Não sei o que deu em Edward Shorter, professor de história da medicina da Universidade de Toronto, no Canadá. No passado, ele escreveu obras instigantes, mas o livro que ele acaba de publicar, "Written in the Flesh, a History of Desire" (escrito na carne, uma história do desejo), é uma tremenda decepção.
Shorter não quer tratar das mudanças na escolha e no número dos parceiros, mas quer descrever o processo pelo qual, segundo ele, depois de séculos em que os casais transavam de papai-mamãe, chegou-se a práticas sexuais em que os prazeres do corpo seriam mais variados.
A indagação de Shorter parece ser orientada por um chavão da contracultura dos anos 60. Na época, era banal considerar que a sensualidade nos tornaria livres, pois nossos males (sobretudo políticos) seriam um efeito da primazia dos órgãos genitais e especialmente do falo: se, na busca do prazer, não respeitássemos mais a prioridade dos órgãos genitais, a revolução estaria às portas. A revolta das axilas, dos cotovelos e dos tornozelos inauguraria uma democracia participativa que valeria para a sociedade inteira. Estou ironizando, mas a idéia, no fundo, era essa.
Segundo Shorter, a hora chegou: talvez você não tenha percebido, mas estamos no reino final do "total body sex", o sexo do corpo inteiro, o tempo da sensualidade feliz em que cada área de nosso corpo será fonte de prazer.
Como é que chegamos a essa maravilha? Houve uma época (a Grécia e a Roma antigas) em que, escreve Shorter, os corpos eram dispostos a prazeres variados, mas, depois disso, foram só cambalhotas ladeira abaixo até a chegada da modernidade, quando a tendência se inverteu.
O que se opunha, durante séculos, a um uso dos prazeres que não fosse limitado aos exercícios genitais? Segundo Shorter:
1) as distrações físicas (as pessoas, cheias de piolhos e sarna, passavam o tempo se coçando ou, então, sem aspirina e Tylenol, mal se mexiam por causa de artrose e dor de cabeça);
2) a proximidade da morte (as pessoas viviam menos e pensavam mais na morte -argumento curioso, pois a iminência da morte nem sempre inibe a procura do prazer);
3) a falta de higiene (o cheiro fazia que as pessoas preferissem conjunções carnais sem pormenores e sem tirar a roupa);
3) o risco de gravidez (um mistério: o risco de gravidez deveria ter encorajado práticas não-genitais, não é?);
4) a prevalência de comunidades pequenas e rurais, em que era grande o peso do juízo moral dos outros.
Progressivamente, a partir do fim do século 19 e sobretudo depois dos anos 60 do século 20, foram removidos os ditos obstáculos e a gente passou a apreciar recantos do corpo antes menosprezados.
Uma prova desse desfecho feliz é, segundo Shorter, a diminuição da vida comunitária e associativa nas últimas décadas: a sexualidade se tornou tão prazerosa que passamos nosso tempo na cama.
A construção de Shorter é surpreendente por seu otimismo e por sua militância em favor da sensualidade do corpo. Por exemplo, ele nota que o homem da Idade Média atribuía uma importância crucial ao rosto de sua companheira, até porque não tinha como ver o resto e, se visse, não gostaria de se aventurar por lá (cheiro, sujeira). Nós, ao contrário, seríamos seduzidos por pernas, umbigos, ombros e por aí vai. Para Shorter, trata-se de um avanço, em que triunfa o corpo sensual no seu conjunto. Pode ser que eu seja careta, mas continuo atribuindo importância ao rosto das pessoas que amo e desejo, e não devo ser o único...
Mas isso é o de menos. O problema maior é que, em sua história do desejo, Shorter, obcecado pela questão da sensualidade dos corpos, não sabe o que fazer com a mudança das fantasias sexuais.
Ele constata, com razão, que a modernidade produziu uma explosão inédita de fantasias sadomasoquistas. Qual é sua leitura desse fenômeno? Para ele, o importante é que, nas práticas sadomasoquistas modernas, os parceiros se interessam por muitas partes do corpos e não só pelos genitais. Ou seja, o essencial do sadomasoquismo não seria a fantasia de dominação, mas o fato de que, no exercício dessa fantasia, o corpo inteiro seria erotizado (tanto faz que isso aconteça à força de chicotadas).
Ora, há uma outra leitura da explosão das fantasias sadomasoquistas que, desde o fim do século 18, fazem que a relação entre os amantes seja contaminada por jogos de dominação ou controle.
No fim do século 18, acabam as hierarquias da sociedade tradicional; qualquer um, independentemente de seu berço, pode sonhar em alcançar o poder, que se torna, para todos, um objeto de cobiça possível, um objeto erótico -talvez o objeto erótico principal da modernidade.
As algemas e os chicotes que enchem as prateleiras de nossos "sex shops", assim como as brincadeiras de dominação que animam as transas dos casais de hoje falam do estranho custo da democracia moderna: o sexo se misturou com o poder. Mal se consegue transar sem uma fantasia de poder e (fato mais inquietante) goza-se do poder com uma premência digna de uma justa erótica.
Pois é, estamos longe do reino da sensualidade liberada dos corpos.
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