quinta-feira, 22 de setembro de 2005

Luxo e avareza

Gilles Lipovetsky, em "O Luxo Eterno" (Companhia das Letras), observa que o luxo está se tornando mais democrático. A razão que ele propõe é a seguinte: hoje, o luxo não consistiria mais em consumir de maneira extravagante ou em acumular bens caros e raros, mas em nos permitirmos experiências intensas e extraordinárias ou, então, em tratar de nossa saúde.

De fato, os objetos de luxo estão se tornando um pouco bregas. É cafona servir de cabide a uma coleção de roupas assinadas e mesmo carregar ostensivamente uma carteira de grife (se essa foi a única coisa que a gente conseguiu comprar).

O estilo despojado parece ser uma marca de elegância mais certeira do que uma cuidadosa combinação de vestuário e acessórios. É porque o despojamento transmite a mensagem seguinte: "Eu não perco tempo me olhando no espelho e verificando se estou vestido "direito'; meus interesses são outros". Ou seja, você deambula pelos shopping centers ao passo que eu levo minha calça surrada pelas estradas do mundo: meu luxo é que vivo de verdade, enquanto você passa de pose em pose.

Como exemplos dessa nova concepção do luxo, Lipovetsky lembra o caso do homem que pagou 22 milhões para passar uma semana na estação espacial internacional e, mais geralmente, invoca o enorme mercado da saúde e da forma. Ele conclui que não anelamos mais adquirir e ostentar bens; preferimos nos dar o luxo de viver experiências extremas e de cuidar de nosso bem-estar físico e psíquico. Ou seja, o luxo hodierno seria uma questão de vivências: velejar pelo cabo de Boa Esperança, comer vegetais orgânicos, freqüentar uma academia, um spa ou um psicanalista.
É um progresso? Lipovetsky parece pensar que sim, visto que, segundo ele, as novas práticas do luxo teriam um valor intrínseco e não só ostentatório: treino ou viajo para meu próprio bem ou para meu prazer, não para merecer a consideração ou suscitar a inveja dos outros. O novo luxo não estaria a serviço da divisão social entre os que têm e os que não têm; ele estaria a serviço da fruição da vida. Legal, não é? Pois é, eu não estou muito convencido disso.

O luxo atual, por mais que pareça consistir em vivências e cuidados de si, continua a serviço das aparências. Por exemplo, o despojamento, do qual falei antes, fomenta uma indústria de paramentos: é possível comprar uma calça velha muito mais cara do que seu equivalente novo de fábrica, e a prática de aventuras extremas talvez propague uma mensagem parecida com a dos jeans rasgados: "Veja como vivo intensamente". Do mesmo jeito, o cuidado com a forma talvez seja, antes de mais nada, uma preocupação com as formas: "Veja meu corpinho". Mas isso é o de menos.

O que me inquieta mais, no novo luxo, é sua avareza. Explico.

Uma boa parte de nossos cuidados com a forma alvejam a preservação de nossas forças, de nossa juventude e, enfim, da duração de nossa vida: paradoxalmente, trata-se de um luxo em que gastamos para poupar.

Quanto à paixão por experiências extremas, impressiona-me o caráter marginal e extraordinário das experiências: elas são interrupções na vida de cada dia, momentos de férias.

O pretenso luxo das vivências é quer seja uma defesa contra o desgaste de nossas energias, quer seja uma válvula de escape.

Em suma, talvez estejam em vigor ideais novos (o ideal da aventura e o do cuidado de si), diferentes do antigo ideal do luxo, em que vislumbrávamos os apetrechos necessários para parecermos chiques, ricos e famosos. Mas esses novos ideais se limitam a alimentar uma eterna preparação física e psíquica (os atos ficam para amanhã) ou, então, realizam-se em momentos de evasão. É como se, sonhando em ser exploradores e viajantes, encontrássemos nossa "satisfação" fazendo as malas ou sendo turistas de vez em quando.

Alguém dirá: qual é o problema? Será que deveríamos abandonar casa, trabalho, filhos e família para procurar aventuras mirabolantes e, sobretudo, permanentes? Nada disso.

A questão é esta: como foi que nossa experiência cotidiana se empobreceu a ponto de passarmos nosso tempo nos preparando para 15 dias por ano de pseudo-aventuras de férias obrigatórias? Como aconteceu de o "luxo" deixar de ser uma forma suntuosa de gastar a vida e se tornar uma forma de poupá-la em vista de eventuais escapadelas no fim do ano ou nos feriados?

As novas formas do luxo, apontadas por Lipovetsky, sugerem que estamos vivendo na impressão de uma mediocridade crônica, treinando e poupando forças para um "alhures" geográfico e temporal.

Ora, o verdadeiro luxo das vivências consistiria em viver não na espera ou no treino, mas aqui e agora, com toda a intensidade possível.


Neste ano, no Brasil, foram publicados três livros de Lipovetsky: "A Era do Vazio " (que é de 1983), "A Sociedade Pós-Moralista Crepúsculo do Dever" (que é de 1992) e "O Luxo Eterno" (que é de 2003 e reúne dois ensaios, um de Lipovetsky e outro de Elyette Roux). Além disso, acaba de sair "A Invenção do Futuro", debate organizado por Miguel Reale Jr. e Jorge Forbes, com a participação de Lipovetsky.

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