quinta-feira, 20 de outubro de 2005

Assim é a vida

"Assim é a vida", "C'est la vie", "That's life", "Das ist das Leben", "É la vita": a expressão existe em todas as línguas que conheço e, em todas elas, pode ser usada num amplo leque de tonalidades, que vai do sarcasmo ressentido e cínico ("É bem a porcaria que sempre pensei que fosse") até a euforia quase maníaca ("Que maravilha!").

No meio desse leque, há um tom médio, que é o que prefiro, mas que é raro: ele concilia, misteriosamente, as dores e as penas da existência com a possibilidade de aceitá-la e mesmo de amá-la, sem entusiasmo descabido. Um grande psicanalista, Heinz Kohut, descreveu assim a sabedoria à qual podemos aspirar e que corresponde talvez ao tom que tento definir: é a sensação de "um tranqüilo triunfo interior com uma mistura de melancolia reconhecida".

Os escritores e os poetas que vivem e produzem nesse tom médio não saem de minha mesa de cabeceira. Não é uma questão de apreciação estética: na poesia americana moderna, por exemplo, Walt Whitman (eufórico) é provavelmente melhor poeta que Emily Dickinson ou Edgar Lee Masters, que cantarolam e sussurram no tom médio.

Tampouco é uma questão, por assim dizer, terapêutica: o entusiasmo contagioso de Whitman já me serviu mais de uma vez para sair de uma fossa. Faça a experiência: do fundo de uma tristeza em que o mundo pode perder sentido, declame "Song of Myself", "Canto de Mim Mesmo". É fortemente revigorante. Mas agora tente outra coisa, leia em voz baixa "Spoon River Anthology", a antologia de Spoon River, de E.L. Masters: o poema é composto por uma série de lápides mortuárias, cada uma contando as gestas duvidosas dos mortos do vilarejo.

A princípio, não parece ser uma leitura para melhorar o humor, mas, aos poucos, as vidas e as mortes triviais do povo de Spoon River assumem uma dignidade e um valor que são contagiosos e resgatam a trivialidade de nossa própria vida (e morte). Surge uma espécie de alegria triste, nada eufórica, mas profunda, duradoura e sobretudo sem ilusões. Seis anos atrás, um filme prodigioso, "Magnólia", de Paul Thomas Anderson, produziu em mim um efeito parecido.

Quem assistiu a "Magnólia" deve se lembrar do momento em que todos os personagens, separada e simultaneamente (cada um em seu lugar trágico), cantam uma mesma música, que é uma espécie de hino ao caráter inelutável da vida: "...and it is not going to stop, till you wisen up..." (e não vai parar até que você crie juízo). É um exemplo perfeito da "alegria" melancólica que é fruto da aceitação do mundo como ele é. Pois bem, está em pré-estréia em São Paulo "Crash - No Limite". É o primeiro filme de Paul Haggis, que foi roteirista de "Menina de Ouro". Quando o filme saiu nos Estados Unidos, no ano passado, a crítica (elogiosa) salientou a apresentação brutal da difícil convivência de etnias diferentes na sociedade americana.

De fato, o filme é um soco no estômago de quem acredita nos efeitos lenitivos do politicamente correto: latinos, negros, brancos e orientais se agridem e se insultam pelas ruas de Los Angeles. Parece fracassar a esperança (americana e, em geral, iluminista) de um caldeirão em que as diferenças étnicas, culturais e sociais seriam quase irrelevantes e prevaleceria o sentimento de pertencermos todos à mesma espécie.

Mas dizer que o filme de Haggis mostra a morte do sonho moderno da convivência dos diferentes seria, no mínimo, ingênuo. Ao contrário, o milagre de "Crash" (choque ou batida) é que, no filme, a feiúra e a loucura do cotidiano, assim como o próprio choque das diferenças, nos aparecem como provas de nossa humanidade comum. Pensando bem, aliás, a única versão possível do sonho moderno talvez seja esta: não a paz e o respeito recíproco, mas a descoberta de um lote de misérias e incertezas que enxergamos nos outros porque, no fundo, são sempre parecidas com as da gente.

O sonho moderno não se realiza numa fanfarra de nobres idéias compartilhadas, mas na ternura de nosso olhar diante da imperfeição do mundo, ou seja, de todos nós. Um policial abusa de sua autoridade para enfiar a mão entre as pernas de uma mulher na hora de revistá-la; o mesmo policial pode arriscar a vida para salvar a dita mulher do fogo.

Um jovem bem intencionado é horrorizado pelo preconceito racial, mas (reflexo de defesa) é o primeiro a atirar num negro que enfia a mão no bolso. Um assaltante de carros pode atropelar um chinês mas pode também soltar um carregamento inteiro de imigrantes ilegais fadados ao trabalho escravo. A arrogância de uma dama de classe "A" acaba quando ela cai na escada de casa e o único abraço que ela encontra é o de sua empregada.

A arrogância de um guardião da lei acaba quando ele assiste o pai doente no meio da noite. E por aí vai. Isto é, lá vamos nós: meio heróis, meio pilantras, capazes do pior e do melhor. Assim é a vida, no tom certo. Não perca "Crash - No Limite" sob nenhum pretexto.


Correção: na coluna da semana passada, tratei do livro "Fadas no Divã", de Diana e Mário Corso. Como uma leitora me fez prontamente notar, a editora do livro não é Artes Médicas, mas ArtMed.

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