quinta-feira, 24 de janeiro de 2002

Sem posse da rua, não há comunidade

Parece que a rua não é mais nossa. De noite ou de dia, a pé, de carro ou num transporte público, sozinhos ou acompanhados, em áreas escuras e/ou na frente de restaurantes com seguranças de plantão, tanto faz. Tocamos nossas vidas com a sensação de que participamos de um jogo de azar. É uma nova roleta-paulista: não é mais necessário atravessar um cruzamento à disparada e sem olhar. Basta, aparentemente, ir para a rua, que não é mais nossa.

Claro, poderemos sobreviver sem a rua. Mas o preço que pagaremos por entregá-la é mais alto do que a dor das mortes e das violências sofridas. No dia em que perdermos mesmo o uso da rua, provavelmente não existiremos mais como comunidade. O Brasil e suas cidades, São Paulo e seus municípios serão expressões meramente geográficas. Designarão lugares onde vivem pessoas que trabalham e comerciam (alguns prosperando, outros menos), mas que, fora essa contingência econômica, não têm nenhuma razão de estarem juntas naquele canto do mapa. Pessoas, em suma, que não imaginam uma história comum e não sonham com um futuro comum.

Amanhã, em São Paulo, festeja-se o aniversário da cidade. Em princípio, celebra-se a aventura de uma vila de bandeirantes e índios que, à força de migrações, lutas, sacrifícios e uma certa dose de horrores, se tornou uma das maiores metrópoles do mundo -onde uma extravagante diversidade étnica e social de pessoas compartilha a esperança de seguir convivendo e de encontrar, nessa convivência, alguma prosperidade não só econômica.

Ora, se entregarmos a rua, poderemos celebrar apenas o aniversário da ocupação dos triângulos desenhados pelo encontro entre o rio Tietê e o rio Pinheiros.

Não estou exagerando: uma comunidade, para existir minimamente, não pode renunciar à forma básica de sua presença, que é a garantia de um espaço público amigável para seus membros -área comum do condomínio democrático.

O Brasil tem uma longa história de prevalência dos interesses privados sobre os interesses públicos. Afinal, como é lembrado sempre, o país nasceu da ganância solitária dos colonizadores. Mas os tempos estão mudando. Aos poucos, sem milagres, mas estão mudando. A novidade das últimas décadas é o surgimento progressivo de uma comunidade nacional, animada por novos cuidados com o bem comum e por novos anseios de justiça. Celso Daniel era um dos artesãos dessa mudança.

Infelizmente a comunidade nascente é tímida, inibida na hora de reivindicar e de proteger o espaço público. Essa inibição manifesta-se, em particular, na (inesgotável) indagação das causas da violência.

Por exemplo, entendemos a violência como uma herança histórica da exploração colonial e da escravatura. Então, fazer o quê? Parece que só nos resta sonhar com o que seria o Brasil hoje se tivesse sido colonizado por puritanos ingleses. É um estranho fatalismo. Pois, se você adoecer e a origem da doença for genética, será que por isso você desistiria dos tratamentos químicos ou cirúrgicos?

Outro exemplo. Entendemos a criminalidade como um efeito direto da desigualdade e da miséria. Implicação: não adianta tentar combatê-la até que chegue o reinado da justiça social. Entretanto só sobra espaço para agitações retóricas e para anseios de reforma, que são justos, mas, no caso, ineficientes.

Talvez a paralisia que resulta da indagação das causas seja uma maneira mórbida de expiar nossas culpas sociais. Assim: há bastante miséria e nos sentimos culpados, social e historicamente; que a criminalidade, então, vingue os injustiçados.

Seria bom renunciar ao deleite doentio da culpabilidade e fazer o necessário para devolver a rua à comunidade. Será que a morte de Celso Daniel nos convencerá de que, sem a posse da rua, a comunidade que queremos nunca poderá existir?

De conferência em debate, não é difícil constatar que, nos últimos 15 anos, constituiu-se um consenso comprovado sobre como conter e diminuir drasticamente a violência criminosa urbana.

A lista de medidas necessárias é conhecida, a ponto que dá vergonha repeti-la. Começa por uma reforma da polícia (qualificação, treinamento, inserção e valorização social dos policiais) e de sua atuação (comando unificado, policiamento comunitário, contabilidade dos crimes por setor etc.). Passa pela criação e valorização dos espaços públicos (repressão dos crimes contra a qualidade de vida, operações "belezura" etc.). E por aí vai.

Alguns dirão que o Brasil não tem os meios para tantas reformas. Não sei fazer essas contas. Mas é lícito concluir que, se for assim, o Brasil não tem os meios para se tornar a comunidade que todos esperamos. Pois essa comunidade não existirá sem a posse da rua.

Numa triste volta do desânimo cínico dos anos 80 (a época de "O Brasil não presta"), um conhecido me dizia anteontem que, se fosse sequestrado ou se entrassem na sua casa, ele diria: "Fica tudo com vocês, sem problema. Só deixem, por favor, um cartão para eu comprar a passagem e uma nota de R$ 50 para o táxi até Guarulhos".

Nenhum comentário:

Postar um comentário