O site da Polícia Civil de São Paulo (www.policia-civ.sp.gov.br) dá acesso a várias "consultas".
Além de editais, licitações e concursos, há a lista dos "Procurados da Justiça". Nela, aparecem apenas os sujeitos perigosos. Mesmo assim, vale a pena notar que duas outras listas são mais extensas: "Procura-se a família" e "Pessoas desaparecidas".
"Procura-se a família" apresenta os retratos de dezenas de adultos, homens e mulheres, quase todos internados em instituições psiquiátricas, de quem se ignora a família e o domicílio de origem. Com eles, há três crianças, que foram "encontradas". Uma delas é um menino, que olha para a gente com uma expressão atenta, mas que "não fala, não ouve, responde por gestos". Parece que estamos errando entre as estantes de um depósito de achados e perdidos, reservado aos que se tornam fardos insustentáveis para seus próximos.
Na verdade, "Procura-se a família" é a lista dos achados; os perdidos estão em "Pessoas desaparecidas". No site da Polícia Civil, são, mais ou menos, 300 crianças e adolescentes, 240 mulheres e mais de 700 homens adultos. Todos sumiram deixando saudades; há uma família que não entende e se desespera.
Cada grande cidade brasileira propõe uma lista análoga. O fenômeno não é nacional: uma procura mundial na internet ("missing persons") traz 3 milhões de páginas. Mesmo descontando as vítimas de perseguições e migrações forçadas, o número é grande.
É possível que alguns desses desaparecidos sejam vítimas de acidentes ou crimes que os deixaram incapacitados de declarar sua identidade. Mas, em regra, um acidentado carrega algum documento que permite sua identificação.
Para que alguém consiga sumir, é preciso que haja uma intenção, do próprio sujeito ou de outrem.
Se sumissem sobretudo crianças e jovens mulheres, o fenômeno pareceria mais simples. Afinal, acontece de adolescentes e crianças fugirem de casa. Às vezes, tentam evitar uma violência que os próprios familiares podem desconhecer. Outras vezes, eles tomam ao pé da letra e antes da hora o imperativo social de tornar-se autônomos e "grandes". Além disso, existe um comércio de crianças seqüestradas e vendidas para adoções ilegais. Meninas e jovens mulheres também poderiam ser vítimas de redes organizadas de prostituição.
Mas a grande maioria dos que somem sem deixar rastos são homens adultos. Melhor aceitar o óbvio: a cada ano, centenas de milhares de sujeitos pelo mundo afora escolhem sumir, abandonam lares, famílias, amigos, mudam de cidade e de nome. Tentam recomeçar a vida como se não tivessem um passado.
Ao longo de minha prática, nunca encontrei uma "pessoa desaparecida".
Mas, anos atrás, no pavilhão Pinel do hospital Sainte-Anne de Paris, conheci um sujeito que sofria de uma amnésia espetacular: suas funções intelectuais eram perfeitamente preservadas, no entanto ele apresentava um total esquecimento de sua identidade e história. Era benquisto na enfermaria, pois tinha competências preciosas: consertava tudo, relógios, rádios, televisores. Eu não conseguia me livrar da suspeita de que ele estivesse fingindo; estranhava que ele tivesse sido encontrado sem nenhum documento.
Mais tarde, entendi um pouco melhor o sentido dessa ausência de documentos, quando me ocupei de um jovem adulto que sobreviveu a uma elaborada tentativa de suicídio. Um dia, ele recortou cuidadosamente as etiquetas de suas roupas, jogou sua carteira pela janela do trem e, chegado numa cidade distante, foi para um quarto de hotel, onde tomou barbitúricos e cortou os pulsos, depois de pendurar na maçaneta da porta o sinal "por favor, não perturbe". Foi descoberto por uma camareira, que desrespeitou o pedido.
Como ele me disse em nosso primeiro encontro, queria sumir de maneira que nenhum resto de sua vida prévia o alcançasse. Comentou, com um certo humor negro, que achava intolerável a incumbência de comparecer a seu próprio funeral.
Ora, cuidado: ele amava sua família, sua namorada e seus amigos. Suas dívidas, reais ou simbólicas, não eram extraordinárias; suas ambições não eram desmedidas nem especialmente frustradas; tampouco era angustiado pela sensação de que os outros esperassem dele muito mais do que ele podia dar.
O problema era outro: um dia, pareceu-lhe que todos os afazeres que, em princípio, deviam ser frutos de sua liberdade (os gestos do amor, os empreendimentos profissionais, os interesses culturais) tinham-se transformado em encargos.
"Você gosta de música clássica?", perguntou-me. "De repente, você descobre que o prazer de escutar um concerto foi substituído pela obrigação de preencher a cadeira que você comprou para a temporada inteira. Imagine que isso aconteça com todos os seus desejos. Fazer o quê?"
Ele decidiu se abolir. Outros somem e tentam recomeçar do zero.
Recentemente, uma leitora me pediu que a ajudasse na procura de um familiar amado, que sumiu. Pois bem. Mensagem a um "desaparecido" que lesse esta coluna: para nós também, para todos nós, desejar sem transformar nossos próprios desejos em obrigações é uma tarefa para além de difícil.
quinta-feira, 28 de outubro de 2004
quinta-feira, 14 de outubro de 2004
De novo, sobre a cura da homossexualidade
Na semana passada, critiquei o projeto de lei que criaria, no Estado do Rio de Janeiro, um programa de auxílio às pessoas que optarem pela mudança de sua orientação sexual da homossexualidade para a heterossexualidade. O "auxílio" consistiria em alocar fundos públicos a organizações e profissionais que proponham curas da homossexualidade.
Numerosos leitores me perguntaram como poderiam manifestar sua indignação. O Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro está colhendo adesões de protesto (www.clam.org.br).
Mas quero sobretudo responder àqueles leitores que me escreveram para defender o projeto.
1) Alguns acharam abusiva minha comparação do programa carioca com um hipotético Instituto Michael Jackson para converter os negros em brancos. Concordo: cor da pele, orientação sexual, opinião ou fé são coisas bem diferentes. No entanto todos esses termos designam campos em que os cidadãos não precisam se conformar a uma norma. Nesses campos, o governo democrático garante a igualdade de todos perante a lei e cuida para que a sociedade não discrimine.
Conseqüência: você é evangélico; é seu direito expressar seu convencimento e mesmo tentar me converter. Mas o dinheiro público (que pertence a todos os cidadãos, em sua diversidade) não pode ser destinado a me arregimentar para sua igreja. Essa atividade você vai ter que pagar de seu bolso.
2) Outros argumentaram: a homossexualidade não é uma diferença protegida constitucionalmente, pois é uma doença ou, como escreveu a Comissão de Saúde da Assembléia carioca, "uma distorção da natureza". E o Estado tem o dever sacrossanto de curar os enfermos.
O relator da Comissão de Saúde foi o deputado Samuel Malafaia (PMDB), engenheiro e evangélico. Votou a favor. De onde lhe viria a competência para julgar se a homossexualidade é ou não um problema de saúde pública, não sei. Talvez um dom do Espírito Santo no último Pentecostes.
Votou a favor também o deputado Paulo Melo (PMDB), sem formação específica, inspirado (imagino) pelo preconceito comum.
O terceiro membro era o deputado Paulo Pinheiro (PT), médico pediatra. E ele votou pela "baixa em diligência", ou seja, ele pediu que o relatório fosse sustado e, por exemplo, avaliado por agentes competentes. Minoritário, seu voto não surtiu efeito nenhum.
Paulo Pinheiro não tinha como votar diferente. Em 1973, a American Psychiatric Association retirou a homossexualidade da lista dos transtornos mentais ou emocionais. Sucessivamente, a decisão foi ratificada pela American Psychological Association, pela American Counseling Association, pela Associação Brasileira de Psiquiatria, pelo Conselho Federal de Medicina e pela Organização Mundial da Saúde. O Conselho Federal de Psicologia pede explicitamente que os psicólogos não colaborem com serviços que propõem uma "cura" da homossexualidade.
3) Outros ainda interrogaram a expressão "orientação sexual". É uma formação genética? É o resultado de traumas infantis ou da propaganda cultural hollywoodiana? Ou é uma escolha livre?
Não acredito que a homossexualidade (assim como qualquer outra orientação sexual) tenha origem propriamente genética. As melhores pesquisas com gêmeos univitelinos mostram que a homossexualidade é comum a ambos os gêmeos em 50% dos casos. Pouco, tratando-se de sujeitos com patrimônio genético idêntico.
Quanto aos fatores externos, a American Psychiatric Association concluiu há tempo que a incidência de eventos traumáticos na infância de sujeitos homossexuais é igual à da população em geral e não é especialmente relacionada à orientação sexual adulta.
Em matéria de "propaganda" hollywoodiana que glamourizaria a homossexualidade, qualquer terapeuta pode confirmar o seguinte: os produtos culturais que, com mais freqüência, são marcantes na constituição de fantasias homossexuais são estátuas de anjos e santos nas igrejas ou histórias de mártires cristãos.
Enfim, a orientação sexual é uma escolha?
Por comodidade, hoje, fala-se de três orientações sexuais: heterossexual, homossexual e bissexual. Essa distinção tripartida é aproximativa. Por exemplo, como catalogar uma mulher que gosta que seu parceiro a "force" a ser, diante dele, o objeto sexual passivo de outra mulher? Bissexual? É complicado, pois, fora do cenário mencionado, ela detestaria os amassos, os beijos e a transa com uma outra mulher. Perguntas análogas podem ser colocadas para homens.
Em suma, nossas orientações sexuais são misturas singulares e únicas de fantasias, situações, palavras e preferências quanto ao sexo dos parceiros.
Afirmar que essas orientações são "escolhas" não significa que as adotemos como um prato no cardápio (carne ou peixe?).
Certo, a orientação sexual pode mudar no decorrer de uma vida, mas, a cada instante, ela é uma parte irrenunciável do que define um sujeito. É uma "escolha" neste sentido: ela é imposta a cada um por seu corpo e por sua história, nunca pela vontade abstrata de um legislador.
Numerosos leitores me perguntaram como poderiam manifestar sua indignação. O Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro está colhendo adesões de protesto (www.clam.org.br).
Mas quero sobretudo responder àqueles leitores que me escreveram para defender o projeto.
1) Alguns acharam abusiva minha comparação do programa carioca com um hipotético Instituto Michael Jackson para converter os negros em brancos. Concordo: cor da pele, orientação sexual, opinião ou fé são coisas bem diferentes. No entanto todos esses termos designam campos em que os cidadãos não precisam se conformar a uma norma. Nesses campos, o governo democrático garante a igualdade de todos perante a lei e cuida para que a sociedade não discrimine.
Conseqüência: você é evangélico; é seu direito expressar seu convencimento e mesmo tentar me converter. Mas o dinheiro público (que pertence a todos os cidadãos, em sua diversidade) não pode ser destinado a me arregimentar para sua igreja. Essa atividade você vai ter que pagar de seu bolso.
2) Outros argumentaram: a homossexualidade não é uma diferença protegida constitucionalmente, pois é uma doença ou, como escreveu a Comissão de Saúde da Assembléia carioca, "uma distorção da natureza". E o Estado tem o dever sacrossanto de curar os enfermos.
O relator da Comissão de Saúde foi o deputado Samuel Malafaia (PMDB), engenheiro e evangélico. Votou a favor. De onde lhe viria a competência para julgar se a homossexualidade é ou não um problema de saúde pública, não sei. Talvez um dom do Espírito Santo no último Pentecostes.
Votou a favor também o deputado Paulo Melo (PMDB), sem formação específica, inspirado (imagino) pelo preconceito comum.
O terceiro membro era o deputado Paulo Pinheiro (PT), médico pediatra. E ele votou pela "baixa em diligência", ou seja, ele pediu que o relatório fosse sustado e, por exemplo, avaliado por agentes competentes. Minoritário, seu voto não surtiu efeito nenhum.
Paulo Pinheiro não tinha como votar diferente. Em 1973, a American Psychiatric Association retirou a homossexualidade da lista dos transtornos mentais ou emocionais. Sucessivamente, a decisão foi ratificada pela American Psychological Association, pela American Counseling Association, pela Associação Brasileira de Psiquiatria, pelo Conselho Federal de Medicina e pela Organização Mundial da Saúde. O Conselho Federal de Psicologia pede explicitamente que os psicólogos não colaborem com serviços que propõem uma "cura" da homossexualidade.
3) Outros ainda interrogaram a expressão "orientação sexual". É uma formação genética? É o resultado de traumas infantis ou da propaganda cultural hollywoodiana? Ou é uma escolha livre?
Não acredito que a homossexualidade (assim como qualquer outra orientação sexual) tenha origem propriamente genética. As melhores pesquisas com gêmeos univitelinos mostram que a homossexualidade é comum a ambos os gêmeos em 50% dos casos. Pouco, tratando-se de sujeitos com patrimônio genético idêntico.
Quanto aos fatores externos, a American Psychiatric Association concluiu há tempo que a incidência de eventos traumáticos na infância de sujeitos homossexuais é igual à da população em geral e não é especialmente relacionada à orientação sexual adulta.
Em matéria de "propaganda" hollywoodiana que glamourizaria a homossexualidade, qualquer terapeuta pode confirmar o seguinte: os produtos culturais que, com mais freqüência, são marcantes na constituição de fantasias homossexuais são estátuas de anjos e santos nas igrejas ou histórias de mártires cristãos.
Enfim, a orientação sexual é uma escolha?
Por comodidade, hoje, fala-se de três orientações sexuais: heterossexual, homossexual e bissexual. Essa distinção tripartida é aproximativa. Por exemplo, como catalogar uma mulher que gosta que seu parceiro a "force" a ser, diante dele, o objeto sexual passivo de outra mulher? Bissexual? É complicado, pois, fora do cenário mencionado, ela detestaria os amassos, os beijos e a transa com uma outra mulher. Perguntas análogas podem ser colocadas para homens.
Em suma, nossas orientações sexuais são misturas singulares e únicas de fantasias, situações, palavras e preferências quanto ao sexo dos parceiros.
Afirmar que essas orientações são "escolhas" não significa que as adotemos como um prato no cardápio (carne ou peixe?).
Certo, a orientação sexual pode mudar no decorrer de uma vida, mas, a cada instante, ela é uma parte irrenunciável do que define um sujeito. É uma "escolha" neste sentido: ela é imposta a cada um por seu corpo e por sua história, nunca pela vontade abstrata de um legislador.
quinta-feira, 7 de outubro de 2004
A cura da homossexualidade
A Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro se apresta a votar um projeto de lei, do deputado Edino Fonseca, que cria o Programa de auxílio às pessoas que voluntariamente optarem pela mudança (...) de sua orientação sexual da homossexualidade para a heterossexualidade.
Para implementar o programa, "o poder público estabelecerá convênios com organizações governamentais, não governamentais, Associações Civis, religiosas, profissionais liberais e autônomos". Ou seja, o dinheiro público financiará os que se propõem a converter homossexuais em heterossexuais.
O projeto afirma que o programa não é discriminatório, pois se destina aos homossexuais que desejarem mudar de orientação. No caso dos menores, a reserva não vale. Não será preciso que os adolescentes homossexuais desejem mudar de orientação, bastará a vontade de pais ou tutores. Seu filho tem trejeitos? Chame o governo; ele dará conta das frescuras do menino.
A Comissão de Constituição e Justiça deu parecer favorável: "A proposição é de relevante cunho social e não esbarra em preceitos constitucionais".
Muito bem, vou fundar o Instituto Michael Jackson para a transformação de negros em brancos (claro, só os negros que quiserem). A idéia é de relevante cunho social e benéfica, visto que, de fato, em nossa sociedade, é melhor ser branco. Uma vez esbranquiçados, os negros ganharão mais e competirão com os brancos em pé de igualdade. OK?
A Comissão da Saúde também deu parecer favorável: "Homem e mulher foram criados e nasceram com sexos opostos para se completarem e procriarem. O homossexualismo, apesar de aceito pela sociedade, é uma distorção da natureza do ser humano normal".
Que coisa estranha; eu sabia que a sexualidade dos animais não humanos era (mais ou menos) natural, já que a fertilidade da fêmea produz os sinais que ativam o desejo do macho (o cio, por exemplo). No caso da gente, não é bem assim. Parece que desejamos por amores, fantasias e inspirações repentinas, que são coisas culturais, não naturais. Também, se homens e mulheres são feitos para "se completarem e procriarem", não entendo por que transam na cozinha, nos elevadores, nos estacionamentos, nos clubes de suingue, na zona, com cinta-liga, colares de couro ou cueca de látex furada.
Agora, se você acha que a sexualidade humana é pervertida, não hesite: promova leis para a reorientação sexual de fetichistas, masturbadores, exibicionistas, freqüentadores de saunas e cinemas pornôs, sadomasoquistas, internautas de salas de sexo virtual e leitores da revista "Private". Já está na hora de fazer o necessário para que todos os cidadãos desejem segundo a natureza.
Durante o século 20, houve governos que, apoiados numa idéia do bem ou da natureza, quiseram reorientar ideológica e sexualmente seus cidadãos. Mandaram (alguns ainda mandam) milhões para campos de reeducação. Console-se: no Rio, será possível apenas financiar a conversão sexual. Sem campos.
Admito que o programa tem um interesse: cria ótimas ocasiões de captação de fundos públicos. Paradoxo chulo, mas irresistível: um projeto para converter homossexuais parece ter sido concebido para dar vontade de mamar.
Exemplo. Eu publico, numa revista conceituada, um artigo em que conto como "converti" homossexuais com terapias intensivas de 12 meses. Logo, meus amigos pais de família cariocas declaram ao programa que eles são atormentados por tórridas fantasias homossexuais e, à noite, erram pelo aterro do Flamengo, procurando prazeres culpados, enquanto as mulheres dormem.
Eles pedem para se curar comigo. O governo do Rio me manda o dinheiro, e a gente divide o lucro. Tratando-se de heterossexuais, os tratamentos serão um sucesso.
Os amigos homossexuais também poderão se tratar comigo no mesmo esquema. Só peço que, no fim, eles se declarem curados, para não estragar a reputação do negócio.
No caso de uma igreja, é mais fácil. Não é preciso escrever nenhum texto "científico". Basta a autoridade da Bíblia. Não faltarão os fiéis para entrar no programa: "Você se molhou sonhando com uma pessoa do mesmo sexo? Cure-se desse demônio". E o dinheiro do governo não será dividido, ficará integralmente com a igreja. Felicitações.
1) Existem sujeitos que vivem sua homossexualidade de maneira dolorosa e conflitiva. Não concordam com seu próprio desejo, por mil razões (inibições, repressão, princípios morais). Qualquer "psi" sabe como é fácil produzir catástrofes subjetivas se, nesses conflitos, a gente não deixa o paciente elaborar livremente sua solução.
2) O governo carioca deveria oferecer tratamento de conversão também aos estrangeiros que, hoje, fazem do Rio de Janeiro uma rentável meca do turismo homossexual. Sugiro que o próprio deputado Fonseca distribua os panfletos do programa, em várias línguas, na Farme de Amoedo, durante o Carnaval.
3) Os pais têm razão de se preocupar ao descobrir que um filho ou uma filha são homossexuais. Afinal, esses jovens têm de enfrentar um mundo em que são propostas leis como a que está para ser votada no Estado do Rio.
Para implementar o programa, "o poder público estabelecerá convênios com organizações governamentais, não governamentais, Associações Civis, religiosas, profissionais liberais e autônomos". Ou seja, o dinheiro público financiará os que se propõem a converter homossexuais em heterossexuais.
O projeto afirma que o programa não é discriminatório, pois se destina aos homossexuais que desejarem mudar de orientação. No caso dos menores, a reserva não vale. Não será preciso que os adolescentes homossexuais desejem mudar de orientação, bastará a vontade de pais ou tutores. Seu filho tem trejeitos? Chame o governo; ele dará conta das frescuras do menino.
A Comissão de Constituição e Justiça deu parecer favorável: "A proposição é de relevante cunho social e não esbarra em preceitos constitucionais".
Muito bem, vou fundar o Instituto Michael Jackson para a transformação de negros em brancos (claro, só os negros que quiserem). A idéia é de relevante cunho social e benéfica, visto que, de fato, em nossa sociedade, é melhor ser branco. Uma vez esbranquiçados, os negros ganharão mais e competirão com os brancos em pé de igualdade. OK?
A Comissão da Saúde também deu parecer favorável: "Homem e mulher foram criados e nasceram com sexos opostos para se completarem e procriarem. O homossexualismo, apesar de aceito pela sociedade, é uma distorção da natureza do ser humano normal".
Que coisa estranha; eu sabia que a sexualidade dos animais não humanos era (mais ou menos) natural, já que a fertilidade da fêmea produz os sinais que ativam o desejo do macho (o cio, por exemplo). No caso da gente, não é bem assim. Parece que desejamos por amores, fantasias e inspirações repentinas, que são coisas culturais, não naturais. Também, se homens e mulheres são feitos para "se completarem e procriarem", não entendo por que transam na cozinha, nos elevadores, nos estacionamentos, nos clubes de suingue, na zona, com cinta-liga, colares de couro ou cueca de látex furada.
Agora, se você acha que a sexualidade humana é pervertida, não hesite: promova leis para a reorientação sexual de fetichistas, masturbadores, exibicionistas, freqüentadores de saunas e cinemas pornôs, sadomasoquistas, internautas de salas de sexo virtual e leitores da revista "Private". Já está na hora de fazer o necessário para que todos os cidadãos desejem segundo a natureza.
Durante o século 20, houve governos que, apoiados numa idéia do bem ou da natureza, quiseram reorientar ideológica e sexualmente seus cidadãos. Mandaram (alguns ainda mandam) milhões para campos de reeducação. Console-se: no Rio, será possível apenas financiar a conversão sexual. Sem campos.
Admito que o programa tem um interesse: cria ótimas ocasiões de captação de fundos públicos. Paradoxo chulo, mas irresistível: um projeto para converter homossexuais parece ter sido concebido para dar vontade de mamar.
Exemplo. Eu publico, numa revista conceituada, um artigo em que conto como "converti" homossexuais com terapias intensivas de 12 meses. Logo, meus amigos pais de família cariocas declaram ao programa que eles são atormentados por tórridas fantasias homossexuais e, à noite, erram pelo aterro do Flamengo, procurando prazeres culpados, enquanto as mulheres dormem.
Eles pedem para se curar comigo. O governo do Rio me manda o dinheiro, e a gente divide o lucro. Tratando-se de heterossexuais, os tratamentos serão um sucesso.
Os amigos homossexuais também poderão se tratar comigo no mesmo esquema. Só peço que, no fim, eles se declarem curados, para não estragar a reputação do negócio.
No caso de uma igreja, é mais fácil. Não é preciso escrever nenhum texto "científico". Basta a autoridade da Bíblia. Não faltarão os fiéis para entrar no programa: "Você se molhou sonhando com uma pessoa do mesmo sexo? Cure-se desse demônio". E o dinheiro do governo não será dividido, ficará integralmente com a igreja. Felicitações.
1) Existem sujeitos que vivem sua homossexualidade de maneira dolorosa e conflitiva. Não concordam com seu próprio desejo, por mil razões (inibições, repressão, princípios morais). Qualquer "psi" sabe como é fácil produzir catástrofes subjetivas se, nesses conflitos, a gente não deixa o paciente elaborar livremente sua solução.
2) O governo carioca deveria oferecer tratamento de conversão também aos estrangeiros que, hoje, fazem do Rio de Janeiro uma rentável meca do turismo homossexual. Sugiro que o próprio deputado Fonseca distribua os panfletos do programa, em várias línguas, na Farme de Amoedo, durante o Carnaval.
3) Os pais têm razão de se preocupar ao descobrir que um filho ou uma filha são homossexuais. Afinal, esses jovens têm de enfrentar um mundo em que são propostas leis como a que está para ser votada no Estado do Rio.
domingo, 3 de outubro de 2004
JOSÉ SERRA
ELEIÇÕES 2004
Serra detesta demagogia; responde aos apelos que ouve com calma e se despede sem promessas
CONTARDO CALLIGARIS
Na sabatina da Folha, Serra chegou com um pequeno atraso.
Sabíamos que acontecera um imprevisto e, nos bastidores, houve um momento em que chegamos a pensar que o debate não aconteceria. Enfim, a sabatina começou 15 minutos mais tarde do que a norma dos dias anteriores.
Quando voltei para casa, poucas horas depois, encontrei o e-mail de uma leitora, que acabava de assistir ao debate. Ela esculhambava o candidato, observando que ele nem pedira desculpas pelo atraso, "que parece ter achado supernormal". A seu ver, Serra, com seu silêncio, saíra mal na foto.
Ora, junto com os outros entrevistadores e os organizadores do debate, eu conhecia as razões do atraso. Eram do tipo que, se reveladas, tocariam o coração e ganhariam a simpatia imediata de todos os presentes. Serra não as mencionou.
Tampouco ele inventou uma daquelas desculpas que garantem a cumplicidade de um público paulistano (uma alusão ao trânsito, por exemplo). Pois bem, a escolha de não dizer nada, que pareceu áspera à leitora que me escreveu, é o efeito de um "parti pris", que se manteve constante nas conversas que tive com Serra e na caminhada em que pude acompanhá-lo: José Serra detesta demagogia.
O que não significa que ele não queira a simpatia e a aprovação dos outros (isso, todos queremos). Ao contrário, a recusa da demagogia, desse ponto de vista, é a expressão de um pedido especialmente rigoroso. Traduzido nos termos das relações amorosas, é parecida, por exemplo, com o pedido de uma parceira que exigiria: goste de mim descabelada, de manhã cedo, sem maquiagem e sem plástica.
Lembra? No debate ao redor da moratória da dívida externa durante o governo Sarney, por exemplo, Serra admitia a moratória, pois, de fato, o Brasil não tinha como honrar os pagamentos previstos. Mas ele se opunha à transformação desse fracasso financeiro num grito heróico de independência. Nada de dourar a pílula para acariciar o ufanismo na direção do pelo. Mais recentemente, na ocasião do aniversário do golpe de 64, Serra, com 14 anos de exílio nas costas, poderia participar da festa tocando na banda da vitória. Preferiu criticar sua própria atuação na época e apontar, no comportamento de Jango e das esquerdas, fatores que precipitaram o golpe.
A recusa obstinada da demagogia pode cortar os entusiasmos e ter um custo político. Mas seu custo maior acaba sendo subjetivo. Explico.
Sábado passado, Serra aceitou me receber. Salvo pela sessão da sabatina, dias antes, foi nosso primeiro encontro e conversamos noite adentro. Falando das campanhas, ele disse que o mais difícil não são as horas de gravação, as discussões estratégicas, os comícios, as carreatas, as caminhadas, nem mesmo os ataques.
A tarefa mais árdua é prestar ouvido à massa de queixas, lamentações e pedidos, vozes da infinita variedade da infelicidade humana, das quais talvez qualquer político ou candidato seja o destinatário.
Em cima da mesa que estava entre nós, havia um apanhado de cartas e bilhetes que os eleitores tinham depositado na mão de Serra naquele dia. Alguns pedidos permitiam uma resposta adequada e circunscrita: dificuldades em obter consultas médicas ou agendar operações, histórias de IPTU excessivo, de lentidões administrativas e por aí vai.
No Ministério da Saúde de Serra, aliás, um assessor era encarregado de resolver as dificuldades dos cidadãos que escreviam. Claro, era uma gota de água. As soluções encontradas não operavam nem prometiam as mudanças coletivas desejadas, no entanto eram um jeito de não esquecer que a política não é nada se não responde às necessidades das vidas concretas. Seja como for, a esses pedidos era fácil responder com uma ação.
Mas, em sua imensa maioria, as cartas e os bilhetes na minha frente eram folhas de caderno em que uma escrita hesitante e corajosa expressava dores cuja solução não estava ao alcance de uma ação: vidas quebradas por uma mistura de falta de emprego e de função social, dramas familiares, fugas, lutos.
As missivas não pediam nada e pediam tudo. Pareciam-se com as invocações que, em certas igrejas de minha infância, os fieis depositavam ao lado da estátua do santo ou nas dobras de seu manto, para que ele lesse e tomasse providências. Algumas nem detalhavam males e sofrimentos; confiavam na onisciência do destinatário, diziam apenas: "Serra, nos ajude".
Ora, talvez a demagogia política tenha sido inventada para isto: para que candidatos e governantes possam agüentar mais facilmente o peso da demanda que recebem, calá-la enfiando balinhas de ilusão na goela de quem se queixa e, naturalmente, em seus próprios ouvidos.
Aparentemente, Serra não sabe se dar esse luxo. E, sem o recurso da demagogia, o peso dos pedidos é violento, produz a sensação de uma responsabilidade constante por uma tarefa impossível.
Talvez por isso mesmo Serra pareça sempre procurar, na fala de quem o interpela, algum pedido concreto, algo que possa receber uma resposta efetiva.
Segunda-feira, no bairro Jova Rural, Serra visitou a casa de uma jovem senhora, Andréa Rodrigues. Escutou uma dura história de doenças e infortúnios. E disse para Andréa, que mostrava um sorriso desdentado: "Precisamos arrumar esses dentes". Brutal? Inoportuno? Acho que, para Serra, era o jeito de encontrar algo que pudesse ser feito mesmo, de não sucumbir ao marasmo do impossível. Não temos as chaves do paraíso, mas algo podemos mudar, uma coisa pequena comparada com o resto, mas uma coisa: os dentes.
Às vezes, esse anseio de fazer assusta. Numa caminhada no Tremembé/Jaçanã (conheci enfim o lugar para onde vai o trem das 11), um homem pára sua bicicleta de corrida e, do fio da calçada, grita: "Serra, vamos fazer pistas para bicicletas!".
Imagino que ele esperasse um gesto ou um sorriso de aprovação. Mas Serra foi até ele: "Vamos fazer, sim. É uma questão importante, que é preciso estudar com cuidado". Estupefação do homem; aparentemente o apego ao que pode ser feito é mais inesperado do que a vaga referência ao sol de amanhã.
E quando não há nada que possa ser feito? Na caminhada no Tremembé, Serra ouviu muitas queixas de tudo e nada, mão no ombro, com calma, como se o dia não fosse acabar. E se despediu sem promessas. Mesmo assim, o alívio de quem falara com ele era óbvio: era o alívio de ter sido escutado ou escutada. O fardo ficava com Serra.
Quase no fim da caminhada, uma mulher protestou. Disse que Serra teria seu voto, que não se preocupasse, mas que essas caminhadas atrapalhavam o trânsito na hora do rush. Fiquei a fim de lhe responder que os verdadeiros beneficiários das caminhadas às quais eu assisti éramos nós, os cidadãos.
Nelas, o que importava não eram tanto os votos ganhos ou não pelo candidato. O que importava era o encontro do candidato com o murmúrio surdo da demanda humana.
Pois, quando esse encontro não acontece ou quando a demanda é calada à força de ilusões, é difícil que um candidato adquira a estatura moral que se espera de quem governa.
Serra detesta demagogia; responde aos apelos que ouve com calma e se despede sem promessas
CONTARDO CALLIGARIS
Na sabatina da Folha, Serra chegou com um pequeno atraso.
Sabíamos que acontecera um imprevisto e, nos bastidores, houve um momento em que chegamos a pensar que o debate não aconteceria. Enfim, a sabatina começou 15 minutos mais tarde do que a norma dos dias anteriores.
Quando voltei para casa, poucas horas depois, encontrei o e-mail de uma leitora, que acabava de assistir ao debate. Ela esculhambava o candidato, observando que ele nem pedira desculpas pelo atraso, "que parece ter achado supernormal". A seu ver, Serra, com seu silêncio, saíra mal na foto.
Ora, junto com os outros entrevistadores e os organizadores do debate, eu conhecia as razões do atraso. Eram do tipo que, se reveladas, tocariam o coração e ganhariam a simpatia imediata de todos os presentes. Serra não as mencionou.
Tampouco ele inventou uma daquelas desculpas que garantem a cumplicidade de um público paulistano (uma alusão ao trânsito, por exemplo). Pois bem, a escolha de não dizer nada, que pareceu áspera à leitora que me escreveu, é o efeito de um "parti pris", que se manteve constante nas conversas que tive com Serra e na caminhada em que pude acompanhá-lo: José Serra detesta demagogia.
O que não significa que ele não queira a simpatia e a aprovação dos outros (isso, todos queremos). Ao contrário, a recusa da demagogia, desse ponto de vista, é a expressão de um pedido especialmente rigoroso. Traduzido nos termos das relações amorosas, é parecida, por exemplo, com o pedido de uma parceira que exigiria: goste de mim descabelada, de manhã cedo, sem maquiagem e sem plástica.
Lembra? No debate ao redor da moratória da dívida externa durante o governo Sarney, por exemplo, Serra admitia a moratória, pois, de fato, o Brasil não tinha como honrar os pagamentos previstos. Mas ele se opunha à transformação desse fracasso financeiro num grito heróico de independência. Nada de dourar a pílula para acariciar o ufanismo na direção do pelo. Mais recentemente, na ocasião do aniversário do golpe de 64, Serra, com 14 anos de exílio nas costas, poderia participar da festa tocando na banda da vitória. Preferiu criticar sua própria atuação na época e apontar, no comportamento de Jango e das esquerdas, fatores que precipitaram o golpe.
A recusa obstinada da demagogia pode cortar os entusiasmos e ter um custo político. Mas seu custo maior acaba sendo subjetivo. Explico.
Sábado passado, Serra aceitou me receber. Salvo pela sessão da sabatina, dias antes, foi nosso primeiro encontro e conversamos noite adentro. Falando das campanhas, ele disse que o mais difícil não são as horas de gravação, as discussões estratégicas, os comícios, as carreatas, as caminhadas, nem mesmo os ataques.
A tarefa mais árdua é prestar ouvido à massa de queixas, lamentações e pedidos, vozes da infinita variedade da infelicidade humana, das quais talvez qualquer político ou candidato seja o destinatário.
Em cima da mesa que estava entre nós, havia um apanhado de cartas e bilhetes que os eleitores tinham depositado na mão de Serra naquele dia. Alguns pedidos permitiam uma resposta adequada e circunscrita: dificuldades em obter consultas médicas ou agendar operações, histórias de IPTU excessivo, de lentidões administrativas e por aí vai.
No Ministério da Saúde de Serra, aliás, um assessor era encarregado de resolver as dificuldades dos cidadãos que escreviam. Claro, era uma gota de água. As soluções encontradas não operavam nem prometiam as mudanças coletivas desejadas, no entanto eram um jeito de não esquecer que a política não é nada se não responde às necessidades das vidas concretas. Seja como for, a esses pedidos era fácil responder com uma ação.
Mas, em sua imensa maioria, as cartas e os bilhetes na minha frente eram folhas de caderno em que uma escrita hesitante e corajosa expressava dores cuja solução não estava ao alcance de uma ação: vidas quebradas por uma mistura de falta de emprego e de função social, dramas familiares, fugas, lutos.
As missivas não pediam nada e pediam tudo. Pareciam-se com as invocações que, em certas igrejas de minha infância, os fieis depositavam ao lado da estátua do santo ou nas dobras de seu manto, para que ele lesse e tomasse providências. Algumas nem detalhavam males e sofrimentos; confiavam na onisciência do destinatário, diziam apenas: "Serra, nos ajude".
Ora, talvez a demagogia política tenha sido inventada para isto: para que candidatos e governantes possam agüentar mais facilmente o peso da demanda que recebem, calá-la enfiando balinhas de ilusão na goela de quem se queixa e, naturalmente, em seus próprios ouvidos.
Aparentemente, Serra não sabe se dar esse luxo. E, sem o recurso da demagogia, o peso dos pedidos é violento, produz a sensação de uma responsabilidade constante por uma tarefa impossível.
Talvez por isso mesmo Serra pareça sempre procurar, na fala de quem o interpela, algum pedido concreto, algo que possa receber uma resposta efetiva.
Segunda-feira, no bairro Jova Rural, Serra visitou a casa de uma jovem senhora, Andréa Rodrigues. Escutou uma dura história de doenças e infortúnios. E disse para Andréa, que mostrava um sorriso desdentado: "Precisamos arrumar esses dentes". Brutal? Inoportuno? Acho que, para Serra, era o jeito de encontrar algo que pudesse ser feito mesmo, de não sucumbir ao marasmo do impossível. Não temos as chaves do paraíso, mas algo podemos mudar, uma coisa pequena comparada com o resto, mas uma coisa: os dentes.
Às vezes, esse anseio de fazer assusta. Numa caminhada no Tremembé/Jaçanã (conheci enfim o lugar para onde vai o trem das 11), um homem pára sua bicicleta de corrida e, do fio da calçada, grita: "Serra, vamos fazer pistas para bicicletas!".
Imagino que ele esperasse um gesto ou um sorriso de aprovação. Mas Serra foi até ele: "Vamos fazer, sim. É uma questão importante, que é preciso estudar com cuidado". Estupefação do homem; aparentemente o apego ao que pode ser feito é mais inesperado do que a vaga referência ao sol de amanhã.
E quando não há nada que possa ser feito? Na caminhada no Tremembé, Serra ouviu muitas queixas de tudo e nada, mão no ombro, com calma, como se o dia não fosse acabar. E se despediu sem promessas. Mesmo assim, o alívio de quem falara com ele era óbvio: era o alívio de ter sido escutado ou escutada. O fardo ficava com Serra.
Quase no fim da caminhada, uma mulher protestou. Disse que Serra teria seu voto, que não se preocupasse, mas que essas caminhadas atrapalhavam o trânsito na hora do rush. Fiquei a fim de lhe responder que os verdadeiros beneficiários das caminhadas às quais eu assisti éramos nós, os cidadãos.
Nelas, o que importava não eram tanto os votos ganhos ou não pelo candidato. O que importava era o encontro do candidato com o murmúrio surdo da demanda humana.
Pois, quando esse encontro não acontece ou quando a demanda é calada à força de ilusões, é difícil que um candidato adquira a estatura moral que se espera de quem governa.
Assinar:
Postagens (Atom)