É raro, mas acontece: um psicoterapeuta pode sugerir que seu paciente assista a um filme específico. Quem sabe a experiência facilite a reflexão do paciente sobre suas dificuldades ou o ajude a inventar uma solução.
Ora, Gary Solomon -psicólogo americano, conhecido como "doutor Cinema" proclama que as sugestões cinematográficas constituem propriamente um método terapêutico. Solomon publicou, em 1995, "The Motion Picture Prescription" (receitando filmes) e, recentemente, "Reel Therapy" (a terapia da bobina).
Ambos os livros são catálogos de filmes que podem ser receitados. Cada título é acompanhado por uma lista intitulada "temas curativos" (são os problemas para o tratamento dos quais o filme é indicado) e pela seção "Cinematerapia", na qual Solomon encaminha o olhar dos pacientes-espectadores na direção dos "temas curativos".
Tomemos "Cidadão Kane". Eis os "temas curativos": "ser obcecado pelo dinheiro, ser obcecado pelo poder, quando ter um affaire torna a gente infeliz, aprender que há mais na vida do que os objetos materiais, desejo de voltar a uma infância inocente". Na "Cinematerapia", Solomon confessa que ele mesmo nasceu na parte pobre de Inglewood, Califórnia, e que, a cada vez que atravessava os bairros ricos, ele pensava que seus habitantes deveriam ser muito felizes. Mais tarde, ele acrescenta, "aprendi o que filmes como "Cidadão Kane" podem ensinar: o dinheiro não preenche o vazio que vem do fato de não gostar de si mesmo e da vida que nos foi dada".
Ele chama a atenção para o fim do filme, quando Charles murmura suas últimas palavras: "Rosebud" é o nome de seu trenó quando ele era criança. Solomon comenta que muitos trocariam sua fortuna pelos prazeres simples da infância. Muitos, ele continua, sentem essa nostalgia, mas não conseguem falar disso. Portanto não fazem nada de construtivo para mudar sua vida. "Está cansado de viver sempre sob a pressão financeira que o prende a seu trabalho? Poderia podar um pouco seu padrão de vida e começar uma nova carreira? Talvez você seja um advogado que sempre quis ser um jardineiro." Em suma, assistindo ao filme, o paciente reconhecerá uma infelicidade com a qual ele sofria, mas que mal conseguia definir. Graças ao filme, ele saberá tomar providências.
Solomon não propõe teorias. Ele constata apenas que os pacientes, assistindo aos filmes receitados, descobrem que seus problemas são compartilhados por outros e, com isso, param de negá-los. Um filme fornece palavras e imagens para descrever e abordar questões que, sem isso, permaneceriam perigosamente silenciosas. Outro filme permite a volta de lembranças perdidas ou a experiência de emoções reprimidas.
Para ilustrar o valor formador do cinema, Solomon evoca sua infância difícil: "A maioria das pessoas, sobretudo as crianças, diverte-se assistindo aos filmes. Mas eu devo algo mais ao cinema: aprendi com ele a sentir coisas que minha família nunca me ensinou a sentir. O medo, sim, eu tinha bem claro. Estava com medo o tempo inteiro. O meu pai passava seu tempo espantando quase mortalmente a minha mãe, a minha irmã e a mim. Mas o restante do leque emocional dos sentimentos, como o amor, a confiança e a empatia, eu aprendi no cinema".
Por que no cinema e não na literatura? Solomon foi disléxico desde a infância. Mas não precisa de tanto. Eu, por exemplo, fui um leitor precoce e continuo lendo romances e contos com paixão. Mas lembro que, nos 12 meses dos meus 15 anos, li quatro Dostoiévskis e vi, no mínimo, 140 filmes. três a cada sábado, no cineclube da escola. Além dessa superioridade quantitativa, a imagem cinematográfica oferece um suporte fácil e imediato para nossas identificações. Conclusão: como todo o mundo, aprendi a viver, no mínimo, tanto pelo cinema quanto pela literatura.
De qualquer forma, se o cinema é para nós uma experiência formadora, por que não usar filmes escolhidos como um supletivo para momentos difíceis? Os pais de adolescentes usuários de drogas deveriam assistir a "Bicho de Sete Cabeças". Qualquer casal atormentado pelo ciúme masculino encontraria sua cura numa boa dose de "Eu Tu Eles". E por aí vai.
A ordem moderna do mundo é bastante incerta. Para orientar nossas condutas, só dispomos dos cenários que nós mesmos inventamos. Desses cenários, o cinema é o repertório maior e de acesso mais fácil.
Entendo, portanto, o entusiasmo de Solomon. Mas, antes de transferir meu consultório para a cinemateca, uma hesitação. Certo, podemos sofrer de uma falta de histórias que dêem sentido a nossas vidas, histórias que o cinema nos ajuda a encontrar e a inventar. Mas sofremos também de um excesso de histórias. Para evitar o pouco sentido da vida e do mundo, nós nos enredamos, às vezes, em cenários sofridos ou francamente catastróficos, mas aos quais não sabemos como renunciar. Em suma, pode ser útil que um psicoterapeuta seja lanterninha, mas qualquer lanterninha deve, de vez em quando, saber anunciar que o filme acabou e que já está na hora de voltar para a rua.
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