"Pearl Harbor" chega às salas brasileiras amanhã. A estréia americana, no fim de semana passado, não foi um triunfo -apenas um sucesso. Não estranhei, pois o filme é um pouco amargo para os espectadores dos EUA.
Assisti duas vezes a ele: queria retomar o pulso da platéia que me pareceu, certo, comovida com os amores, as amizades e os heroísmos, mas, sobretudo e paradoxalmente, triste e pensativa.
Não sei se "Pearl Harbor" será um sucesso no Brasil. Talvez os efeitos especiais e o dramalhão toquem um refrão universal, do tipo "Titanic". De qualquer forma, o filme é interessante para quem queira entender o momento atual da consciência americana.
"Pearl Harbor" é o último fogo de artifício de uma década que idealiza intensamente a geração de americanos que lutaram na Segunda Guerra Mundial.
São chamados "the greatest generation", a maior das gerações: a eles são consagrados livros, programas de televisão, documentários, filmes e monumentos. Segundo a cultura popular, esses pais ideais foram capazes de paixões, amores e amizades sublimes. Mesmo vivendo tão intensamente, sabiam reconhecer seu dever e identificar a hora do sacrifício. Eram sempre voluntários, sem choramingar. Cresceram nos anos 20 e 30, uma época em que (sempre segundo a fantasia ideal) o problema não era como ostentar luxos, mas como colocar na mesa o pão de cada dia. Tinham instrução média, sem "frescuras" intelectuais, mas com orgulhosa independência de espírito. Tinham ambições saudáveis e limitadas. Eram idealmente de origem rural -por isso sabiam caçar, pescar, arrumar seus carros, construir casas e, enfim, souberam lutar.
Não sei se os homens da "grande geração" foram mesmo desse jeito. Mas é certo que nem sempre a cultura popular imaginou que fossem assim. Ao contrário. Os cinéfilos lembram-se de "From Here to Eternity" ("A um Passo da Eternidade"), Oscar de 53. Sem efeitos especiais, é "Pearl Harbor" imaginado 50 anos atrás por um olhar impiedoso. Esse olhar durou até os anos 80. Em 79, num remake do filme de 53, os protagonistas são ainda mais sinistros. Os homens destinados à eternidade da glória são um soldado que se apaixona por uma prostituta e um sargento que consegue transar com a mulher do capitão (que é uma perua). Aparentemente, dos anos 50 aos 80, os americanos não precisaram idealizar tanto seus grandes guerreiros.
Hoje o monumento erigido à "grande geração" parece ser o doloroso serviço fúnebre da grande figura mítica americana: uma mistura do homem da milícia que defendeu sua independência contra os ingleses com o homem da fronteira em luta contra os índios, os elementos e a modernização. É "O Patriota" com "Jeremiah Johnson". Esse mito do cidadão soldado acompanhou os combatentes americanos da Segunda Guerra Mundial: os voluntários de 41 e 42 assistiram a "Sergeant York" (1941), que foi filmado para eles. Como Gary Cooper, eram (ou se imaginavam) livres-pensadores rurais, atiradores temíveis, herdeiros de Davy Crockett e Daniel Boone.
Ora, aconteceu que, de 50 a 90, os EUA prosperaram demais. A crítica ou mesmo a irrisão dos ideais e das vidas "simples" da grande geração serviu para que os "baby-boomers" (os que nasceram na explosão populacional posterior à Segunda Guerra Mundial) se autorizassem a perseguir conforto e riqueza, evitando o peso de tributos excessivos ao dever e à comunidade. De repente, hoje, aqueles antigos ideais fazem falta. Os heróis de "Pearl Harbor", como o sargento York, pertencem a uma espécie de americano que está em via de extinção. Descobre-se hoje que talvez eles sejam indispensáveis para dar sentido à nação.
Na sala de cinema, sexta-feira, à minha esquerda, uma moça chora. À direita, um homem chegou pronto para uma orgia de pipoca, chocolate e Coca-Cola, mas deixou tudo no chão, intato. Na saída, adolescentes conversam sobre a possibilidade de entrar para a Marinha e ganhar assim uma bolsa para a universidade. Um deles aponta o dedo para um amigo: "Você não tem colhão para isso". Ninguém no grupo acha graça. É que a questão parece pairar no ar para todos: como Roosevelt diz no filme, o mundo pensava que os americanos fossem uma nação de fracotes e playboys, eles (a grande geração) mostraram o contrário -e nós, agora, o que somos?
Em 66/67, passei um bom tempo em Houston, Texas. Vivia na casa de Bob, que era então meu sogro -numa periferia onde os restos rurais lutavam contra a invasão da caricatura suburbana. Com Bob, conheci a América da grande geração.
Era um universo machista, às vezes (mas nem sempre) racista, com um perfume de lubrificante de armas, de pólvora e de isca viva para pescar, com conversas sobre caça e munições, com óleo de motor e de freios no chão de garagens que pareciam oficinas mecânicas.
Hoje, nas bancas de jornais americanas, a seção de revistas de armas, caça e pesca -que ainda era enorme nos anos 60- é invadida pelas revistas de "fitness", de computação e de investimento.
Nesse contexto, para os americanos, lembrar-se de Pearl Harbor pode ser uma meditação sobre a decadência
quinta-feira, 31 de maio de 2001
quinta-feira, 24 de maio de 2001
A vida é o que interessa, o resto não tem pressa
Durante uma recepção em Nova York, na quinta-feira passada, conversava com alguns executivos da área financeira. Falávamos dos apagões no Brasil e nos EUA quando mais um convidado se agregou ao grupo, anunciando que seu dia fora glorioso. O recém-chegado era advogado e passara a tarde trabalhando na aquisição do grupo financeiro Banamex (o segundo banco mexicano em ordem de grandeza) pelo Citigroup: uma compra de US$ 12,5 bilhões. Ele acrescentou, com orgulho, que muito cedo só sobrarão no mundo quatro ou, no máximo, cinco bancos globais.
Desrespeitei as convenções do bom convívio social e interrompi o relato entusiasmado do jovem advogado para declarar que acho essas fusões péssimas. A idéia de que sobrem só poucos enormes bancos globais me apavora e me indigna.
Expliquei: eu não voto em bancos, não escolho políticas financeiras nem dirigentes administrativos. Meu controle (bem limitado) sobre o mundo passa pelas eleições e pelo pequeno alcance de atividades políticas locais (expresso opiniões, frequento associações da sociedade civil etc.). Ora -acrescentei-, quando as forças que movem as finanças mundiais são colossos mais poderosos do que os governos nacionais, o exercício democrático fica comprometido. Que diferença faria meu voto num mundo onde quatro bancos decidem como, quando e para onde vai o capital? Com minha cédula na mão ou tomando a palavra numa associação de pais e mestres, vou ser feito de palhaço enquanto, em algum escritório de Zurique ou de Nova York, homens em quem nenhum povo votou decidem se e como nossa comunidade receberá crédito, investimentos etc.
Calei-me, enfim, arrependendo-me um pouco de minhas palavras. Pensei: é apenas um jovem advogado que se sente importante. Vai ver que, atrás do entusiasmo infantil, ele esconde um coração generoso. De fato, meu interlocutor não comprou a briga. Ao contrário, como se quisesse se justificar, ele disse: "Você entende, é que há um bom dinheiro para nós" (ou seja, para seu escritório de advocacia). Nenhum cinismo nisso. Ele tentava mesmo ganhar minha simpatia. Mas como?
Contava com minha cumplicidade, apostava que compartilhássemos a convicção (dominante) de que, no fundo, o bem-estar justifica qualquer empreendimento. Por esse caminho, quem sabe eu também mudasse de idéia sobre fusões e aquisições: quatro bancos globais, justamente por serem poucos, podem se entender melhor e garantir estabilidade a nosso mundo. Portanto todos teriam uma vida, se não boa, melhor. Isso não é mais importante que qualquer fala "abstrata" sobre democracia, participação etc.?
O sorriso conciliatório do jovem advogado supunha, com razão, o triunfo de um ideário que, desde o fim do século 18, substituiu as aspirações ideais do Antigo Regime ou do mundo clássico pelos valores burgueses da saúde, do bem-estar, do conforto. Pergunte ao redor de si: qual é o valor supremo? Na esmagadora maioria dos casos, a resposta hodierna será: a vida. Quem ousaria opor-se? A modernidade funda seus valores de bem-estar e de conforto numa evidência apresentada como biológica.
O que o homem quer? Viver, "naturalmente". E, portanto, viver bem, não é? É necessário um sério esforço para se lembrar de que essa opção "pela vida" não é nada natural. Ela serve para impor a vida boa e o conforto como valores supremos, referências e justificações morais. Para um estóico, um cristão dos primeiros séculos e mesmo qualquer sujeito até o século 18, na hierarquia dos valores, a vida viria depois da dignidade, da verdade, da fé, da honra etc. Aliás, a vida passou a encabeçar a lista dos valores logo que surgiram ideais populares de participação política e de justiça social. Por que será?
No café Landolt, em Genebra, perto da faculdade de letras, numa noite de 1969, encontrei um colega estudante. Chamava-se Dettmeyer, era holandês e decididamente impopular por ser o único da turma que se declarava de extrema-direita. Cuidado: Dettmeyer não era autoritário ou nazi-fascista, mas anarquista, niilista e propagandista do "Único", de Max Stirner. Eu, ao contrário, tinha a reputação banal de ser um esquerdista. Dettmeyer sentou-se perto de mim e disse-me solenemente: "Temos em comum o essencial: um sentimento trágico da existência". Desprezei aquela observação e encorajei Dettmeyer a levar seu bigode nietzschiano para outra mesa.
Diante do advogado nova-iorquino, a frase de Dettmeyer, esquecida há 30 anos, voltou e fez sentido. Na verdade, senti nostalgia de Dettmeyer. Por não estar obnubilado pelo aparente sucesso da festa de 68, ele devia perceber melhor do que eu a invasão iminente que nos espreitava, ouvir o rolo compressor da ideologia do bem-estar -sorridente e vitoriosa pela facilidade sedutora de suas receitas: esqueçam suas complicadas esperanças existenciais, políticas, sociais.
A saúde, a forma física, o conforto -em suma, a vida é o que interessa, o resto não tem pressa.
quinta-feira, 17 de maio de 2001
Pena de morte
Na quinta-feira passada, comentando o crime de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, evoquei figuras de criminosos repugnantes.
Alguns leitores observaram (com razão) que, de qualquer forma, as explicações sociológicas ou psicológicas não valem como desculpas. E perguntaram: "Você é contra ou a favor da pena de morte?". Uma leitora foi mais específica: "Como psicanalista, o que você pensa sobre a pena de morte?".
Imagine que um deus, um poder absoluto ou um texto sagrado declarem que quem roubar ou assaltar será enforcado (ou terá a mão cortada). Nesse caso, puxar a corda, afiar a faca ou assistir à execução seria simples, pois a responsabilidade moral do veredicto não estaria conosco. Nas sociedades tradicionais, em que a punição é decidida por uma autoridade superior a todos, as execuções podem ser públicas: a coletividade festeja o soberano que se encarregou da justiça -que alívio!
A coisa é mais complicada na modernidade, em que os cidadãos comuns (como você e eu) são a fonte de toda a autoridade jurídica e moral. Hoje, no mundo ocidental, se alguém é executado, o braço que mata é, em última instância, o dos cidadãos -o nosso. Mesmo que o condenado seja indiscutivelmente culpado, pairam mil dúvidas. Matar um condenado à morte não é mais uma festa, pois é difícil celebrar o triunfo de uma moral que é tecida de perplexidades. As execuções acontecem em lugares fechados, diante de poucas testemunhas: há uma espécie de vergonha. Essa discrição é apresentada como um progresso: os povos civilizados não executam seus condenados nas praças. Mas o dito progresso é, de fato, um corolário da incerteza ética de nossa cultura.
Para entender melhor essa transformação moral, considere, na tradição cristã, a passagem do Antigo para o Novo Testamento. A lei bíblica de talião (olho por olho, dente por dente) é exemplar de uma sociedade tradicional: a autoridade de um texto codifica a retaliação como punição adequada. Do talião passamos à recomendação de Cristo: "Quem estiver sem pecado jogue a primeira pedra". Agora devemos achar em nós mesmos a autoridade moral para julgar.
Às vezes, para evitar essa responsabilidade impossível, preferimos pensar que todos os criminosos sejam vítimas das circunstâncias ou de seus genes -portanto irresponsáveis. Convencidos de carregar em nós mesmos os germes de qualquer depravação, não ousamos mais punir. Caímos numa abstinência moral.
Uma versão laica (e psicanalítica) da recomendação do Evangelho diria assim: só podemos punir de maneira radical se, punindo, não estivermos reprimindo nos outros algo que queremos de fato reprimir em nós. Explico.
Freud descobriu que, cada vez que somos levados a desistir de alguma satisfação, a raiva de ter que renunciar se transforma em vontade de policiar e de reprimir os outros. A obediência às regras da comunidade nos pesa: consolamo-nos e vingamo-nos punindo os infratores. Ou seja, quanto mais somos reprimidos, tanto mais nos tornamos repressores. Por exemplo, já queimamos ou degredamos homossexuais e sodomitas como medida de proteção contra nossos próprios desejos homoeróticos, que julgávamos perigosos para a constituição de "saudáveis" comunidades cristãs.
Em suma, reprimimos em nós desejos e fantasias cuja atuação nos parece ameaçar o convívio social. Logo, frustrados, zelamos pela prisão daqueles que não se impõem as mesmas renúncias. Até aqui, tudo bem: reprimir é mesmo parecido com prender -a vida social pede que confinemos desejos e pessoas.
Mas a coisa muda quando a pena é radical, pois há o risco de que a morte do culpado sirva para nos dar a ilusão de liquidar, com ele, o que há de pior em nós. Nesse caso, a execução do condenado é usada para limpar nossa alma. É como se, por exemplo, querendo coibir suas vontades masturbatórias, em vez de enclausurar seus pensamentos impuros, um sujeito se automutilasse.
Assim, no século 19, houve médicos que, para reprimir (em sua cabeça, naturalmente) o escândalo de que houvesse um desejo sexual feminino, passaram a cauterizar o clitóris das meninas com ferro incandescente.
Nas cadeias brasileiras, os estupradores são executados pelos outros presos.
Por mais que essa regra seja explicada pela necessidade de proteger as mulheres dos presos que ficaram sozinhas "lá fora", é difícil não suspeitar que, nessa prática, os presos queiram sobretudo liquidar seu próprio desejo de estuprar (ou de serem estuprados) na cadeia. Em geral, a justiça sumária é isso: uma pressa em suprimir desejos inconfessáveis de quem faz justiça.
A resposta à leitora, então, é que, como psicanalista, apenas gostaria que a morte dos culpados não servisse para exorcizar nossas piores fantasias -isso sobretudo porque o exorcismo seria ilusório.
Contudo é possível que haja crimes hediondos nos quais não reconhecemos nada de nossos desejos reprimidos. Quando esse fosse o caso, por que a pena não seria a morte? Pois é, o caminho está cheio de pedras, quem achar isso mesmo que se sirva...
Alguns leitores observaram (com razão) que, de qualquer forma, as explicações sociológicas ou psicológicas não valem como desculpas. E perguntaram: "Você é contra ou a favor da pena de morte?". Uma leitora foi mais específica: "Como psicanalista, o que você pensa sobre a pena de morte?".
Imagine que um deus, um poder absoluto ou um texto sagrado declarem que quem roubar ou assaltar será enforcado (ou terá a mão cortada). Nesse caso, puxar a corda, afiar a faca ou assistir à execução seria simples, pois a responsabilidade moral do veredicto não estaria conosco. Nas sociedades tradicionais, em que a punição é decidida por uma autoridade superior a todos, as execuções podem ser públicas: a coletividade festeja o soberano que se encarregou da justiça -que alívio!
A coisa é mais complicada na modernidade, em que os cidadãos comuns (como você e eu) são a fonte de toda a autoridade jurídica e moral. Hoje, no mundo ocidental, se alguém é executado, o braço que mata é, em última instância, o dos cidadãos -o nosso. Mesmo que o condenado seja indiscutivelmente culpado, pairam mil dúvidas. Matar um condenado à morte não é mais uma festa, pois é difícil celebrar o triunfo de uma moral que é tecida de perplexidades. As execuções acontecem em lugares fechados, diante de poucas testemunhas: há uma espécie de vergonha. Essa discrição é apresentada como um progresso: os povos civilizados não executam seus condenados nas praças. Mas o dito progresso é, de fato, um corolário da incerteza ética de nossa cultura.
Para entender melhor essa transformação moral, considere, na tradição cristã, a passagem do Antigo para o Novo Testamento. A lei bíblica de talião (olho por olho, dente por dente) é exemplar de uma sociedade tradicional: a autoridade de um texto codifica a retaliação como punição adequada. Do talião passamos à recomendação de Cristo: "Quem estiver sem pecado jogue a primeira pedra". Agora devemos achar em nós mesmos a autoridade moral para julgar.
Às vezes, para evitar essa responsabilidade impossível, preferimos pensar que todos os criminosos sejam vítimas das circunstâncias ou de seus genes -portanto irresponsáveis. Convencidos de carregar em nós mesmos os germes de qualquer depravação, não ousamos mais punir. Caímos numa abstinência moral.
Uma versão laica (e psicanalítica) da recomendação do Evangelho diria assim: só podemos punir de maneira radical se, punindo, não estivermos reprimindo nos outros algo que queremos de fato reprimir em nós. Explico.
Freud descobriu que, cada vez que somos levados a desistir de alguma satisfação, a raiva de ter que renunciar se transforma em vontade de policiar e de reprimir os outros. A obediência às regras da comunidade nos pesa: consolamo-nos e vingamo-nos punindo os infratores. Ou seja, quanto mais somos reprimidos, tanto mais nos tornamos repressores. Por exemplo, já queimamos ou degredamos homossexuais e sodomitas como medida de proteção contra nossos próprios desejos homoeróticos, que julgávamos perigosos para a constituição de "saudáveis" comunidades cristãs.
Em suma, reprimimos em nós desejos e fantasias cuja atuação nos parece ameaçar o convívio social. Logo, frustrados, zelamos pela prisão daqueles que não se impõem as mesmas renúncias. Até aqui, tudo bem: reprimir é mesmo parecido com prender -a vida social pede que confinemos desejos e pessoas.
Mas a coisa muda quando a pena é radical, pois há o risco de que a morte do culpado sirva para nos dar a ilusão de liquidar, com ele, o que há de pior em nós. Nesse caso, a execução do condenado é usada para limpar nossa alma. É como se, por exemplo, querendo coibir suas vontades masturbatórias, em vez de enclausurar seus pensamentos impuros, um sujeito se automutilasse.
Assim, no século 19, houve médicos que, para reprimir (em sua cabeça, naturalmente) o escândalo de que houvesse um desejo sexual feminino, passaram a cauterizar o clitóris das meninas com ferro incandescente.
Nas cadeias brasileiras, os estupradores são executados pelos outros presos.
Por mais que essa regra seja explicada pela necessidade de proteger as mulheres dos presos que ficaram sozinhas "lá fora", é difícil não suspeitar que, nessa prática, os presos queiram sobretudo liquidar seu próprio desejo de estuprar (ou de serem estuprados) na cadeia. Em geral, a justiça sumária é isso: uma pressa em suprimir desejos inconfessáveis de quem faz justiça.
A resposta à leitora, então, é que, como psicanalista, apenas gostaria que a morte dos culpados não servisse para exorcizar nossas piores fantasias -isso sobretudo porque o exorcismo seria ilusório.
Contudo é possível que haja crimes hediondos nos quais não reconhecemos nada de nossos desejos reprimidos. Quando esse fosse o caso, por que a pena não seria a morte? Pois é, o caminho está cheio de pedras, quem achar isso mesmo que se sirva...
quinta-feira, 10 de maio de 2001
O crime de Santa Teresa e o "custo modernidade"
No Rio de Janeiro, nesses dias, é difícil conversar com amigos ou com desconhecidos sem que seja evocado dolorosamente o crime que ocorreu em Santa Teresa no 26 de abril. A cidade está consternada com o assassinato de Márcia Maria Coelho Lira, torturada e estuprada ao lado da filha de 13 anos (esta esfaqueada), enquanto o ex-marido e o filho de 15 escutavam tudo amarrados no quarto ao lado.
Dos responsáveis, somente Alan Marques da Costa, 18 anos, está preso. Marcelo Melo Gonçalves dos Santos morreu na polícia, "suicidado". Foi difícil encontrar coveiros que aceitassem sepultá-lo. Um terceiro permanece foragido.
Com o passar dos dias, a indignação e o nojo parecem confluir para uma depressão generalizada. O crime demonstraria, num horror conclusivo, a falência da sociedade brasileira. Aliás, que sociedade é essa -argumenta-se-, em que os diferentes só se encontram num ódio extremo?
Ora, não penso que o crime de Santa Teresa expresse a falência do convívio social brasileiro. Sou mais pessimista: acho que ele é uma expressão terrificante e exemplar de propriedades que são inerentes a toda a modernidade ocidental e que prometem formas inéditas de violência, sobretudo adolescente -no Brasil ou alhures. Em suma, o crime de Santa Teresa não é um "custo Brasil", mas um "custo modernidade". Por quê?
Idealizamos a rebeldia como a maneira certa de o indivíduo afirmar-se diante de qualquer autoridade. Para que a autoridade seja automaticamente passível de crítica radical, decretamos que ela é, por definição, sustentada em última instância pelo exercício da força. Em outras palavras, aos nossos olhos, quem está acima de nós se mantém sempre por seu braço armado ou musculoso. Por consequência, a violência aparece como nossa resposta mais autêntica: o gesto que manifesta e preserva nossa autonomia.
A idealização da rebeldia violenta tem efeitos preciosos. Ela faz, por exemplo, que a revolução seja para nós um direito fundamental. Mas essa mesma idealização torna impossíveis, em nossa cultura, as tarefas de educar e de ser pai, de ser filho ou de ser filha, pois, se a rebeldia violenta é a melhor maneira de afirmar nossa liberdade diante de qualquer autoridade, é inevitável um estado de guerra entre gerações.
O crime de Santa Teresa foi decidido e concebido por Alan, o pedreiro de 18 anos que havia meses trabalhava na reforma da casa de Márcia, uma residência simples. Márcia confiava em Alan. Segundo os planos, ele continuaria trabalhando na casa (quase "em casa") por bastante tempo ainda. Além de pagar um salário correto, Márcia oferecia presentes. Sua cordialidade não devia ser condescendente, mas manifestar uma real simpatia pelo rapaz. Talvez não seja errado dizer que, de uma certa forma, a família "adotara" o jovem.
O que queria então Alan no 26 de abril? Dinheiro e objetos ele sabia que havia poucos. A resposta talvez esteja em suas palavras: chegou esbravejando que ele pertencia ao Comando Vermelho e que já matara não sei quantos. Eram mentiras, que evocam, para qualquer terapeuta, os numerosos adolescentes "confessando" que se drogam muito mais do que de fato fazem ou, por exemplo, que já estiveram presos, quando, na verdade, eles têm um currículo de bons moços.
Se muitos adolescentes contam vantagem desse jeito estranho, é porque constatam que a violência é o caminho do reconhecimento. Fácil entender como: respeitar a lei é ser conforme -o que é péssimo para uma cultura que promove a singularidade. Ser do mal é a melhor maneira de se afirmar como uma exceção -um verdadeiro indivíduo.
Provavelmente Márcia, com sua compreensão ou mesmo seu afeto, alimentava em Alan a vontade de desastre. Aceitar o cuidado de um adulto implica o risco de perder a autonomia que a cultura preza. É um pensamento frequente: "Eles me amam como um bom moço? Agora lhes mostrarei quem eu sou! Bem diferente daquele que eles gostam que eu seja". Alguns só sonham com isso, uns ameaçam ou brincam de transgressão, outros, como Alan, aproveitam para soltar sua abjeção.
Aposto que Alan adorava se sentir aceito, incluído, graças às gentilezas de Márcia. Mas por isso mesmo devia querer demonstrar que ele não era nenhum vassalo. Conseguiu isso, sendo, literalmente, um terror. O estupro serviu para negar o lugar especial -quase materno- que Márcia devia ocupar para ele. Maneira de dizer: "Ninguém me nina, só conheço corpos quaisquer".
Agora, se você achar que nossa cultura não idealiza rebeldia e violência a ponto de tornar o horror de Santa Teresa exemplarmente moderno, assista a "Laranja Mecânica", de Kubrick. Espontaneamente, o espectador é levado a considerar o humilhante condicionamento imposto ao jovem delinquente do filme como uma metáfora apropriada de qualquer educação. De repente, a violência monstruosa da gangue se afirma como símbolo positivo de liberdade.
Cuidado: Kubrick, no caso, não inventou os ideais de nossa cultura. Apenas revelou.
Dos responsáveis, somente Alan Marques da Costa, 18 anos, está preso. Marcelo Melo Gonçalves dos Santos morreu na polícia, "suicidado". Foi difícil encontrar coveiros que aceitassem sepultá-lo. Um terceiro permanece foragido.
Com o passar dos dias, a indignação e o nojo parecem confluir para uma depressão generalizada. O crime demonstraria, num horror conclusivo, a falência da sociedade brasileira. Aliás, que sociedade é essa -argumenta-se-, em que os diferentes só se encontram num ódio extremo?
Ora, não penso que o crime de Santa Teresa expresse a falência do convívio social brasileiro. Sou mais pessimista: acho que ele é uma expressão terrificante e exemplar de propriedades que são inerentes a toda a modernidade ocidental e que prometem formas inéditas de violência, sobretudo adolescente -no Brasil ou alhures. Em suma, o crime de Santa Teresa não é um "custo Brasil", mas um "custo modernidade". Por quê?
Idealizamos a rebeldia como a maneira certa de o indivíduo afirmar-se diante de qualquer autoridade. Para que a autoridade seja automaticamente passível de crítica radical, decretamos que ela é, por definição, sustentada em última instância pelo exercício da força. Em outras palavras, aos nossos olhos, quem está acima de nós se mantém sempre por seu braço armado ou musculoso. Por consequência, a violência aparece como nossa resposta mais autêntica: o gesto que manifesta e preserva nossa autonomia.
A idealização da rebeldia violenta tem efeitos preciosos. Ela faz, por exemplo, que a revolução seja para nós um direito fundamental. Mas essa mesma idealização torna impossíveis, em nossa cultura, as tarefas de educar e de ser pai, de ser filho ou de ser filha, pois, se a rebeldia violenta é a melhor maneira de afirmar nossa liberdade diante de qualquer autoridade, é inevitável um estado de guerra entre gerações.
O crime de Santa Teresa foi decidido e concebido por Alan, o pedreiro de 18 anos que havia meses trabalhava na reforma da casa de Márcia, uma residência simples. Márcia confiava em Alan. Segundo os planos, ele continuaria trabalhando na casa (quase "em casa") por bastante tempo ainda. Além de pagar um salário correto, Márcia oferecia presentes. Sua cordialidade não devia ser condescendente, mas manifestar uma real simpatia pelo rapaz. Talvez não seja errado dizer que, de uma certa forma, a família "adotara" o jovem.
O que queria então Alan no 26 de abril? Dinheiro e objetos ele sabia que havia poucos. A resposta talvez esteja em suas palavras: chegou esbravejando que ele pertencia ao Comando Vermelho e que já matara não sei quantos. Eram mentiras, que evocam, para qualquer terapeuta, os numerosos adolescentes "confessando" que se drogam muito mais do que de fato fazem ou, por exemplo, que já estiveram presos, quando, na verdade, eles têm um currículo de bons moços.
Se muitos adolescentes contam vantagem desse jeito estranho, é porque constatam que a violência é o caminho do reconhecimento. Fácil entender como: respeitar a lei é ser conforme -o que é péssimo para uma cultura que promove a singularidade. Ser do mal é a melhor maneira de se afirmar como uma exceção -um verdadeiro indivíduo.
Provavelmente Márcia, com sua compreensão ou mesmo seu afeto, alimentava em Alan a vontade de desastre. Aceitar o cuidado de um adulto implica o risco de perder a autonomia que a cultura preza. É um pensamento frequente: "Eles me amam como um bom moço? Agora lhes mostrarei quem eu sou! Bem diferente daquele que eles gostam que eu seja". Alguns só sonham com isso, uns ameaçam ou brincam de transgressão, outros, como Alan, aproveitam para soltar sua abjeção.
Aposto que Alan adorava se sentir aceito, incluído, graças às gentilezas de Márcia. Mas por isso mesmo devia querer demonstrar que ele não era nenhum vassalo. Conseguiu isso, sendo, literalmente, um terror. O estupro serviu para negar o lugar especial -quase materno- que Márcia devia ocupar para ele. Maneira de dizer: "Ninguém me nina, só conheço corpos quaisquer".
Agora, se você achar que nossa cultura não idealiza rebeldia e violência a ponto de tornar o horror de Santa Teresa exemplarmente moderno, assista a "Laranja Mecânica", de Kubrick. Espontaneamente, o espectador é levado a considerar o humilhante condicionamento imposto ao jovem delinquente do filme como uma metáfora apropriada de qualquer educação. De repente, a violência monstruosa da gangue se afirma como símbolo positivo de liberdade.
Cuidado: Kubrick, no caso, não inventou os ideais de nossa cultura. Apenas revelou.
quinta-feira, 3 de maio de 2001
O futuro encolheu
O que nos reserva o futuro? Será que a Argentina conseguirá se recuperar? Greenspan vai baixar as taxas de juros em um quarto ou em meio ponto? ACM, Jader Barbalho e José Roberto Arruda serão cassados? E quanto vai crescer o Brasil em 2001? Como será a balança comercial no fim do ano? E o dólar?
Será que nossos filhos entrarão na faculdade? Arrumarão um bom emprego? Encontrarão amigos e companheiros legais? E nós, com quem e onde passaremos as férias de julho?
Fecho os olhos e tento me lembrar. Posso estar enganado, mas me parece que o futuro está ficando mais curto e, por consequência, mais prosaico.
Há apenas duas ou três décadas, o futuro nos ameaçava de extinção ou então enchia nossos peitos de entusiasmos reformadores. Ele era extenso, prolongado: nós nos preocupávamos com catástrofes ou transformações ambiciosas, radicais. Algo mudou.
Justamente, George Steiner acaba de publicar "Grammars of Creation" (Gramáticas da Criação), livro no qual mostra que, ao longo do século 20, a sensibilidade moderna tornou-se vespertina, crepuscular. Vivemos como se fosse um fim de tarde: antevemos a chegada próxima da noite e pensamos sobretudo no futuro imediato, como se faltasse tempo. Com isso, fica complicado criar ou inventar -na arte como na vida-, pois é difícil acreditar em começos radicais e ter a coragem transformadora quando o pôr-do-sol alonga as sombras. Em suma, o futuro que orienta nossas vidas encolheu.
Há, para esse fenômeno, uma explicação feita: o fim dos grandes sonhos progressistas. Sonhávamos com o sol do socialismo, deu chuva. Nós nos decepcionamos e agora esperamos apenas miudagens: um aumento de salário, uma velhice legal.
Steiner propõe outra explicação. O futuro -o próprio tempo gramatical- teria chegado tarde à fala humana, inventado como consolação diante da intolerável perspectiva da morte. Somos mortais, mas ajuda pensar que sobreviveremos, quer seja num além divino, quer seja na permanência de nossos projetos. Ora, Steiner acha que os horrores do século 20, além de questionarem a racionalidade de nossas esperanças, nos familiarizaram demais com a morte.
À força de extermínios, os humanos teriam aprendido a morrer ou, no mínimo, a conviver com a mortalidade. Em suma, se a morte nos assusta menos por ser uma presença familiar, torna-se supérfluo o futuro -que fora inventado para compensar o horror da morte.
Seja qual for a explicação, no século que acaba, nossa experiência do futuro mudou. De que jeito?
Acordando de manhã, você volta para o presente e para futuros diferentes. O presente é o reencontro com o parceiro ou a parceira depois da solidão onírica da noite. Ou então o frescor do linho do travesseiro no rosto. Menos agradável, ele pode ser um gosto de ressaca e a volta de dores do corpo esquecidas no sono. De qualquer forma, são momentos breves, quase roubados.
Nós, modernos, acordando, voltamos sobretudo para o futuro. Pois nos definimos pela capacidade de mudança -não pelo que somos, mas pelo que poderíamos vir a ser: projetos e potencialidades. O tempo de nossa vida é o futuro. Em nossos despertares cotidianos, portanto, podemos ter uma experiência fugaz e minoritária do presente, mas é a voz do futuro que nos acorda e nos força a sair da cama.
A questão é: qual futuro? Ele pode ser de longo prazo: desde o apelo do dever de produzir um mundo mais justo até o medo das águas que subirão por causa do efeito estufa. Ou então ele pode ser imediato: as tarefas do dia que começa, as necessidades do fim do mês, a perspectiva de um encontro poucas horas mais tarde.
Do século 17 até o começo do século 20, o tempo dominante na experiência de nossa cultura parece ter sido um futuro grandioso -projetos coletivos a longo prazo. Hoje prevalece o futuro dos afazeres imediatos. Nada de utopia, somente a agenda do dia.
Trata-se de uma nova experiência do tempo: uma maneira original de ser e de criar. Como Steiner se apressa a declarar, não há por que sermos nostálgicos dos futuros que já foram. Afinal, aqueles futuros tornaram-se frequentemente cúmplices da barbárie do século. Por que será, então, que acho o futuro encolhido de hoje um pouco inquietante?
É que o futuro não foi inventado, como sugere Steiner, só para espantar a morte. O futuro nos serve também para impor disciplina ao presente. Ele é nosso árbitro moral. Esperamos dele que avalie nossos atos.
Por exemplo, somos justos (ou tentamos ser) porque seremos recompensados ou punidos no futuro (pelo juízo divino ou pelo julgamento da história). Outro exemplo, mais prosaico: paramos de fumar, fazemos exercício e adotamos regimes porque seremos julgados por nossa saúde futura.
Em suma, a qualidade de nossos atos de hoje depende do futuro com o qual sonhamos. Nossa conduta tenta agradar ao tribunal que nos espera, seja ele o vale de Josafá ou nosso próximo exame de colesterol. Tanto faz. Mas receio que futuros muito encolhidos comandem vidas francamente mesquinhas.
Assinar:
Postagens (Atom)