quinta-feira, 3 de maio de 2001
O futuro encolheu
O que nos reserva o futuro? Será que a Argentina conseguirá se recuperar? Greenspan vai baixar as taxas de juros em um quarto ou em meio ponto? ACM, Jader Barbalho e José Roberto Arruda serão cassados? E quanto vai crescer o Brasil em 2001? Como será a balança comercial no fim do ano? E o dólar?
Será que nossos filhos entrarão na faculdade? Arrumarão um bom emprego? Encontrarão amigos e companheiros legais? E nós, com quem e onde passaremos as férias de julho?
Fecho os olhos e tento me lembrar. Posso estar enganado, mas me parece que o futuro está ficando mais curto e, por consequência, mais prosaico.
Há apenas duas ou três décadas, o futuro nos ameaçava de extinção ou então enchia nossos peitos de entusiasmos reformadores. Ele era extenso, prolongado: nós nos preocupávamos com catástrofes ou transformações ambiciosas, radicais. Algo mudou.
Justamente, George Steiner acaba de publicar "Grammars of Creation" (Gramáticas da Criação), livro no qual mostra que, ao longo do século 20, a sensibilidade moderna tornou-se vespertina, crepuscular. Vivemos como se fosse um fim de tarde: antevemos a chegada próxima da noite e pensamos sobretudo no futuro imediato, como se faltasse tempo. Com isso, fica complicado criar ou inventar -na arte como na vida-, pois é difícil acreditar em começos radicais e ter a coragem transformadora quando o pôr-do-sol alonga as sombras. Em suma, o futuro que orienta nossas vidas encolheu.
Há, para esse fenômeno, uma explicação feita: o fim dos grandes sonhos progressistas. Sonhávamos com o sol do socialismo, deu chuva. Nós nos decepcionamos e agora esperamos apenas miudagens: um aumento de salário, uma velhice legal.
Steiner propõe outra explicação. O futuro -o próprio tempo gramatical- teria chegado tarde à fala humana, inventado como consolação diante da intolerável perspectiva da morte. Somos mortais, mas ajuda pensar que sobreviveremos, quer seja num além divino, quer seja na permanência de nossos projetos. Ora, Steiner acha que os horrores do século 20, além de questionarem a racionalidade de nossas esperanças, nos familiarizaram demais com a morte.
À força de extermínios, os humanos teriam aprendido a morrer ou, no mínimo, a conviver com a mortalidade. Em suma, se a morte nos assusta menos por ser uma presença familiar, torna-se supérfluo o futuro -que fora inventado para compensar o horror da morte.
Seja qual for a explicação, no século que acaba, nossa experiência do futuro mudou. De que jeito?
Acordando de manhã, você volta para o presente e para futuros diferentes. O presente é o reencontro com o parceiro ou a parceira depois da solidão onírica da noite. Ou então o frescor do linho do travesseiro no rosto. Menos agradável, ele pode ser um gosto de ressaca e a volta de dores do corpo esquecidas no sono. De qualquer forma, são momentos breves, quase roubados.
Nós, modernos, acordando, voltamos sobretudo para o futuro. Pois nos definimos pela capacidade de mudança -não pelo que somos, mas pelo que poderíamos vir a ser: projetos e potencialidades. O tempo de nossa vida é o futuro. Em nossos despertares cotidianos, portanto, podemos ter uma experiência fugaz e minoritária do presente, mas é a voz do futuro que nos acorda e nos força a sair da cama.
A questão é: qual futuro? Ele pode ser de longo prazo: desde o apelo do dever de produzir um mundo mais justo até o medo das águas que subirão por causa do efeito estufa. Ou então ele pode ser imediato: as tarefas do dia que começa, as necessidades do fim do mês, a perspectiva de um encontro poucas horas mais tarde.
Do século 17 até o começo do século 20, o tempo dominante na experiência de nossa cultura parece ter sido um futuro grandioso -projetos coletivos a longo prazo. Hoje prevalece o futuro dos afazeres imediatos. Nada de utopia, somente a agenda do dia.
Trata-se de uma nova experiência do tempo: uma maneira original de ser e de criar. Como Steiner se apressa a declarar, não há por que sermos nostálgicos dos futuros que já foram. Afinal, aqueles futuros tornaram-se frequentemente cúmplices da barbárie do século. Por que será, então, que acho o futuro encolhido de hoje um pouco inquietante?
É que o futuro não foi inventado, como sugere Steiner, só para espantar a morte. O futuro nos serve também para impor disciplina ao presente. Ele é nosso árbitro moral. Esperamos dele que avalie nossos atos.
Por exemplo, somos justos (ou tentamos ser) porque seremos recompensados ou punidos no futuro (pelo juízo divino ou pelo julgamento da história). Outro exemplo, mais prosaico: paramos de fumar, fazemos exercício e adotamos regimes porque seremos julgados por nossa saúde futura.
Em suma, a qualidade de nossos atos de hoje depende do futuro com o qual sonhamos. Nossa conduta tenta agradar ao tribunal que nos espera, seja ele o vale de Josafá ou nosso próximo exame de colesterol. Tanto faz. Mas receio que futuros muito encolhidos comandem vidas francamente mesquinhas.
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