomba: sua própria morte resolve o conflito interno insolúvel entre ideologia e emoção (compaixão, empatia etc.).
Deduções. O general Medici, no começo de seu mandato, deveria ter passado uma noite, incógnito, numa reunião de estudantes de esquerda. Fidel Castro deveria ter cortado a barba para insinuar-se num bar gay de La Havana, e o presidente Bush deveria ter deixado crescer a barba para freqüentar uma mesquita de Bagdá. Stalin deveria ter vivido uma temporada entre os camponeses soviéticos; Nixon e Kissinger deveriam ter plantado arroz num vilarejo do Vietnã. Pode ser que não por isso eles tomassem decisões diferentes das que tomaram, mas, no mínimo, como mostram Greene e Cohen, eles teriam hesitado.
Entre os dilemas propostos por Greene e Cohen, aliás, há o caso de quem deve aprovar políticas que alvejam o bem da maioria (ou mesmo, a longo prazo, o de todos), mas que produzem mortes ou danos imediatos. A escolha é muito mais penosa para o governante que enxerga, nos governados, seu próximo. O bom governante é uma figura trágica, pois sempre chega o dia em que ele é levado a decidir, de uma maneira ou de outra, num conflito entre razão e empatia.
Ora, em nossa sociedade, há um exército de desfavorecidos que não decide quase nada. E as decisões dos favorecidos se parecem com o gesto de quem aciona o interruptor no dilema do trem de Greene e Cohen: o fosso que nos separa de quem não tem nada é tamanho que é fácil agir sem empecilhos emocionais. Por exemplo, é cômodo, moralmente, apropriar-se de dinheiro público, pois a figura de quem sofrerá pelo abuso é distante: um número.
A experiência de Greene e Cohen sugere que nossos atos são diferentes quando os outros não são números, mas semelhantes. Como produzir essa mudança?
Por exemplo, no futuro, uma reforma pedagógica poderia instituir o trabalho social concreto como matéria obrigatória para os alunos dos colégios privados. Mas, desde já, podemos inventar alguns truques para nos lembrar de que há semelhantes nas esquinas. Truques piegas, como minha proposta do panetone e dos brinquedos.
Feliz Natal a todos.
quinta-feira, 15 de dezembro de 2005
Filmes para toda a família
O filme de Adamson leva ao cinema uma das sete "Crônicas de Nárnia", escritas por C. S. Lewis nos anos 50 do século passado. O filme de Newell corresponde ao quarto volume das aventuras de Harry Potter, escritas por J.K. Rowling. Os dois filmes são encantadores, como os escritos que os inspiram.
O "Cálice de Fogo" (talvez o melhor "Harry Potter" até agora) foi elogiado, em particular, por "humanizar" Harry e seus colegas. Já com 14 anos, o jovem herói, por mais que seja mago, conhece as dores da adolescência. Por exemplo, envergonhado na hora de convidar a menina de quem ele gosta, acaba levando para o baile uma substituta. No baile, ele fica jogado numa cadeira como todos ficamos aos 14 anos: comentando sardonicamente a dança dos outros, com medo de termos ares de criança se nos aventurássemos na pista.
Por causa disso, alguns críticos afirmaram que "O Cálice de Fogo", magia à parte, é um filme sobre a adolescência. Concordo, mas não só pelas atrapalhações de Harry, que despertam em nós sorrisos condescendentes.
No filme, quatro jovens são encorajados a competir em provas desesperadoramente perigosas. Trata-se de um jogo, mas, para os concorrentes, a questão é de vida ou morte.
Ora, a maior aspiração de qualquer adolescente é que sua existência (não só seu futuro) seja levada a sério e que as aventuras de seu dia-a-dia não sejam consideradas por nós como percalços engraçados de um tempo protegido de formação. Os adolescentes, aliás, não param de inventar atos e riscos extremos para sacudir nossa condescendência e forçar nosso respeito. Melhor ainda se, como no filme, os ditos atos e riscos forem impostos por nós: os jovens saberiam, enfim, quais provas são exigidas para que eles se tornem adultos aos nossos olhos.
Pois é, se nossos adolescentes tivessem mesmo que encarar dragões, eles talvez não precisassem de drogas.
Mas vamos a "O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa". O filme suscitou uma salva de críticas ideológicas, porque a história seria uma alegoria do triunfo do cristianismo.
C. S. Lewis era cristão (convertido tardiamente pelo amigo Tolkien, o autor de "O Senhor dos Anéis"). De fato, na história do leão Aslam, há elementos que evocam a história de Cristo. Mas em termos: para mim (e para vários outros), a "loucura" da mensagem cristã fala do sacrifício de um humilde, de um cordeiro que resgata a todos. Nada a ver com um leão que reúne um exército para enfrentar o mal.
Alguns comentadores não se preocuparam com essa discrepância e não se perguntaram de onde ela vem. Preferiram apresentar Lewis como um conselheiro espiritual de George W. Bush: sua visão de um cristianismo guerreiro coincidiria com o espírito dos falcões que promoveram a invasão do Iraque como mais uma cruzada.
Por gratidão pelo prazer que a leitura das "Crônicas" me proporcionou na infância, devo defender Lewis desse disparate.
Lewis escreveu uma deliciosa autobiografia, "Surprised by Joy: the Shape of My Early Life" (surpreendido pela alegria: a forma do começo de minha vida), na qual ele narra o caminho de sua conversão.
Sua paixão, desde a infância, foi o mundo mágico da aventura. Da vasta e excelente produção de Lewis crítico e historiador da literatura da Idade Média e da Renascença, conheço dois livros, talvez os principais: "The Allegory of Love" (a alegoria do amor), de 1936, e "The Discarded Image" (a imagem descartada), de 1964. Ambos celebram e festejam a possibilidade (que explode na literatura da Renascença italiana com Ariosto, Boiardo e Tasso) de narrar o maravilhoso, além da vida real e além do mistério da fé.
É por causa dessa paixão pelo maravilhoso que Lewis se converteu: adotou o cristianismo porque viu nas verdades da fé mais uma história fantástica, que tinha a vantagem de poder ser verdadeira.
É injusto dizer que Lewis escreveu as "Crônicas de Nárnia" como uma alegoria do cristianismo. Ao contrário, ele se tornou cristão porque a história de Cristo lhe parecia tão fantástica quanto a história dos Cavaleiros da Mesa Redonda (ou a do leão Aslam, salvador de Nárnia).
Na hora de criticar, a ideologia é má conselheira: os mesmos críticos que quiseram enxergar em Lewis um falcão com espírito de cruzado, esqueceram-se de notar que algo, nas "Crônicas", pode mesmo incomodar nosso espírito libertário. Esse "algo" não é a alegoria do cristianismo, mas a felicidade um pouco babaca com a qual os animais de Nárnia, uma vez libertados da feiticeira, apressam-se a aclamar novos reis, sem pensar nem um instante que eles poderiam se governar sozinhos. O cenário dos mundos encantados é quase sempre a sociedade tradicional, com seu respeito incontestável por hierarquia e autoridade.
Seja como for, deleitem-se com os filmes, pois ambos expressam um anseio que todos conhecemos (não só os adolescentes): o anseio de encontrar provas maravilhosas que nos testem.
quinta-feira, 8 de dezembro de 2005
Uma história do desejo
Shorter não quer tratar das mudanças na escolha e no número dos parceiros, mas quer descrever o processo pelo qual, segundo ele, depois de séculos em que os casais transavam de papai-mamãe, chegou-se a práticas sexuais em que os prazeres do corpo seriam mais variados.
A indagação de Shorter parece ser orientada por um chavão da contracultura dos anos 60. Na época, era banal considerar que a sensualidade nos tornaria livres, pois nossos males (sobretudo políticos) seriam um efeito da primazia dos órgãos genitais e especialmente do falo: se, na busca do prazer, não respeitássemos mais a prioridade dos órgãos genitais, a revolução estaria às portas. A revolta das axilas, dos cotovelos e dos tornozelos inauguraria uma democracia participativa que valeria para a sociedade inteira. Estou ironizando, mas a idéia, no fundo, era essa.
Segundo Shorter, a hora chegou: talvez você não tenha percebido, mas estamos no reino final do "total body sex", o sexo do corpo inteiro, o tempo da sensualidade feliz em que cada área de nosso corpo será fonte de prazer.
Como é que chegamos a essa maravilha? Houve uma época (a Grécia e a Roma antigas) em que, escreve Shorter, os corpos eram dispostos a prazeres variados, mas, depois disso, foram só cambalhotas ladeira abaixo até a chegada da modernidade, quando a tendência se inverteu.
O que se opunha, durante séculos, a um uso dos prazeres que não fosse limitado aos exercícios genitais? Segundo Shorter:
1) as distrações físicas (as pessoas, cheias de piolhos e sarna, passavam o tempo se coçando ou, então, sem aspirina e Tylenol, mal se mexiam por causa de artrose e dor de cabeça);
2) a proximidade da morte (as pessoas viviam menos e pensavam mais na morte -argumento curioso, pois a iminência da morte nem sempre inibe a procura do prazer);
3) a falta de higiene (o cheiro fazia que as pessoas preferissem conjunções carnais sem pormenores e sem tirar a roupa);
3) o risco de gravidez (um mistério: o risco de gravidez deveria ter encorajado práticas não-genitais, não é?);
4) a prevalência de comunidades pequenas e rurais, em que era grande o peso do juízo moral dos outros.
Progressivamente, a partir do fim do século 19 e sobretudo depois dos anos 60 do século 20, foram removidos os ditos obstáculos e a gente passou a apreciar recantos do corpo antes menosprezados.
Uma prova desse desfecho feliz é, segundo Shorter, a diminuição da vida comunitária e associativa nas últimas décadas: a sexualidade se tornou tão prazerosa que passamos nosso tempo na cama.
A construção de Shorter é surpreendente por seu otimismo e por sua militância em favor da sensualidade do corpo. Por exemplo, ele nota que o homem da Idade Média atribuía uma importância crucial ao rosto de sua companheira, até porque não tinha como ver o resto e, se visse, não gostaria de se aventurar por lá (cheiro, sujeira). Nós, ao contrário, seríamos seduzidos por pernas, umbigos, ombros e por aí vai. Para Shorter, trata-se de um avanço, em que triunfa o corpo sensual no seu conjunto. Pode ser que eu seja careta, mas continuo atribuindo importância ao rosto das pessoas que amo e desejo, e não devo ser o único...
Mas isso é o de menos. O problema maior é que, em sua história do desejo, Shorter, obcecado pela questão da sensualidade dos corpos, não sabe o que fazer com a mudança das fantasias sexuais.
Ele constata, com razão, que a modernidade produziu uma explosão inédita de fantasias sadomasoquistas. Qual é sua leitura desse fenômeno? Para ele, o importante é que, nas práticas sadomasoquistas modernas, os parceiros se interessam por muitas partes do corpos e não só pelos genitais. Ou seja, o essencial do sadomasoquismo não seria a fantasia de dominação, mas o fato de que, no exercício dessa fantasia, o corpo inteiro seria erotizado (tanto faz que isso aconteça à força de chicotadas).
Ora, há uma outra leitura da explosão das fantasias sadomasoquistas que, desde o fim do século 18, fazem que a relação entre os amantes seja contaminada por jogos de dominação ou controle.
No fim do século 18, acabam as hierarquias da sociedade tradicional; qualquer um, independentemente de seu berço, pode sonhar em alcançar o poder, que se torna, para todos, um objeto de cobiça possível, um objeto erótico -talvez o objeto erótico principal da modernidade.
As algemas e os chicotes que enchem as prateleiras de nossos "sex shops", assim como as brincadeiras de dominação que animam as transas dos casais de hoje falam do estranho custo da democracia moderna: o sexo se misturou com o poder. Mal se consegue transar sem uma fantasia de poder e (fato mais inquietante) goza-se do poder com uma premência digna de uma justa erótica.
Pois é, estamos longe do reino da sensualidade liberada dos corpos.
quinta-feira, 24 de novembro de 2005
Religião: por quê ou para quê?
Em 1970, na Universidade de Genebra, participei de um seminário sobre as provas da existência de Deus segundo são Tomás.
Continuávamos discutindo noite adentro. A existência de Deus não era o tema do debate: ela nos parecia depender de um ato de fé, e fé não se discute. O objeto de nossas conversas era a religião.
Alguns, leitores de Marx, viam a religião como um instrumento de poder: "ópio do povo", destinado a acalmar a massa dos oprimidos com a visão de um futuro em que a justiça reinará entre puros espíritos.
Outros, leitores de Freud, viam a religião como um jeito de instituir a repressão sem a qual a vida social seria impossível ou, então, como um sistema de crenças destinado a atenuar o desamparo humano, dotando o mundo, a história e a vida de um sentido. Eles notavam que a repressão é sempre maior do que é preciso (para não matar e roubar, aceito também me proibir de transar fora do casamento). Lembravam também que, quanto ao sentido, seu excesso é mais daninho do que a angústia que ele cura (extermino os heréticos para que permaneça incontestada minha versão da origem e do fim do universo).
Enfim, "marxistas", "freudianos" ou independentes, todos tentávamos responder à pergunta "religião para quê?", como se o "para quê" resolvesse a questão do "por quê". É um vício da razão moderna: parece que, se descobrirmos para que serve uma coisa e quem se beneficia com ela, saberemos qual é sua origem e sua causa. Mas nem tudo o que existe é fruto de uma intenção, malévola ou não.
Lembrei-me desses debates noturnos lendo o artigo que Paul Bloom, psicólogo da Universidade Yale, publica no número de dezembro da "Atlantic Monthly", "Is God an Accident?" (será que Deus é um acidente?). O artigo retoma o livro recente (2004) de Bloom, "Descartes" Baby: How the Science of Child Development Explains What Makes Us Human" (o bebê de Descartes: como a ciência do desenvolvimento infantil explica o que nos torna humanos).
Bloom trata de nosso dualismo, ou seja, de nossa crença "espontânea" na idéia de que nossa subjetividade seja separada de nosso corpo. O fato é que, mesmo se sou materialista, falo sem hesitar que "tenho" (e não que "sou") meu corpo, como se "eu" fosse uma coisa bem diferente dos 72 kg de matéria que carrego habitualmente comigo.
Isso, afirma Bloom, não é efeito de uma crença. Uma série de pesquisas mostram que crianças pequenas (sem sistemas organizados de crenças) enxergam a vida do corpo e a vida da mente como coisas separadas. Eis um exemplo. Um grupo de crianças assiste a um filme em que um crocodilo devora um ratinho. Depois disso, o pesquisador coloca perguntas sobre as funções corporais e as funções psicológicas (subjetivas) do ratinho, que obviamente está morto. "Agora que o ratinho morreu, ele ainda precisa ir ao banheiro?" "Claro que não", dizem as crianças. "Será que sua cabeça funciona?" "Claro que não." "Será que ele ainda sente fome e vontade de voltar para casa?" Pois é, "claro que sim", dizem as crianças.
Bloom observa: não somos dualistas porque acreditamos (religiosamente) numa vida além da morte, mas, ao inverso, acreditamos numa vida além da morte porque somos dualistas (ou seja, porque concebemos espírito e corpo como coisas separadas). Se não coincido com meu corpo, por que eu não sobreviveria quando ele morrer?
Agora, o que será que nos faz conceber espírito e corpo como coisas separadas? Bloom apresenta pesquisas e exemplos clínicos que mostram o seguinte: nossa capacidade de compreender o social (os outros, nossos semelhantes) desenvolve-se por um caminho diferente e separado do caminho pelo qual nos tornamos capazes de entender o mundo físico e material. É como se construíssemos e usássemos dois computadores distintos: um computador para entender, por exemplo, a causalidade mecânica e outro computador para entender as intenções humanas.
Nenhum terapeuta se oporá a essa idéia: há condições (a síndrome de Asperger, por exemplo) em que um sujeito pode sofrer de um déficit doloroso de compreensão das relações humanas e, ao mesmo tempo, ter uma perfeita compreensão do mundo físico e até ser um cientista de valor.
Último argumento de Bloom: de nossos dois "computadores", um se desenvolve mais e invade o terreno do outro. É o "computador" para compreender nossos semelhantes, que acabamos usando também na hora de entender a natureza. Aqui, as experiências mostram com quanta facilidade os humanos atribuem intenções ao mundo inanimado. De fato, todos ouvimos dizer que a Aids seria um "flagelo divino" contra homossexuais, drogados e promíscuos ou que o tsunami seria uma "vingança" da natureza.
Conclusão de Bloom: tendemos a ser religiosos (a acreditar numa vida além da morte, num sentido para o mundo e numa intencionalidade suprema) como efeito de nosso desenvolvimento mental e cognitivo.
Tudo isso não nos diz se Deus existe ou não nem se existe ou não vida após a morte. Mas, por uma vez, fato notável, a religiosidade é explicada não por seu uso ou por sua finalidade, mas como efeito de nossa constituição psíquica.
quinta-feira, 17 de novembro de 2005
O mundo como nação
Acabo de ler um relatório recente do Perserec: "Technological, Social, and Economic Trends that are Increasing U.S. Vulnerability to Insider Espionage" (tendências tecnológicas, sociais e econômicas que aumentam a vulnerabilidade dos EUA à espionagem interna; www.fas.org/sgp/othergov/ dod/).
O relatório começa salientando os aspectos do mundo atual que facilitam o trabalho do espião: possibilidade de digitalizar as informações, ampliação do mercado das informações (mais concorrentes ou países querendo comprar), internacionalização do comércio e da ciência com aumento de contatos do pessoal com concorrentes e estrangeiros, expansão da internet (facilidade da transmissão e do anonimato na correspondência).
A seguir, são examinadas as motivações dos espiões. Constata-se que, cada vez mais, os americanos vivem crises financeiras pessoais produzidas por seus hábitos "agressivamente consumistas". Talvez por causa dessas crises, a prática compulsiva do jogo está aumentando. As dívidas são fontes prováveis de motivação para a espionagem.
Enfim, o texto chega às três questões seguintes.
1) Diminuiu a lealdade institucional. As empresas obedecem brutalmente às necessidades do mercado, racionalizando, transferindo, demitindo. Os funcionários mudam de empresa segundo seu interesse econômico e suas ambições. Acaba o mito da empresa como família e a sensação de pertencer a uma comunidade de trabalho.
2) Fato relevante para as repartições públicas, um número crescente de americanos tem laços étnicos com outros países. Isso sempre foi o caso nos EUA, mas a facilidade das comunicações faz com que o imigrante não seja obrigado a queimar os barcos. Telefonar "para casa" (justamente, qual "casa"?) sai de graça ou quase, e viajar a cada ano para o país de origem está ao alcance da pequena classe média. Conseqüência: nos novos imigrantes, o sentimento de pertencer à nação americana pode ser dúbio e conflituoso. A permissão de manter uma dupla nacionalidade é mais a expressão do que a causa dessa situação.
3) Um número crescente de americanos vêem o mundo como uma sociedade global, de pessoas e grupos interdependentes, e não como um teatro em que se afrontariam "nações". Um cidadão pode se tornar espião para servir o interesse superior da "comunidade mundial". É citado o caso de Ana Montes, uma analista do serviço de informações do Ministério da Defesa que transmitiu dados sigilosos para Cuba. Montes não era comunista nem filocubana, mas se sentia "moralmente obrigada" a agir para "promover a tolerância e a cooperação em nossa única pátria, que é o mundo".
Sem querer, o relatório mostra que um suposto mal-estar da dita pós-modernidade (o sentimento de não pertencer a quase nada) é apenas a realização de um dos maiores sonhos da modernidade. Explico. Uma grande idéia moderna diz que, se nós nos concebermos como agentes econômicos (como produtores, trabalhadores etc., e não como membros de tribos e clubes), passaremos a reconhecer a igualdade de todos: a espécie humana será nosso povo e o mundo, nossa pátria.
Esse sonho atravessa tanto o iluminismo francês quanto o anglo-saxão. A idéia marxista do internacionalismo proletário não tem outra origem.
Pois bem, ao que parece, o iluminismo está funcionando. Aos poucos, a espécie humana em sua diversidade começa a nos aparecer como um povo só e o planeta como uma única grande nação.
É normal que isso incomode a segurança nacional de qualquer país e, no caso, a dos EUA, mas, de uma certa forma, o que está acontecendo é um efeito do próprio projeto americano. As Américas, esquecendo seus pecados originais (extermínios dos índios e escravatura), prefiguram o sonho moderno do mundo como pátria, por serem o lugar onde vivem sociedades compostas pela imigração de etnias, fés e passados diferentes.
Estamos longe do declínio final das nações. Há os que protegem sua identidade de grupo semeando bombas. Há os que erigem barreiras comerciais para privilegiar sua nação. Há os que seguem acreditando nas seleções nacionais, embora sejam compostas por jogadores que vivem e criam filhos em vários outros países. E, claro, há os que confundem seu país com o mundo-pátria (como se já existisse) e se arrogam o direito de serem os gendarmes de todos.
No entanto, ao ler o relatório, parece que a verdadeira crise que ameaça hoje o "império" é a realização de seu próprio sonho: a nação composta por sujeitos do mundo inteiro se identifica com um mundo em que a idéia de nação perde sentido. Com isso, ela pode se desfazer como nação.
Nota. Sobre a crise em curso na França, talvez reste prever que ela não encontrará solução na integração "nacional" dos jovens de ascendência árabe. Pelo passivo histórico e pelas paixões em jogo (décadas de retórica da nação árabe e séculos de retórica da nação francesa), a crise só poderá ser resolvida na perspectiva (longínqua) de um mundo que seja a pátria de todos.
quinta-feira, 10 de novembro de 2005
Melhor não conhecer quem você ama
Para Kipnis, diante da vida de casal (e no meio dela), nossa ambivalência é sem solução: "Por um lado, o anseio por intimidade; por outro, o desejo de autonomia; por um lado, o conforto e a segurança da rotina; por outro, sua medonha previsibilidade; por um lado, o prazer de ser conhecido profundamente (e de conhecer profundamente outra pessoa); por outro, os papéis restritivos que essa familiaridade prevê".
Kipnis acrescenta que a familiaridade produz "a rotina do "Pare de Tentar Me Mudar" e a rotina do "Pare de Me Culpar por Sua Infelicidade'". São, de fato, duas grandes armadilhas da intimidade do casal: "Você me conhece tão bem que o deleite da surpresa foi substituído pela paixão pedagógica de me transformar". Ou então: "Você me conhece tão bem que consegue sempre encontrar em mim as razões de sua insatisfação".
Não sei se existem formas de convivência íntima capazes de evitar que o parceiro se torne tristemente familiar. Kipnis pensa que não; pessimista e freudiana, ela não acredita em esparadrapos: na vida de casal, anseios contraditórios se chocam sem parar e sem remédio.
Queremos o impossível: a transparência recíproca e, ao mesmo tempo (paradoxo), a preservação daquela aura misteriosa sem a qual, para o outro, somos "o cara" ou "a mina" de sempre, sem surpresas.
Muitos acham intolerável ser conhecidos profundamente pelo parceiro. Na convivência do casal, uma expressão banal como "Eu te conheço" pode ser recebida com ojeriza e rebeldia, como se o olhar do outro se tornasse, assim, a tumba de todos os possíveis: "Você é este aqui, que amo e conheço, e não é, não foi e não será nenhum outro".
Ora, freqüentemente, uma fantasia responde a essa dificuldade do amor. É o devaneio de uma vida passada, totalmente outra e geralmente excessiva, arriscada e aventurosa -o contrário, em geral, do cotidiano atual do casal. O parceiro desconheceria esse passado: ele nos amaria sem saber quem somos, ou melhor, ela amaria, em nós, um mistério.
Por isso, acontece, às vezes, que um dos membros de um casal fabule sobre seu passado, não para tornar-se mais digno do amor recebido (ou seja, mais conforme com o que o outro espera), mas para declarar que ele pode ser radicalmente diferente do que o parceiro imagina. No caso, trata-se de mentiras que não querem "melhorar" a imagem de quem fabula; ao contrário, elas inventam um currículo inquietante: "Já fui drogado, heroína na veia", "Teve uma época em que transava só em grupo, com homens, mulheres e qualquer coisa que se mexesse" e por aí vai.
Conheci, por exemplo, um casal em que o marido jurava ter passado anos na prisão (e não por um erro judiciário). A mulher teimava em demonstrar que o marido mentia, exibia certificados de antecedentes penais, alegava testemunhas, provava que nada disso era possível. Ela ganhou a disputa, mas foi o fim do casal, pois o marido mentia para continuar acreditando que, apesar da "normalidade" do casamento, sua vida permanecia livre e aventurosa. Mais do que isso, ele queria ser amado pelo mistério de seu passado inventado, não pelo conformismo de seu presente. Privado de um falso "segredo" que o mantivesse como enigma aos olhos de sua amada, ele recorreu à banalidade de pequenas traições para criar, em compensação, segredos reais. Logicamente, a relação acabou.
Para esse impasse da vida amorosa, o cinema, repertório de nossos devaneios, propõe algumas soluções.
O exemplo inaugural é "Gatilho Relâmpago" ("The Fastest Gun Alive", 1956), de Russel Rouse, em que Glenn Ford vive como comerciante tranqüilo (e quase "moscão") numa pequena cidade do Oeste americano. De fato, ele e sua família estão fugindo de um passado em que ele era o maior dos pistoleiros. Claro, um dia a coisa estoura.
Melhor ainda é um filme que estréia amanhã no Brasil, "Marcas da Violência", de David Cronenberg. Melhor, digo, não só por ser dirigido com extrema simplicidade e maestria, mas por propor uma versão aprimorada da fantasia em questão. À diferença do que acontece em "Gatilho Relâmpago", aqui ninguém sabe se o protagonista esconde ou não um estranho passado: nem o espectador nem (mais importante) a mulher. Ao meu entender (vejam se vocês concordam), depois dos acontecimentos, a família continuará mais unida do que nunca, por todos terem aprendido a amar sem a pretensão de conhecer quem eles amam.
Agora, a solução ideal mesmo é a história de Jason Bourne ("A Identidade Bourne", de 2002, e "A Supremacia Bourne", de 2004). Nesse caso, nem Bourne sabe direito qual foi seu passado. A mulher que, no primeiro filme, torna-se sua companheira se apaixona por um sujeito que é um enigma para ele mesmo. Talvez essa seja a melhor maneira de amar e de ser amado. Mas fazer o quê? Nem todo mundo pode ser agente secreto e amnésico.
quinta-feira, 3 de novembro de 2005
A armadilha da corrupção
No fim de semana passado, estive no encontro do Instituto DNA Brasil, em Campos do Jordão. O evento reunia pessoas representativas de várias áreas, para que, durante três dias, debatessem sobre os meios para tornar o país "justo e habitável com dignidade".
Um dia inteiro foi dedicado ao tema da corrupção. A imprensa já relatou as sugestões às quais a gente chegou, consensualmente ou quase: desde o financiamento público das campanhas até o voto distrital misto ou a possibilidade de revogar os mandatos antes do seu fim.
No sábado, bem na hora em que começava a discussão sobre a corrupção, chegou a revista "Veja", com a reportagem de capa sobre o suposto financiamento cubano na campanha do PT de 2002. A pior conseqüência desta série interminável de denúncias e apurações é a aparente "confirmação" de um lugar-comum desastroso: "Eles são todos corruptos" ("eles" são, no caso, os políticos).
Não me importa agora decidir se "eles" são mesmo todos corruptos. Tampouco penso que a imprensa tenha de esconder o que ela descobre só para não "comprovar" que "eles são todos corruptos". Mas o fato é que esse lugar-comum é uma armadilha para nossa capacidade de agir como cidadãos.
Aparte: a reunião do DNA não caiu na armadilha da indignação diante da corrupção generalizada, e esse não foi o menor de seus méritos. Mas a exceção não derruba a regra que vou expor.
Qual é o efeito em nós do "eles são todos corruptos"?
Várias vezes, nos últimos meses, fui entrevistado sobre o estado de espírito dos brasileiros nas circunstâncias atuais. A pergunta, quase sempre, sugeria a resposta esperada: "Quais são os efeitos em seus pacientes da decepção e da depressão nacionais?". Em geral, respondi, preguiçosamente, que, de fato, os acontecimentos são tristes e deprimentes.
Mas essa resposta óbvia (para a qual não seria preciso de um especialista) é falsa.
Em regra, o narcisismo da gente funciona assim: quanto maior a imperfeição do mundo, quanto maior a decepção que nos é imposta pela conduta dos outros, tanto maior é nossa exaltação narcisista. No caso, atrás das queixas, a constatação de que nossos representantes e governantes seriam todos corruptos está longe de ser depressiva.
É lógico: acreditar que os outros sejam todos deficientes morais é o melhor jeito de afirmar que nós, ao contrário e em comparação, somos gigantes da moralidade.
Contemplar o mundo como um vasto teatro de defeitos equivale a erigir um monumento à nossa suposta integridade, graças ao seguinte raciocínio implícito (capenga, mas gratificante): se podemos constatar que todos os outros são corruptos, é porque somos os ÚNICOS limpos. De repente, confirmar nossa grandiosa unicidade se torna nossa ocupação principal. Com isso, é paralisada nossa capacidade de transformar o mundo.
A psicologia do self (esta foi, ao meu ver, sua maior contribuição à psicanálise) mostrou o seguinte: temos acesso ao mundo e a uma ação minimamente eficaz para transformá-lo quando paramos de contemplar sua imperfeição (celebrando a unicidade de nossa diferença) e enxergamos na realidade algo (diferente de nós) que possamos idealizar.
Por exemplo, se vivo numa cidade em que acho horríveis todas as habitações salvo a minha, dedico-me integralmente a caiar de branco a fachada de minha casa, na qual, aliás, fecho-me como num sepulcro. Mas se reconheço que, na cidade, há outras moradias que são mais bonitas do que a minha, há chances que um dia eu queira sair de pincel e vassoura na mão para pintar de branco as fachadas da cidade inteira e para lavar as calçadas.
O que vale para as casas vale para os outros. Se acho que todos os outros são imperfeitos, considero-me como a única exceção, torno-me meu próprio ideal, ou seja, só idealizo (e amo) a mim mesmo. É a razão pela qual, em geral, um terapeuta se abstém de julgar moralmente seus pacientes: quem julga está quase sempre mais preocupado em comemorar sua própria integridade do que em entender o outro.
Em suma, as denúncias que assolam nosso cotidiano podem dar lugar a uma vontade de transformar o mundo só se nossa indignação não afetar o mundo inteiro. "Eles são TODOS corruptos" é um pensamento que serve apenas para "confirmar" a "integridade" de quem se indigna.
O lugar-comum sobre a corrupção generalizada não é uma armadilha para os corruptos: eles continuam iguais e livres, enquanto, fechados em casa, festejamos nossa esplendorosa retidão. O dito lugar-comum é uma armadilha que amarra e imobiliza os mesmos que denunciam a imperfeição do mundo inteiro.
quinta-feira, 27 de outubro de 2005
Saber ler e escrever
No sábado passado, no Rio de Janeiro, o presidente disse aos alunos que, uma vez formados, eles poderão mais facilmente encontrar emprego e ganhar mais do que um salário mínimo. Além disso, o progresso na qualificação dos trabalhadores contribuirá para o desenvolvimento nacional.
Um mês atrás, em circunstâncias análogas, o presidente evocou uma lembrança tocante: seu pai, analfabeto, comprava o jornal para que os outros não descobrissem que ele não sabia ler.
Juntando Fome Zero, programa de alfabetização e campanha da auto-estima brasileira, ele afirmou: "Comer e estudar possibilitam ter força para trabalhar. Possibilitam estufar o peito e dizer "eu sou brasileiro e não desisto nunca'".
Não há como não concordar: o analfabetismo é injustamente vivido como vergonha, o esforço de quem se alfabetiza na idade adulta pode e deve ser motivo de grande orgulho e, certamente, é mais fácil trabalhar comendo e sabendo ler e escrever.
Mas resta que, nos discursos citados, nada parece ser dito sobre o que significa mesmo aprender a ler (não tenho acesso à íntegra desses discursos, talvez minha observação valha apenas para a seleção relatada na imprensa).
Algum leitor tomará a dianteira: "Agora ele vai nos dizer que o importante, na alfabetização, não é melhorar o acesso ao mercado do trabalho e permitir o exercício digno da cidadania (saber ler formulários, votar, informar-se). Ele vai dar uma de intelectual e afirmar que o pessoal deve se alfabetizar para ler Camões e Machado de Assis".
É quase isso. Explico.
No começo dos anos 1970, em Genebra, fiz parte de um pequeno grupo de acadêmicos italianos que organizou um curso noturno para os imigrantes que quisessem completar o ensino fundamental. Leitores de Paulo Freire, tínhamos a ambição de fazer de nossas aulas um momento de "conscientização" (era a palavra na moda).
Pois bem, as pequenas turmas que ajudamos se interessavam, obviamente, pelo diploma (que era a condição para se candidatar a um emprego público na Itália). Mas o que todos queriam, o que os motivava, depois de um trabalho brutal, a passar as noites numa sala de aula era outra coisa.
Foi a pedido deles que inventei um jeito de resumir muitos daqueles livros sem os quais o mundo fica mais triste e pobre. Resumi a "Divina Comédia", "Dom Quixote", "Crime e Castigo" e "Moby Dick". Resumi "Édipo Rei" e a "Fedra" de Racine. Resumi "O Jovem Törless" e "O Coração das Trevas". Para cada livro, eu contava a história, mostrava como ela nos tocava de perto e trazia um parágrafo ou dois de um momento crucial, para a gente ler e comentar. Às vezes, mudava as palavras ou endireitava a sintaxe, simplificava o texto.
Mais pelo fim do curso, a gente ia ao cinema aos sábado. Depois do filme, durante noitadas das quais ainda sinto saudade, no café Landolt, era um festival de nexos e interpretações: "Ele fez que nem o capitão Ahab", "Ela era uma Fedra mesmo", "O outro se tomava pelo Grande Inquisidor" e por aí vai. As conversas se confundiam com o papo dos estudantes de letras nas mesas ao lado da nossa. Emocionava-me a familiaridade com a qual tratavam a tradição literária, mas o fato mais comovedor, para mim e para eles, era que sua experiência e sua fruição do mundo eram, de repente, mais ricas, mais complexas, mais humanas.
Como é possível que, na hora de promover o programa nacional de alfabetização, só pareçam importar as vantagens materiais e sociais do diploma? Qual incompreensão do sentido da cultura e de seu uso faz que os discursos que felicitam os candidatos só falem de emprego e mudança de status?
Não vale responder que os candidatos têm necessidades imediatas (trabalho, arroz e feijão), enquanto a cultura é um luxo: negar esse "luxo" sob pretexto de que ele não enche a barriga significa negar a humanidade dos que se sentam num banco de escola.
No discurso de setembro que citei antes, o presidente concluiu: "Se um filho de pai e mãe analfabetos, um torneiro mecânico de formação chegou a presidente da República, vocês acreditem que se quiserem podem chegar muito mais alto do que os livros dizem que vocês podem chegar. É só ter vontade, e não parem de estudar." (obviamente, o destaque é meu).
Paradoxo: se os livros dizem que a gente não pode subir na vida, por que aprender a ler e por que continuar estudando? Ah, claro, tinha esquecido: para ganhar um emprego melhor...
Não sei de quais livros o presidente está falando, mas sei que os livros de que gosto (e que meu alunos de Genebra gostavam) não dizem ao leitor que ele não pode subir na vida. Ao contrário, esses livros ensinam a sonhar, a viver a vida mais plenamente e a levá-la a sério. Em suma, eles ensinam a ser gente. Das várias maneiras de "subir na vida", é a que mais vale a pena.
quinta-feira, 20 de outubro de 2005
Assim é a vida
"Assim é a vida", "C'est la vie", "That's life", "Das ist das Leben", "É la vita": a expressão existe em todas as línguas que conheço e, em todas elas, pode ser usada num amplo leque de tonalidades, que vai do sarcasmo ressentido e cínico ("É bem a porcaria que sempre pensei que fosse") até a euforia quase maníaca ("Que maravilha!").
No meio desse leque, há um tom médio, que é o que prefiro, mas que é raro: ele concilia, misteriosamente, as dores e as penas da existência com a possibilidade de aceitá-la e mesmo de amá-la, sem entusiasmo descabido. Um grande psicanalista, Heinz Kohut, descreveu assim a sabedoria à qual podemos aspirar e que corresponde talvez ao tom que tento definir: é a sensação de "um tranqüilo triunfo interior com uma mistura de melancolia reconhecida".
Os escritores e os poetas que vivem e produzem nesse tom médio não saem de minha mesa de cabeceira. Não é uma questão de apreciação estética: na poesia americana moderna, por exemplo, Walt Whitman (eufórico) é provavelmente melhor poeta que Emily Dickinson ou Edgar Lee Masters, que cantarolam e sussurram no tom médio.
Tampouco é uma questão, por assim dizer, terapêutica: o entusiasmo contagioso de Whitman já me serviu mais de uma vez para sair de uma fossa. Faça a experiência: do fundo de uma tristeza em que o mundo pode perder sentido, declame "Song of Myself", "Canto de Mim Mesmo". É fortemente revigorante. Mas agora tente outra coisa, leia em voz baixa "Spoon River Anthology", a antologia de Spoon River, de E.L. Masters: o poema é composto por uma série de lápides mortuárias, cada uma contando as gestas duvidosas dos mortos do vilarejo.
A princípio, não parece ser uma leitura para melhorar o humor, mas, aos poucos, as vidas e as mortes triviais do povo de Spoon River assumem uma dignidade e um valor que são contagiosos e resgatam a trivialidade de nossa própria vida (e morte). Surge uma espécie de alegria triste, nada eufórica, mas profunda, duradoura e sobretudo sem ilusões. Seis anos atrás, um filme prodigioso, "Magnólia", de Paul Thomas Anderson, produziu em mim um efeito parecido.
Quem assistiu a "Magnólia" deve se lembrar do momento em que todos os personagens, separada e simultaneamente (cada um em seu lugar trágico), cantam uma mesma música, que é uma espécie de hino ao caráter inelutável da vida: "...and it is not going to stop, till you wisen up..." (e não vai parar até que você crie juízo). É um exemplo perfeito da "alegria" melancólica que é fruto da aceitação do mundo como ele é. Pois bem, está em pré-estréia em São Paulo "Crash - No Limite". É o primeiro filme de Paul Haggis, que foi roteirista de "Menina de Ouro". Quando o filme saiu nos Estados Unidos, no ano passado, a crítica (elogiosa) salientou a apresentação brutal da difícil convivência de etnias diferentes na sociedade americana.
De fato, o filme é um soco no estômago de quem acredita nos efeitos lenitivos do politicamente correto: latinos, negros, brancos e orientais se agridem e se insultam pelas ruas de Los Angeles. Parece fracassar a esperança (americana e, em geral, iluminista) de um caldeirão em que as diferenças étnicas, culturais e sociais seriam quase irrelevantes e prevaleceria o sentimento de pertencermos todos à mesma espécie.
Mas dizer que o filme de Haggis mostra a morte do sonho moderno da convivência dos diferentes seria, no mínimo, ingênuo. Ao contrário, o milagre de "Crash" (choque ou batida) é que, no filme, a feiúra e a loucura do cotidiano, assim como o próprio choque das diferenças, nos aparecem como provas de nossa humanidade comum. Pensando bem, aliás, a única versão possível do sonho moderno talvez seja esta: não a paz e o respeito recíproco, mas a descoberta de um lote de misérias e incertezas que enxergamos nos outros porque, no fundo, são sempre parecidas com as da gente.
O sonho moderno não se realiza numa fanfarra de nobres idéias compartilhadas, mas na ternura de nosso olhar diante da imperfeição do mundo, ou seja, de todos nós. Um policial abusa de sua autoridade para enfiar a mão entre as pernas de uma mulher na hora de revistá-la; o mesmo policial pode arriscar a vida para salvar a dita mulher do fogo.
Um jovem bem intencionado é horrorizado pelo preconceito racial, mas (reflexo de defesa) é o primeiro a atirar num negro que enfia a mão no bolso. Um assaltante de carros pode atropelar um chinês mas pode também soltar um carregamento inteiro de imigrantes ilegais fadados ao trabalho escravo. A arrogância de uma dama de classe "A" acaba quando ela cai na escada de casa e o único abraço que ela encontra é o de sua empregada.
A arrogância de um guardião da lei acaba quando ele assiste o pai doente no meio da noite. E por aí vai. Isto é, lá vamos nós: meio heróis, meio pilantras, capazes do pior e do melhor. Assim é a vida, no tom certo. Não perca "Crash - No Limite" sob nenhum pretexto.
Correção: na coluna da semana passada, tratei do livro "Fadas no Divã", de Diana e Mário Corso. Como uma leitora me fez prontamente notar, a editora do livro não é Artes Médicas, mas ArtMed.
quinta-feira, 13 de outubro de 2005
"Fadas no Divã"
Acabo de ler "Fadas no Divã - Psicanálise nas Histórias Infantis", de Diana Lichtenstein Corso e Mário Corso (Artes Médicas). A leitura, encantadora, produziu uma lembrança.
Quando meu filho Maximiliano era pequeno, inventei uma espécie de seriado, destinado a acalmá-lo na hora de dormir (momento que ele detestava). A história não se compara com o maravilhoso conto do vampiro vegetariano inventado por Mário Corso para suas filhas, mas é o que tenho.
Eu contava, então, as aventuras de Maximilino (sic) e da bruxa Meninge. O modelo narrativo era calcado na viagem de Pinóquio ao país de Cocanha. No começo de cada episódio, Maximilino se mostrava desobediente, preguiçoso ou desrespeitoso. A bruxa Meninge, sempre espreitando crianças com esses defeitos, aparecia para tentar Maximilino. Por exemplo: "Você não gosta de dormir cedo? Tem razão, querido. No meu país, não há adultos chatos e ninguém atrapalha as crianças que não querem ir para cama: elas brincam noite adentro. Quer vir comigo?".
Maximilino topava. A bruxa cumpria sua promessa ao pé da letra, e aqui estava a armadilha: no país de Meninge, as crianças brincavam tudo o que queriam, mas seu "querer" se transformava num "dever" mais assombroso que a chatice dos adultos, pois, naquele país, as crianças não podiam dormir nunca. Maximilino morria de saudade de sua mãe, de seu pai e sobretudo de sua cama. A coisa acabava bem: quando Maximilino expressava um arrependimento sincero, uma fada o ajudava a voltar para casa, considerando que ele tinha entendido a "lição".
Mas qual era a "lição"? Certamente, eu pensava estar administrando doses de sabedoria, tipo: os pais sabem que nada é bom sem limites.
Ora, para cada história da tradição e para várias da atualidade, Mário e Diana Corso mostram que os contos infantis (inventados ou não) são mais importantes e eficientes do que a simples e conclusiva "moral da história". Para as crianças, os contos infantis são instrumentos para o conhecimento do mundo: ao mesmo tempo, enunciados de problemas e propostas de soluções. Eles não funcionam como exemplos, mas como exercícios narrativos graças aos quais a criança descobre a complexidade das relações e dos afetos e elabora estratégias possíveis de ação.
Em matéria de relações e afetos, os contos são o equivalente das experiências concretas pelas quais uma criança adquire a capacidade de estabelecer nexos e executar operações lógicas. Só que a tarefa dos contos é mais complexa: aprendo o que é a causalidade à força de empurrar copos até que caiam, mas como faço para aprender quais regras ordenam o amor devorante de uma mãe, o ciúme de uma madrasta ou meu próprio medo de crescer? Uma criança se sente inadequada e rejeitada, outra não tolera uma separação que se faz necessária, outra se sente amada demais e prestes a ser devorada, outra começa a pensar que, de fato, ela foi adotada, outra ainda não sabe o que fazer com sua curiosidade sexual ou não consegue imaginar como sair um dia do amparo familiar para se aventurar na vida. Os contos infantis permitem formular as questões e explorar as soluções possíveis.
O livro de Diana e Mário Corso, justamente, é organizado em capítulos segundo as questões e as soluções propostas pelos contos.
Mas voltemos à história de Maximilino e Meninge. Na hora em que meu filho tentava descobrir qual seria a balança certa de deveres e prazeres, eu lhe propunha uma narrativa radical segundo a qual, na vida, só haveria deveres: nas minhas histórias, o prazer se tornava sempre um pesadelo, ou melhor, uma obrigação pior do que o dever.
Depois da leitura de "Fadas no Divã", não é difícil entender por que muitos contos que os pais inventam para seus rebentos podem ser elogios da obediência e do dever como únicas soluções para os problemas da vida. Os filhos recém-chegados, por mais que façam nossa felicidade, são um novo fardo, mas, obviamente, não queremos admitir que somos pais também por obrigação. A apologia do dever, com a qual enchemos os ouvidos de nossos filhos, é em grande parte endereçada a nós mesmos: uma exortação a persistir, teimosamente, na tarefa de sermos pais.
"Fadas no Divã" tem um precedente ilustre, de Bruno Bettelheim, "Psicanálise dos Contos de Fada". Mas o livro de Diana e Mário Corso é, simplesmente, melhor. Por duas razões.
A primeira é que Bettelheim se ocupou só dos contos de fadas tradicionais, enquanto Diana e Mário Corso analisam também as principais narrativas infantis contemporâneas, de Mafalda a Harry Potter.
A segunda é substancial: pela sutileza da interpretação dos contos e pela clareza do texto, "Fadas no Divã" é uma extraordinária introdução à psicanálise. Não é surpreendente: os contos infantis, afinal, são o repertório de conflitos, fantasias e afetos que ainda estão em todos nós.
Nota: o filme "Os Irmãos Grimm", de Terry Gilliam, que está em cartaz nestes dias, tem justamente o mérito de lembrar que os contos de fadas servem para encontrar saídas nos apertos.
quinta-feira, 6 de outubro de 2005
Armas: a solução de João
Atualmente, no Brasil, esse direito é regulamentado. Só é possível comprar armas até o calibre 38; o comprador (maior de 25 anos) não pode ter antecedentes penais, deve passar por um teste psicológico que comprove um certo equilíbrio emocional e deve aprender o manuseio de sua arma num breve curso. Com isso, ele é autorizado a guardar a arma em casa ou no escritório. A permissão de carregar a arma consigo, no corpo ou no carro, é reservada a quem exerce uma profissão de risco e está exposto a uma ameaça de vida (Forças Armadas, policiais, promotores, seguranças particulares). Existe uma exceção para a caça, em zonas rurais.
Se o "sim" ganhar no próximo referendo (o "sim", diga-se em prol da clareza, significa sim à proibição da compra de armas), quem já tem armas legais e registradas poderá guardá-las, mas não poderá mais adquirir munições.
João mora numa casa da periferia paulistana, é motorista de táxi, pai de família, leitor assíduo de jornais e revistas semanais. Conversamos com freqüência e, no sábado passado, o tema foi o referendo.
João observou que, para a maioria da população, as armas, de qualquer forma, são muito caras. Quanto aos mais abastados, seus seguranças particulares continuarão armados. Em suma, o referendo terá conseqüências só para a faixa de brasileiros à qual ele pertence.
Logo, João evocou o argumento conhecido: a proibição não resolverá o problema da violência, pois desarmará o cidadão, e os bandidos continuarão adquirindo armas na ilegalidade (quem está na praça sabe que é fácil).
Respondi que, contrariamente ao que a gente imagina, a maioria dos assassinatos por arma de fogo não tem nada a ver com assaltos e invasões de residências. Leva-se um tiro do marido ou da mulher, numa briga de família ou numa discussão no bar da esquina em que alguém não foi com a cara da gente. A arma que mais mata não é a arma ilegal do bandido, mas a arma que o cidadão comum tem em casa e que ele vai buscar, enfurecido, depois do terceiro gole.
João concordou, mas notou que ele não bebe nunca, não usa droga e está bem de cabeça (tudo verdade). Uma arma em casa lhe daria uma certa segurança, a impressão de poder defender sua família. Até agora não comprou, mas faz tempo que pensa nisso. Além do mais, mesmo sem ter uma arma, ele prefere que os ladrões eventuais se preocupem com a idéia de que o dono poderia estar armado.
Comentei que, às vezes, os ditos ladrões assaltam justamente para roubar a arma de casa. Também lhe contei que, um dia, Jack Maple (o braço direito de William Bratton, que dirigiu a polícia de Nova York nos anos 90) me disse o seguinte: se a gente não está treinado, ter uma arma na mão só serve para ser baleado. E não basta ter feito um curso e ser capaz de acertar o alvo, é preciso estar disposto a atirar primeiro e a matar. Para isso, é necessário treinar até que o tiro se torne uma ação quase automática: 300 balas por semana, no mínimo. Mesmo usando balas recarregadas, o custo se torna rapidamente enorme. Aparte: será que nossos policiais treinam com 300 balas por semana?
Outra questão: uma arma em casa só adianta se ela estiver acessível e carregada. Como evitar que as crianças a encontrem, brinquem e engrossem a estatística dos acidentes? A tudo tem resposta: a arma estará no quarto, do lado da cama, e será carregada só à noite. O problema é que chega o dia em que a gente se esquece de descarregá-la de dia ou de carregá-la à noite.
João foi sensível a meus argumentos, mas a vontade de poder defender sua família é mais forte.
Não é estranho: se não posso proporcionar a meus filhos a melhor escola e o melhor hospital (sem falar das férias, dos brinquedos e da roupa), quero me resgatar na hora de defendê-los. Se meu apelo à força pública não é ouvido ou vale menos do que o de outros mais favorecidos, quero mostrar à minha família que não sou trouxa: por uma vez, terei a chance de ser o herói de casa.
Eis, então, a solução de João.
Ele vai comprar imediatamente duas armas -na ilegalidade, pois, depois do referendo, talvez o passo seguinte seja recolher as armas legais e declaradas. Ele comprará também seis balas importadas para a defesa e uma caixa de recarregadas para treino. Treinar onde? Pois é, os seguranças continuarão treinando, e quem não tem amigos?
No referendo, ele votará "sim", para proteger (contra eles mesmos) os malucos que não sabem se controlar e acabam matando o vizinho numa bebedeira ou os desvairados que não conseguem se organizar para evitar que as crianças brinquem com uma arma carregada.
Depois do referendo, quando o preço das armas no mercado negro aumentará, ele revenderá uma das duas armas que comprou. O lucro ajudará a pagar pela arma com a qual ele vai ficar.
Essa é a solução de João. Por favor, não me pergunte a minha.
quinta-feira, 29 de setembro de 2005
É possível estar mal e pensar direito?
Tomemos, por exemplo, a depressão, um estado patológico que, em princípio, não nos torna delirantes nem alucinados. "Ser" depressivo (diferentemente de "estar" deprimido) significa passar, ao longo da vida, por vários episódios de depressão profunda e sofrer de uma constante dificuldade em encontrar a vontade de viver.
Pois bem, será que ser depressivo implica (como causa ou como efeito) um erro de percepção e de pensamento? Qualquer terapeuta gostaria que fosse assim: bastaria corrigir o erro e, com isso, quem sabe a depressão fosse "curada". Se você é depressivo e enxerga o mundo como a brincadeira sádica de um deus maléfico, talvez você seja vítima dessa visão "errada". Ao corrigi-la com as palavras certas, a gente transformaria seu humor de vez, faria de você outra pessoa. Mas sobra a pergunta: será mesmo que, por você ser depressivo, sua percepção do mundo está errada?
Em 1979, foi publicada uma experiência (Abramson e Alloy, "Journal of Experimental Psychology", vol. 108, nº 4), na qual dois grupos de sujeitos (os deprimidos e os "saudáveis") deviam descobrir se suas ações tinham ou não alguma influência sobre uma lâmpada que, de fato, se acendia e se apagava ao acaso. Os não-deprimidos, apesar dos desacertos, concluíram que suas ações eram eficazes. Os deprimidos concluíram (corretamente) que suas ações não tinham eficácia nenhuma e que não havia como fazer a cabeça da maldita lâmpada.
Para alguns críticos, a experiência demonstrava apenas o pessimismo dos deprimidos. Mas resta que, no caso, a conclusão dos deprimidos foi certeira; portanto caberia salientar o extravagante otimismo que extraviou os não-deprimidos e constatar o realismo dos deprimidos. Aliás, a questão levantada pela experiência de 79 entrou para a história da psicologia como problema do "realismo depressivo" (há novas experiências publicadas no recente vol. 134 do "Journal of Experimental Psychology").
O interesse desse debate não é só clínico. Acaba de sair um livro imperdível, "Lincoln's Melancholy: How Depression Challenged a President and Fueled His Greatness" (a melancolia de Lincoln: como a depressão desafiou um presidente e alimentou sua grandeza), de Joshua Wolf Shenk.
Shenk se baseia nos relatos dos que foram próximos de Abraham Lincoln para confirmar que ele foi clinicamente deprimido durante a vida toda. Logo, o autor se pergunta se essa depressão grave e crônica constituiu um impedimento ou se, ao contrário, foi uma vantagem na conduta do presidente americano durante a Guerra de Secessão.
Ora, Shenk argumenta de maneira convincente que a depressão de Lincoln foi responsável por suas qualidades de estadista. A seguir, alguns exemplos:
1) A depressão clínica é sempre acompanhada por um intenso processo de pensamento: reavaliação contínua da realidade, dúvidas sobre a ação certa, exame constante de consciência e por aí vai. Esse processo leva o sujeito a um conhecimento especial das contradições de sua própria alma e da dos outros. Na vida pública, isso permite negociar sem desprezo pela parte adversa.
2) O deprimido que ultrapassa suas crises sem sucumbir tem, em regra, a coragem e a capacidade de encontrar motivações sem recorrer a grandes princípios (o que pediria um entusiasmo que é impossível na depressão). Lincoln, embora convencido de que a abolição da escravatura fosse moralmente correta, nunca invocou a certeza de que Deus estaria do seu lado, mas alegava (inclusive por escrito) que, quanto a Deus, cada lado podia considerá-lo seu aliado. É uma outra qualidade crucial para a vida pública, a não ser que a gente prefira entregar as rédeas do governo a iluminados e fundamentalistas.
3) A adversidade, para o deprimido, é, por assim dizer, natural (nada existe sem antagonismo). Deparar-se com oposição e derrota é, para ele, uma travessia normal. O resultado é a perse- verança.
Recentemente, uma psiquiatra (Kay Redfield Jamison, "Touched with Fire: Manic Depressive Illness and the Artistic Temperament", tocados pelo fogo: a doença maníaco-depressiva e o temperamento artístico) mostrou que uma cura apressada da depressão nos privaria de inúmeros talentos artísticos e literários. Shenk estende o mesmo princípio a uma figura política; ele mostra que, no caso de Lincoln, a depressão não foi "uma falha de caráter que desqualificaria a liderança de um sujeito". Longe de comprometer o pensamento e as decisões do presidente, ela foi o traço de caráter que fez dele o estadista lúcido e necessário num momento sombrio da história de seu país.
Em suma, muitas aventuras dolorosas da mente são partes da subjetividade de quem sofre e, às vezes, partes irrenunciáveis, cuja "cura" deixaria o mundo mais pobre e mais estúpido.
quinta-feira, 22 de setembro de 2005
Luxo e avareza
Gilles Lipovetsky, em "O Luxo Eterno" (Companhia das Letras), observa que o luxo está se tornando mais democrático. A razão que ele propõe é a seguinte: hoje, o luxo não consistiria mais em consumir de maneira extravagante ou em acumular bens caros e raros, mas em nos permitirmos experiências intensas e extraordinárias ou, então, em tratar de nossa saúde.
De fato, os objetos de luxo estão se tornando um pouco bregas. É cafona servir de cabide a uma coleção de roupas assinadas e mesmo carregar ostensivamente uma carteira de grife (se essa foi a única coisa que a gente conseguiu comprar).
O estilo despojado parece ser uma marca de elegância mais certeira do que uma cuidadosa combinação de vestuário e acessórios. É porque o despojamento transmite a mensagem seguinte: "Eu não perco tempo me olhando no espelho e verificando se estou vestido "direito'; meus interesses são outros". Ou seja, você deambula pelos shopping centers ao passo que eu levo minha calça surrada pelas estradas do mundo: meu luxo é que vivo de verdade, enquanto você passa de pose em pose.
Como exemplos dessa nova concepção do luxo, Lipovetsky lembra o caso do homem que pagou 22 milhões para passar uma semana na estação espacial internacional e, mais geralmente, invoca o enorme mercado da saúde e da forma. Ele conclui que não anelamos mais adquirir e ostentar bens; preferimos nos dar o luxo de viver experiências extremas e de cuidar de nosso bem-estar físico e psíquico. Ou seja, o luxo hodierno seria uma questão de vivências: velejar pelo cabo de Boa Esperança, comer vegetais orgânicos, freqüentar uma academia, um spa ou um psicanalista.
É um progresso? Lipovetsky parece pensar que sim, visto que, segundo ele, as novas práticas do luxo teriam um valor intrínseco e não só ostentatório: treino ou viajo para meu próprio bem ou para meu prazer, não para merecer a consideração ou suscitar a inveja dos outros. O novo luxo não estaria a serviço da divisão social entre os que têm e os que não têm; ele estaria a serviço da fruição da vida. Legal, não é? Pois é, eu não estou muito convencido disso.
O luxo atual, por mais que pareça consistir em vivências e cuidados de si, continua a serviço das aparências. Por exemplo, o despojamento, do qual falei antes, fomenta uma indústria de paramentos: é possível comprar uma calça velha muito mais cara do que seu equivalente novo de fábrica, e a prática de aventuras extremas talvez propague uma mensagem parecida com a dos jeans rasgados: "Veja como vivo intensamente". Do mesmo jeito, o cuidado com a forma talvez seja, antes de mais nada, uma preocupação com as formas: "Veja meu corpinho". Mas isso é o de menos.
O que me inquieta mais, no novo luxo, é sua avareza. Explico.
Uma boa parte de nossos cuidados com a forma alvejam a preservação de nossas forças, de nossa juventude e, enfim, da duração de nossa vida: paradoxalmente, trata-se de um luxo em que gastamos para poupar.
Quanto à paixão por experiências extremas, impressiona-me o caráter marginal e extraordinário das experiências: elas são interrupções na vida de cada dia, momentos de férias.
O pretenso luxo das vivências é quer seja uma defesa contra o desgaste de nossas energias, quer seja uma válvula de escape.
Em suma, talvez estejam em vigor ideais novos (o ideal da aventura e o do cuidado de si), diferentes do antigo ideal do luxo, em que vislumbrávamos os apetrechos necessários para parecermos chiques, ricos e famosos. Mas esses novos ideais se limitam a alimentar uma eterna preparação física e psíquica (os atos ficam para amanhã) ou, então, realizam-se em momentos de evasão. É como se, sonhando em ser exploradores e viajantes, encontrássemos nossa "satisfação" fazendo as malas ou sendo turistas de vez em quando.
Alguém dirá: qual é o problema? Será que deveríamos abandonar casa, trabalho, filhos e família para procurar aventuras mirabolantes e, sobretudo, permanentes? Nada disso.
A questão é esta: como foi que nossa experiência cotidiana se empobreceu a ponto de passarmos nosso tempo nos preparando para 15 dias por ano de pseudo-aventuras de férias obrigatórias? Como aconteceu de o "luxo" deixar de ser uma forma suntuosa de gastar a vida e se tornar uma forma de poupá-la em vista de eventuais escapadelas no fim do ano ou nos feriados?
As novas formas do luxo, apontadas por Lipovetsky, sugerem que estamos vivendo na impressão de uma mediocridade crônica, treinando e poupando forças para um "alhures" geográfico e temporal.
Ora, o verdadeiro luxo das vivências consistiria em viver não na espera ou no treino, mas aqui e agora, com toda a intensidade possível.
Neste ano, no Brasil, foram publicados três livros de Lipovetsky: "A Era do Vazio " (que é de 1983), "A Sociedade Pós-Moralista Crepúsculo do Dever" (que é de 1992) e "O Luxo Eterno" (que é de 2003 e reúne dois ensaios, um de Lipovetsky e outro de Elyette Roux). Além disso, acaba de sair "A Invenção do Futuro", debate organizado por Miguel Reale Jr. e Jorge Forbes, com a participação de Lipovetsky.
quinta-feira, 15 de setembro de 2005
Antes sós do que (mal) acompanhados?
A literatura é o grande repertório moderno dos ideais, dos sonhos e mesmo dos pensamentos morais. O primeiro romance desse repertório é um sonho de solidão: "Robinson Crusoé", de Daniel Defoe, publicado em 1719. Desde então, a história do homem que sobrevive numa ilha deserta continua nos interessando (a título de exemplo, houve as versões literárias de Coetzee, "Foe", e de Michel Tournier, "Sexta-Feira ou a Vida Selvagem", e, recentemente, o filme de Robert Zemeckis, "Náufrago"). Detalhe: na ilha deserta, estamos dispostos a encontrar ao menos um semelhante, Sexta-Feira, mas à condição de que seja claramente um subordinado.
Visto esse precedente literário inaugural, não é estranho que sejamos criados, em geral, na desconfiança de tudo o que é grupo.
Há dois provérbios que me acompanham desde a infância: "Antes só do que mal acompanhado" (ou seja, sempre melhor sozinho) e o ditado italiano "Chi fa da sé fa per tre" (quem faz sozinho faz por três). Este último, aliás, instilou-me uma antipatia pela pedagogia do trabalho em grupo, e isso atrapalhou a carreira escolar de meus filhos, pois nunca parei de suspeitar que, se João ou Maria viessem "para estudar junto com eles", seria só bagunça ou perda de tempo.
É claro, havia também o provérbio que diz que "a união faz a força". Mas faz a força a que preço? Naqueles dias, a história recente dizia que a massa era poderosa e irresistível, mas irremediavelmente burra e cruel. Meus pais tinham conhecido os 20 anos do fascismo italiano e assistiam ao desastre do socialismo real, manifesto (para quem quisesse ler e ouvir) desde os anos 50. Não seria no Brasil de hoje que eles seriam desmentidos: partidos e movimentos, sobretudo quando têm uma forte coesão, parecem ser sempre piores do que as pessoas que os compõem.
Mais tarde, consagrei minha tese de doutorado a esta pergunta: como é possível que homens quaisquer, como você e eu, sejam levados a funcionar como o braço armado de genocídios e extermínios que repugnariam a suas consciências se eles agissem sozinhos? Cheguei a uma conclusão que tento resumir: não é por medo de punições nem por convicção ideológica. É porque, para o sujeito moderno, tanto a dúvida sobre quem ele é quanto a incerteza sobre o que ele quer da vida são fardos imensos. Ele pode ser levado, portanto, a sacrificar sua individualidade à condição de que o grupo lhe ofereça a ilusória impressão de "saber" quem ele é e quais são suas tarefas. Um homem qualquer pode colocar fogo numa sinagoga repleta ou despedaçar nenês contra uma parede para ganhar o "conforto" de sentir-se parte eficiente de um grupo.
A desconfiança dos grupos não se desmentiu quando me ocupei um pouco da função da turma e da gangue (sobretudo adolescente) na violência criminosa. Por caminhos psicológicos um pouco diferentes, aqui também o grupo potencializa o que há de pior em alguns de nós. Sentir-se reconhecido pelos "compadres" é uma razão suficiente para esquecer-se de inibições e freios morais básicos. Os quatro rapazes que, em 1997, em Brasília, queimaram vivo o índio Galdino, tomados um a um, nunca teriam perpetrado aquele horror.
Aparte: a sedução do grupo não constitui um atenuante. Ao contrário, a covardia que leva alguém a trocar sua humanidade pelo conforto coletivo é, a meu ver, uma agravante.
Dos grupos só se salvaria, em princípio, a família: já em 1812, o alemão J.D. Wyss publicara "Os Robinsons Suíços", em que transformava a gloriosa solidão de Robinson Crusoé no ideal da vida familiar numa ilha deserta. A idéia alimentou um seriado televisivo americano nos anos 60. Na mesma linha e época, a família de "Perdidos no Espaço" chamava-se Robinson. Mas, desde os anos 70, a antipsiquiatria inglesa (Laing, Cooper, Esterson) mostrava que a família era a fonte originária do sofrimento neurótico e da loucura.
Em suma, durante os dois últimos séculos, inventamos utopias coletivas, mas elas devoram nossa liberdade; sonhamos com o calor do lar, mas ele parece ser responsável por muitos de nossos males. Atrás da "união que faz a força", paira o medo (justificado) de que, nessa união, nossa singularidade perca o melhor de si. E, atrás do sonho de Robinson, paira o pavor (também justificado) de uma solidão sem conforto.
Para lidar com esse paradoxo, quando sou chamado a "ajudar" grupos em dificuldade (famílias e casais), adoto um pequeno artifício: em vez de explorar as falhas (ou seja, em vez de perguntar o que cada um estima estar perdendo por causa da relação), tomo, às vezes, o caminho oposto e pergunto o que cada um estima estar ganhando na convivência com o outro.
É pouco, mas é um jeito de as pessoas se lembrarem de que, apesar de todos os pesares, vale a pena pagar um preço para elas não viverem sozinhas. Claro, depende do preço.
quinta-feira, 8 de setembro de 2005
Nova Orleans e a confiança básica no mundo
Karl Jaspers, o filósofo alemão, dizia que a ciência pede ao usuário uma espécie de fé. De fato, podemos não saber como funcionam o telefone, a televisão, o cabo, mas acreditamos no seu funcionamento.
Para os psicanalistas, essa fé na ciência e na técnica é parte de uma disposição mais geral: a "confiança básica no mundo". Ela acompanha cada sujeito que viu a luz num ambiente que o acolheu com carinho e simpatia. Suponhamos: ninguém nos chutou quando estávamos no desamparo da primeira infância; quando chorávamos, alguém comparecia (mesmo que fosse para nos enfiar uma chupeta na boca quando, na verdade, precisávamos que trocassem a fralda). Em regra, os que tivemos essa sorte (a grande maioria dos humanos) continuamos pensando durante a vida toda que os outros e o mundo nos querem bem.
Conseqüência: podemos viver na Califórnia, embora esteja certo que a região será devastada por um terremoto; podemos viver numa cidade como Nova Orleans, abaixo do nível do mar, protegida apenas por diques antiquados; podemos viver em andares altos, fora do alcance de qualquer escada de bombeiros.
A confiança básica no mundo é também um alicerce da ordem social, pois ela vale como um lembrete permanente que diz: há alguém que cuida, alguém que se importa. Nos termos de nossa infância: os adultos voltarão para nos dar comida e ainda para verificar se a gente se comporta direito.
Não há pesquisas que meçam o número de interrupções da energia elétrica que é necessário para que eu pare de confiar na Eletropaulo. Em compensação, existe a teoria das janelas quebradas, que, nos anos 90, revolucionou nossas idéias em matéria de manutenção da ordem social (George Kelling e Catherine Coles, "Fixing Broken Windows", arrumando janelas quebradas). Experiência básica em psicologia social: se abandono um carro num bairro de classe media, ele será depenado só depois de oito semanas. Se, antes de abandoná-lo, aplico algumas boas marteladas nos faróis e na lataria, ele será depenado em três dias. Outra: num metrô coberto de grafite a criminalidade é muito mais alta do que no mesmo metrô se ele for lavado e limpado a cada noite.
Por quê? Os faróis quebrados e os grafites assinalam que ninguém se importa. E, se ninguém se importa, tudo é permitido. Será que isso basta para entender as rondas armadas de malfeitores e vigilantes em Nova Orleans?
O prefeito da cidade tentou explicar a onda de saques por indivíduos e gangues lembrando que, além dos serviços básicos, também parou de funcionar o comércio de droga, o que teria deixado alguns sujeitos bem "nervosos". É verdade: faz parte da confiança básica acreditar que o traficante da esquina estará lá de novo amanhã. Mas, para explicar o acontecido, não é preciso recorrer à falta de droga (ou de nicotina).
Em Nova Orleans, a ruína da confiança básica foi brutal: o telefone emudeceu, a força acabou, o celular perdeu o sinal, e ninguém respondia aos gritos de ajuda.
Ora, para alguns, abriu-se assim um tempo de desespero. Para outros, a constatação de que "ninguém se importa" foi sedutora e esperada. Nada de estranho nisso: afinal, saquear lojas de armas e circular pelas ruas à procura de comida, de água, de gasolina e de outros humanos que possam ser aterrorizados é o roteiro de numerosas narrativas populares.
Pense nos filmes da tríade de Mad Max, em "O Mensageiro" e "O Segredo das Águas", em "Fuga de Los Angeles" ou "Fuga de Nova York", ou no romance "The Stand" ("A Dança da Morte"), de Stephen King. Pense em videogames como "Duke Nukem" ou "Doom".
Não conheço um adolescente que, em alguma vez, não tenha sonhado com a destruição do mundo (o mundo em que confiamos) e com a aventura de um recomeço radical.
A primeira tarefa é sempre a de armar-se, porque, num universo zerado, não vale o prestígio dos anos ou da experiência, do saber ou do dinheiro: a autoridade é justamente reduzida à sua expressão mais simples e mais facilmente contestável, que é a força.
Qual é o charme desse momento do lobo?
Acontece que o amor que nos acolhe no mundo, instituindo nossa confiança em "alguém que cuida", torna-nos devedores ou, no mínimo, reféns de um passado que é a história dos outros que já estavam lá e nos receberam. Por isso a catástrofe que acaba com nossa confiança no mundo é a última fronteira da autonomia: se não há mais alguém que cuida, ninguém nos antecede, ninguém está acima da gente: somos livres como só pode ser livre quem não tem história.
É a versão extrema do mito, moderno e banal, do "self-made man", o homem que não precisa de ninguém.
Aposto que, nas ruas de Nova Orleans, há alguns desapontados com a volta gradual a um mundo "confiável".
quinta-feira, 1 de setembro de 2005
"2 Filhos de Francisco" e meu gosto pela música sertaneja
Na trilha sonora da minha infância, na Itália do começo dos anos 50, destacavam-se duas músicas do grande Roy Acuff: "Night Train to Memphis" (o trem noturno para Memphis), que é uma invitação à viagem, e "That's what Makes the Jukebox Play" (é isto o que faz tocar a jukebox), que é uma arranca-lágrimas. Penei para transcrever as letras; depois disso, cantava junto (para desespero de meus familiares).
Mais tarde, gostando do cinema western, fui tomado de paixão por Gene Autry. Traduzir western por bangue-bangue é péssimo: na temática western, como na country, o que importa não são os tiros, mas a vontade de colocar o pé na estrada, as insídias do caminho (bandidos, neve e sol do deserto) e, é claro, a saudade.
Depois de um período em que preferi a canção italiana e o pop, descobri Bob Dylan, em 1964, com "The Times They Are A-Changin'" (os tempos estão mudando), primeiro hino da contracultura. Bob Dylan não é só um cantor country, mas foi graças a ele (e a James Taylor -"Sweet Baby James" ainda é um de meus discos preferidos) que voltei à minha paixão da infância. Desde então, sou fã de Willie Nelson.
Logicamente, uma vez instalado no Brasil no fim dos anos 80, a música sertaneja me conquistou. Mas meu gosto era inconfessável: nos meios que eu freqüentava, escutar Leandro e Leonardo e, logo depois, Zezé di Camargo e Luciano era considerado um sinal de extrema vulgaridade musical. Minha simpatia pelo country americano era aceitável, mas gostar dos sertanejos nacionais, isso era outra história.
Ora, o Brasil, que eu saiba, é o único país que produziu e produz uma música country (a sertaneja) que rivaliza com o country norte-americano. Há razões para isso: o tamanho e a diversidade do território (que ainda comporta áreas selvagens), o passado bandeirante, a origem de larga parte do povo na saudosa viagem do imigrante e a urbanização acelerada, que acarreta uma brutal mobilidade geográfica e social (mais viagens e mais saudades). Esse repertório temático country encontrou, no Brasil, o gênio musical que todos verificam na riqueza da MPB.
Aposto que, se nossas duplas sertanejas cantassem em inglês, elas triunfariam em Nashville como triunfam em Barretos. Mas sempre encontro alguém para me "explicar" que a música sertaneja é "caipira", ou seja, não toca aquelas cordas universais do sentimento que fazem a grandeza do country americano.
Pois bem, os que acreditam na "inferioridade" da música sertaneja deveriam assistir a "2 Filhos de Francisco", o esplêndido filme de Breno Silveira.
A história de Zezé di Camargo e Luciano não é apenas comovedora: ela é a quinta-essência do espírito country (ou sertanejo, tanto faz). Há a roça da infância, que, na saudade da lembrança, aparece como paraíso perdido, embora fosse pobre e obcecada pela vontade de ir embora (é o desejo "louco" de Francisco para seus filhos). Há, na dureza da vida, o constante consolo da música, não como ocasião de devaneio, mas como vontade de dar à experiência a intensidade de um vibrato. Há a estranheza do encontro com a cidade, a dor de uma mudança que troca a miséria tranqüila do campo pela inquieta miséria urbana. Há a errância do menestrel pelo mundo, que cobra um preço, às vezes, fatal. Há a dificuldade de amar e a obstinada permanência dos afetos básicos, familiares.
Em suma, a história da dupla é um repertório quase completo dos temas de sempre da música country, que canta os sentimentos dos desterrados, ou seja, de todos nós, que vivemos na viagem entre a saudade e a esperança.
Mais uma questão: na história de Zezé e Luciano, é crucial o desejo de Francisco que os filhos se tornassem músicos e que a música os levasse longe, na vida e no mundo. É um pai que tem precedentes ilustres -entre eles, o pai de Mozart, o qual tinha uma vantagem: podia pagar as aulas para o filho. Francisco trocou um porco, uma colheita, sei lá quantos queijos e seu revólver por um violão e uma sanfona para os filhos. Será que ele era "doido", como pensava o sogro?
Em geral, não se aconselha os pais a terem um desejo tão definido sobre o futuro dos filhos. No entanto, o drama de muitos pais é que não conseguem transmitir aos filhos nem sequer a capacidade de desejar (seja lá o que for). E o fato é que Francisco conseguiu passar sua paixão para Mirosmar (Zezé), Emival e Welson (Luciano). Foi um fardo para eles? Pois é, desejar não é de graça.
Enfim, é banal ler, em textos de auto-ajuda, que, à força de desejar, a gente consegue: quem não larga o osso é recompensado um dia. Aviso: não é verdade. A "loucura" de Francisco e a paixão que ele transmitiu a seus filhos não garantiam nada: eles poderiam fracassar. A intensidade do desejo não leva necessariamente ao sucesso.
Mesmo assim, há uma boa razão para desejar com força: quase sempre, quem não se atreve a querer "doidamente" sofre da única culpa que a gente nunca se perdoa, a culpa de não ter ousado viver segundo nosso desejo.
quinta-feira, 25 de agosto de 2005
"Hotel Ruanda" e o espírito de porco da razão
O que você estava fazendo entre abril e junho de 1994? Para mim, foi uma época sem grandes eventos: atendia a meus pacientes, cuidava de filhos, família e tal. Pois bem, enquanto tocávamos nossa vida, em Ruanda (um pequeno país que até então mal sabíamos situar no mapa da África) 1 milhão de homens, mulheres e crianças foram assassinados.
Uma média de 10 mil por dia, a golpes de facão. Graças à estréia do filme (imperdível) "Hotel Ruanda", de Terry George, muito está sendo escrito, nestas semanas, sobre a história do massacre e suas "causas" absurdas. Mas quero apenas pensar no grito das vítimas pedindo ajuda e na nossa capacidade (ou incapacidade) de ouvir e intervir.
No caso de Ruanda, a intervenção foi nula: depois do assassinato de dez soldados da força que devia manter a paz no país, as Nações Unidas evacuaram os ocidentais e diminuíram sua presença armada até à insignificância. O maior esforço da ONU, durante a crise, consistiu em evitar qualificar os acontecimentos como genocídio, pois esse termo teria forçado o conselho de segurança a recorrer à força para pôr fim ao massacre e punir os responsáveis. As hesitações do mundo inteiro eram compreensíveis: uma expedição militar apropriada custaria caro em fundos e vidas.
Agir sem a coragem de encarar baixas seria uma estupidez; a prova já fora feita em 1993: depois da morte de 18 soldados americanos em Mogadício (narrada em "Falcão Negro em Perigo", de Ridley Scott), a ONU, simplesmente, voltou para casa, deixando a Somália nas mãos de hordas de bandidos. Obviamente, qualquer governo, na hora de oferecer meios e tropas, prefere sentir-se legitimado pela opinião de seu povo: se não pela voz das massas, ao menos pela das elites pensantes.
Quando o presidente Clinton, em 1995, despachou 20 mil soldados para a Bósnia, sua decisão era aprovada por apenas 36% da população americana. No entanto muitos intelectuais e jornalistas americanos pressionavam o governo: viajavam para a Bósnia, relatavam o horror e elevavam sua voz pedindo uma intervenção imediata. Chegaram a ser chamados "bombardeiros de laptop". Ora, freqüentemente, durante as tragédias dos últimos anos, as elites intelectuais ocidentais se esqueceram daquela idéia da razão moderna que diz assim: qualquer homem é nosso semelhante, nosso vizinho.
Com isso, recusaram-se a ser porta-vozes do grito das vítimas. Preferiram (e seguem preferindo) adotar outros traços da razão moderna, confirmando o pessimismo de Max Horkheimer em "Eclipse da Razão" (ed. Centauro). Para a razão moderna em sua versão cínica, 1) não há avaliação objetiva dos atos, ou seja, o que importa não é considerar os efeitos de um ato, mas avaliar as motivações do agente, 2) toda motivação é, em última instância, interesseira. Conclusão: a ação é sempre culpada, pois suas "verdadeiras" razões devem ser sórdidas.
Uma das conquistas iniciais da razão moderna foi a descoberta seguinte: os acontecimentos não se confundem com necessidades naturais -atrás deles, sempre há interesses subjetivos. Essa conquista se transforma em miséria por causa de um estranho espírito de porco, que conclui: quem se mete é sempre sujo, melhor não se meter e reservar-se assim o direito de berrar, ao mesmo tempo, contra a inação dos poderosos ou, caso eles se atrevam a agir, contra os motivos supostamente abjetos de sua ação. Assim, as tropas brasileiras estão no Haiti para servir à política escusa (e fracassada) do Itamaraty.
Imaginar que elas estejam salvando vidas, por mais que seja um fato, seria um conto para boi dormir. Se houver baixas brasileiras, só ouviremos críticas à política do governo; nenhuma palavra sobre o grito dos haitianos: será que ninguém ouve? Os que dizem hoje que "Hotel Ruanda" é um ato de acusação contra a covardia do Ocidente são os mesmos que protestaram contra a intervenção da Otan na Bósnia.
Os que se indignam porque o Ocidente deveria intervir hoje no Sudão gritariam, se a intervenção acontecesse, que o Ocidente está apenas perseguindo seus sinistros desenhos. Para eles, quem age é vergonhosamente interesseiro e quem não age é um covarde: só eles, que protestam contra os dois, saem bem na foto. Essa é a moral do espírito de porco da razão moderna.
Pequeno dilema moral.
Um de meus filhos me contou que, na semana passada, voltando para casa de bicicleta, viu uma moça que acelerava o passo enquanto estava sendo importunada por um homem. Ele perguntou à moça se ela precisava de ajuda. A moça respondeu que sim, por favor. Meu filho (capoeirista) encarou o homem; uma rasteira resolveu a situação.
Ora, talvez ele não tenha se metido pelas melhores razões: ele é briguento e, provavelmente, estava interessado na moça. Além disso, comprar uma briga noturna com um desconhecido é um risco insensato, que eu preferiria que ele não corresse, sem contar que uma rasteira pode matar quem cai sem preservar a nuca.
Agora, ele teve ou não razão de intervir?
quinta-feira, 18 de agosto de 2005
"Mensalão", caixa dois e outras falcatruas: essência ou acidentes?
Por exemplo, a laranja tem uma forma arredondada e, quando madura, apresenta uma cor entre o vermelho e o amarelo: isso, junto com o tempo necessário e o clima próprio para a maduração, é parte da essência da laranja.
Mas uma laranja pode estar amassada e pode ser cortada no meio para extrair suco, ou dividida em gomos para ser saboreada: esses são acidentes, ou seja, são traços apresentados pela laranja que tenho na mão, mas não são implicações da essência da laranja.
Note-se que há acidentes que só se tornam possíveis por causa dos traços essenciais da laranja. Ninguém, em princípio, quer o suco de uma fruta amarga e fedorenta: o gosto agradável da laranja (que faz parte de sua essência) é responsável por sua transformação (acidental) em suco.
A distinção entre essência e acidentes é também evocada no consultório dos terapeutas. Em geral, quando as coisas não dão certo, os humanos preferem pensar que é por acidente, não por essência. Se a relação com meu filho é uma série ininterrupta de brigas infelizes, prefiro pensar que isso não tem nada a ver com o meu ou o seu jeito de SER: é porque eu ESTOU nervoso por causa do trabalho ou porque ele ESTÁ tenso por causa da chata da namorada. Conseqüência: pede-se ao terapeuta que ele arrume a situação, de maneira que ambos ESTEJAM diferentes. Mas, pelo amor de Deus, que ele não comece a colocar perguntas sobre a infância ou outras "baboseiras" que não têm ligação nenhuma (não é?) com o que está acontecendo, que é apenas um acidente passageiro, circunstancial.
A mesma distinção entre essência e acidentes foi central nos debates ao redor do fracasso do socialismo real. Quando ruiu o sistema soviético, alguns diziam que o desastre era acidental: fruto da mediocridade dos burocratas, das contingências (a Primeira Guerra Mundial) que produziram o socialismo logo num país atrasado como a Rússia de 1917 ou do fato de que a Rússia ficou isolada, defendendo sozinha a bandeira do socialismo num mundo hostil. No extremo oposto, outros afirmavam que o desastre era a conseqüência de vícios essenciais no projeto leninista ou no pensamento do próprio Marx.
Acho difícil não pensar nessa discussão hoje, enquanto muitos amigos petistas ou simpatizantes do PT parecem entender a crise atual como um mero acidente. Ao ouvi-los, para que o sol volte a raiar basta excluir os quadros, os deputados e os senadores "ruins". A idéia é a seguinte: uma turma de elementos suspeitos se insinuou (acidentalmente) nas fileiras do PT e do governo, a solução é a purga que os eliminará. Só sobra esperar a lista completa dos maus sujeitos. O único suspense é: o presidente está ou não entre eles?
Poucos levantam a hipótese de que a crise não seja apenas um acidente, mas o efeito de um problema de essência. Ora, para a segurança de qualquer cesta de maçãs, é bom separar as maçãs bichadas, mas é crucial se assegurar que o bicho não seja endêmico no tipo de maçã ou na colheita que a gente escolheu.
Estamos dispostos a apontar a relação entre as falcatruas da direita e os vícios essenciais do liberalismo. Por exemplo, a corrupção "collorida" foi a obra de uma quadrilha "acidental" que trabalhava em prol de seu próprio bolso, mas uma quadrilha desse tipo é também o efeito previsível da "essência" de um sistema que exalta o enriquecimento individual acima das necessidades da comunidade.
Por razões sobretudo sentimentais, parecemos menos dispostos a interrogar a relação entre as falcatruas de hoje e o ideário político e social da esquerda.
Ora, se alguns mal-aventurados usaram de recursos infaustos para garantir e estender o alcance do poder do PT e do governo, talvez isso não seja apenas um "acidente" de percurso (a obra de maçãs bichadas). Talvez isso seja também uma expressão ("essencial", então) do projeto político e social com o qual muitos de nós sonharam ou ainda sonham.
Ao que parece, os supostos "feiosos" (Zé Dirceu, Delúbio, Silvio Pereira etc.) são acusados de uma confusão que se realizou a cada vez que um modelo socialista chegou ao poder.
Só para lembrar: regularmente, os socialismos realizados ampliaram o Estado para colocá-lo ao serviço do governo e ampliaram o governo para colocá-lo ao serviço do partido. Nesses casos, quase sempre, sem hesitar, os funcionários de Estado, governo e partido (assim confundidos) agiram contra a legalidade democrática, por se considerarem depositários de um ideário absoluto, nobre e bem-intencionado. A convicção de ter o monopólio do bem autorizou qualquer embuste ou crime sem nem sequer produzir os tormentos da culpa moral.
Não é uma razão para renunciar, de repente, a nossas melhores esperanças sociais. Mas é uma ocasião, isso sim, para reconsiderar com cuidado os projetos que pretendem realizá-las.
Um exemplo básico: alguém, hoje, pensaria ainda que estatizar seja um jeito de tornar nossa sociedade mais democrática?
quinta-feira, 11 de agosto de 2005
Bartleby
"Bartleby, o Escrivão", de Herman Melville (o autor de "Moby Dick"), está se tornando um pequeno best-seller. O fato é que a editora, CosacNaify, criou um maravilhoso livro-objeto, que reproduz materialmente o espírito do próprio Bartleby: fechado e costurado, resistente.
Bartleby é um escrivão, aparentemente zeloso, que um belo dia começa a recusar, com monótona e tranqüila determinação, as tarefas que lhe são propostas. "Acho melhor não": essa frase é tudo o que ele diz. Seu empregador (o narrador da novela) não consegue acesso algum à história de vida de Bartleby e às razões pelas quais ele não aceita ordens e serviços. Bartleby não vai embora, não se irrita nem esbraveja, apenas se recusa. Exasperador, não é?
Bartleby já foi explicado de mil maneiras: um Cristo moderno, um proletário revoltado, um precursor das personagens das peças de Samuel Beckett. Como ele não fala nada (segue silencioso, achando melhor não), permito-me sugerir minhas duas maneiras de ler a novela.
1) Não sou um perito em Melville. Li uma boa biografia ("Melville, a Biography", de Laurie Robertson-Lorent) e sempre leio prefácios e posfácios. Basta-me para saber o que segue.
Melville escreveu uma boa parte de suas ficções curtas entre 1853 e 1856. "Moby Dick", o romance do qual ele esperava fama e fundos, tinha sido um fracasso de vendas, em 1851. Em 1849 nascera Malcolm, seu primeiro filho, que Melville recebeu atormentado pelo medo de não conseguir sustentar sua família. Malcolm devia ter quatro ou cinco anos quando Melville escreveu "Bartleby".
Ora, não consigo me desgrudar desta idéia: o escrivão, que não sai do escritório, não quer falar dele mesmo e se recusa a cumprir tarefas e pedidos, é curiosamente parecido com uma criança que resiste obstinadamente aos pais, não diz nada (porque não pode ou não quer) sobre as razões de sua oposição e, claro, não tem como sair de casa.
Muitos pais reconhecerão, no "acho melhor não" de Bartleby, o antagonismo surdo de filhos que, apesar de mil perguntas dos adultos, mantêm-se obstinadamente hostis, silenciosos e enigmáticos. Esse negativismo fechado, sem conversa, cresce à medida que ele enfurece os adultos. Se não for encontrado um jeito de trocar palavras e afetos, o prognóstico é delicado.
Malcolm, o primeiro filho de Melville, suicidou-se com um tiro na cabeça, aos 18 anos.
2) Psiquiatras, psicanalistas e críticos se debruçaram sobre a personalidade de Bartleby, que já foi diagnosticado como esquizofrênico, anoréxico etc. Mas há um transtorno da personalidade pelo qual a leitura da novela de Melville vale mais que uma monografia patológica. O "DSM IV - Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais", da American Psychiatric Association, descreve o "transtorno de personalidade agressiva-passiva" como um padrão de atitudes negativas e de resistência passiva diante dos pedidos de produzir um desempenho adequado. O sujeito se recusa, passivamente, a cumprir tanto sua rotina social quanto suas tarefas ocupacionais. A monografia mais recente sobre esse quadro é "Passive-Aggression: a Guide for the Therapist, the Patient and the Victim" (agressão-passiva: um guia para o terapeuta, o paciente e a vítima), de Martin Kantor.
A personalidade agressiva-passiva é tipicamente masculina. Nas brigas de casais, o homem agressivo-passivo é a parede contra a qual jogam a louça de casa mulheres enlouquecidas pela fria compostura de seus companheiros.
Os psiquiatras podem discordar quanto às causas do transtorno, que se encontram na vida pregressa do sujeito, mas todos parecem concordar quanto ao seguinte: o agressivo-passivo é cheio de ódio e ressentimento. Talvez ele se limite a resistir passivamente para não soltar uma agressão que, sem isso, seria explosiva e mortífera além da conta.
Pois bem, o que me impressiona, ao ler e reler "Bartleby", é que essa novela de menos de 40 páginas, em que não aprendemos nada sobre a vida do escrivão ou sobre seus pensamentos, é muito, mas muito mais rica em sabedoria (inclusive clínica) do que o livro de Kantor (que, aliás, é um bom livro).
Em outras palavras, o que me impressiona é sobretudo o milagre da literatura, sua inexplicável capacidade de nos dar acesso à experiência humana. Misteriosamente, os silêncios de Melville me aproximam de Bartleby mais que as 232 páginas de Kantor.
No fim da coluna da semana passada, mencionei uma idéia segundo a qual a mediocridade das "elites" seria o efeito inevitável de uma mobilidade social acelerada. Nesse caso, as "elites" econômicas ou políticas se constituiriam sem ter a chance de crescer culturalmente. Alguns leitores me responderam que nossas elites já são carregadas de MBAs e coisas que os valham. Há um mal-entendido: a cultura não são as coisas que sabemos, a cultura é nossa capacidade de compreender (não só entender) a estranha diversidade de nossa espécie. É uma coisa que se encontra nas salas de cinema, nos teatros e ao abrir, sempre que der, as páginas de uma obra de ficção. Bartleby, por exemplo.