quinta-feira, 3 de janeiro de 2002

Contamos contigo, Frodo Bolseiro

Assistir ao filme "O Senhor dos Anéis" é uma boa maneira de começar o ano. Afinal, 2001 deixou um gosto amargo na boca de todos. O terceiro milênio estreou zombando de nossa razão. Em poucos meses, à força de bombas e guerras, nos foi lembrado de que há diferenças culturais que não admitem papo, assim como há desigualdades que não sabemos (ou não queremos) corrigir. Por que, então, não viajaríamos de vez para um mundo completamente diferente?

Em Nova York, na saída do cinema, falei com vários adolescentes americanos (na maioria eram também leitores da obra de Tolkien que inspira o filme). Todos comentaram que a história era, para eles, o portal de acesso a um outro mundo.

Em 1966 (eu tinha 18 anos), "O Senhor dos Anéis" fazia parte de minha mochila californiana, assim como de quase todas as mochilas que circulavam pelos EUA. Para a contracultura dos anos 60, a obra de Tolkien era, justamente, a invenção alucinada de um outro lugar, para o qual gostaríamos de ser transportados. O mapa da Terra-média guiaria os passos de nossa fuga.

Sonhar em pertencer a um mundo distante é um lugar-comum da adolescência -uma maneira de resolver os conflitos familiares. Assim, muitos fantasiam que não são daqui. Por mais que gostem de seus pais, imaginam vir de alhures. Talvez eles tenham sido encontrados, ainda bebês, numa ruela escura, ou depositados pela cegonha num endereço errado. Um dia, seus "verdadeiros" parentes -extraterrestres, gente do futuro que perdeu seus rebentos em algum túnel do tempo- voltarão e esclarecerão o mal-entendido.
É banal querer ser de um outro mundo. Mas por que logo da Terra-média? O mundo inventado por Tolkien não é muito melhor do que o nosso. Por que emigrar para um lugar que é tão cruel, perigoso, assustador e incerto quanto o nosso? O fato é que "O Senhor dos Anéis" exerce também uma outra sedução.

Certamente, a literatura medieval inglesa alimentou a fantasia de Tolkien. Mas Frodo, o herói de "O Senhor dos Anéis", não é nenhum cavaleiro da Távola Redonda. O mesmo vale para Bilbo, o herói de "O Hobbit" (o conto que precede a trilogia de "O Senhor dos Anéis"). Nenhum dos dois é um bonitaço, ainda menos um brutamontes experto no manuseio de arco, flechas, espada ou vara mágica. Como todos os hobbits, Frodo e Bilbo são baixinhos, têm pés cabeludos e entendem sobretudo de cerveja, de papos, de festas e de cachimbos fumados perto da lareira.

Claro, Frodo escutou Bilbo contar suas aventuras passadas e, como todos os jovens hobbits do condado, sonha com gestas mais excitantes do que chupar cana embaixo de uma árvore. Mas são apenas devaneios. Ora, esse Frodo, tranquilo, feliz, sonhador e qualquer, carregará em seus ombros a responsabilidade de enfrentar o mal. Ele será ajudado por nobres magos, cavaleiros, elfos e anões, mas, no fundo, o destino do mundo dependerá dele.

Para Tolkien, provavelmente, a história de Bilbo e Frodo era uma maneira de tecer os elogios da geração que ganhou a Segunda Guerra Mundial. Frodo é o conscrito que foi arrancado à paz de sua vila e aceitou arriscar a vida na luta contra uma espécie de horror absoluto -no caso, o nazismo. Ou, então, considerando a diferença entre as gerações, Bilbo (o tio de Frodo e herói de "O Hobbit") é o protótipo do conscrito da Segunda Guerra, e nós somos Frodo: a geração seguinte, que sonha com a chance de enfrentar provas parecidas.

Em suma, "O Senhor dos Anéis" (livro e filme) nos seduz. E não é apenas por prometer evasão para uma terra exótica e mágica. Estamos a fim de ir para a Terra-média sobretudo porque, lá, um hobbit comum como a gente teve a chance de mostrar do que ele era capaz.
Tenho um misto de simpatia e desconfiança pelos sonhos de aventuras heróicas, que são tão presentes em todos nós.

Tenho simpatia porque gosto deste mundo, em que o valor de cada um depende de seus atos, e não da nascença ou do tamanho. Assim como gosto que o heroísmo não seja a prerrogativa de uma casta, mas uma chance para o homem qualquer descobrir e afirmar sua grandeza.
Tenho desconfiança porque, à força de esperar que provas extraordinárias nos revelem ao mundo e a nós mesmos, acabamos esquecendo o valor das coisas ordinárias. Celebramos o heroísmo só em aventuras espetaculares e mal sabemos reconhecê-lo na persistência das tarefas difíceis, às vezes repetitivas, do cotidiano.

De qualquer forma, assistir ao filme e conversar com os jovens espectadores me trouxe um certo conforto. Pelo visto, se um Senhor dos Anéis ameaçasse nosso mundo, os jovens de hoje acorreriam, prestes a erguer seus modestos punhais contra o poder terrificante de tamanho inimigo -dispostos, sem dúvida, a encarar o supremo sacrifício.

Será? Em todo caso, eles acorreram com entusiasmo para ver, no cinema, a história de Frodo Bolseiro. Agora, só resta esperar que, embora inspirados pela coragem do hobbit, na hora do vamos ver, eles não se contentem, por exemplo, com um videogame de "O Senhor dos Anéis".

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