quinta-feira, 10 de maio de 2001

O crime de Santa Teresa e o "custo modernidade"

No Rio de Janeiro, nesses dias, é difícil conversar com amigos ou com desconhecidos sem que seja evocado dolorosamente o crime que ocorreu em Santa Teresa no 26 de abril. A cidade está consternada com o assassinato de Márcia Maria Coelho Lira, torturada e estuprada ao lado da filha de 13 anos (esta esfaqueada), enquanto o ex-marido e o filho de 15 escutavam tudo amarrados no quarto ao lado.

Dos responsáveis, somente Alan Marques da Costa, 18 anos, está preso. Marcelo Melo Gonçalves dos Santos morreu na polícia, "suicidado". Foi difícil encontrar coveiros que aceitassem sepultá-lo. Um terceiro permanece foragido.

Com o passar dos dias, a indignação e o nojo parecem confluir para uma depressão generalizada. O crime demonstraria, num horror conclusivo, a falência da sociedade brasileira. Aliás, que sociedade é essa -argumenta-se-, em que os diferentes só se encontram num ódio extremo?

Ora, não penso que o crime de Santa Teresa expresse a falência do convívio social brasileiro. Sou mais pessimista: acho que ele é uma expressão terrificante e exemplar de propriedades que são inerentes a toda a modernidade ocidental e que prometem formas inéditas de violência, sobretudo adolescente -no Brasil ou alhures. Em suma, o crime de Santa Teresa não é um "custo Brasil", mas um "custo modernidade". Por quê?

Idealizamos a rebeldia como a maneira certa de o indivíduo afirmar-se diante de qualquer autoridade. Para que a autoridade seja automaticamente passível de crítica radical, decretamos que ela é, por definição, sustentada em última instância pelo exercício da força. Em outras palavras, aos nossos olhos, quem está acima de nós se mantém sempre por seu braço armado ou musculoso. Por consequência, a violência aparece como nossa resposta mais autêntica: o gesto que manifesta e preserva nossa autonomia.

A idealização da rebeldia violenta tem efeitos preciosos. Ela faz, por exemplo, que a revolução seja para nós um direito fundamental. Mas essa mesma idealização torna impossíveis, em nossa cultura, as tarefas de educar e de ser pai, de ser filho ou de ser filha, pois, se a rebeldia violenta é a melhor maneira de afirmar nossa liberdade diante de qualquer autoridade, é inevitável um estado de guerra entre gerações.

O crime de Santa Teresa foi decidido e concebido por Alan, o pedreiro de 18 anos que havia meses trabalhava na reforma da casa de Márcia, uma residência simples. Márcia confiava em Alan. Segundo os planos, ele continuaria trabalhando na casa (quase "em casa") por bastante tempo ainda. Além de pagar um salário correto, Márcia oferecia presentes. Sua cordialidade não devia ser condescendente, mas manifestar uma real simpatia pelo rapaz. Talvez não seja errado dizer que, de uma certa forma, a família "adotara" o jovem.

O que queria então Alan no 26 de abril? Dinheiro e objetos ele sabia que havia poucos. A resposta talvez esteja em suas palavras: chegou esbravejando que ele pertencia ao Comando Vermelho e que já matara não sei quantos. Eram mentiras, que evocam, para qualquer terapeuta, os numerosos adolescentes "confessando" que se drogam muito mais do que de fato fazem ou, por exemplo, que já estiveram presos, quando, na verdade, eles têm um currículo de bons moços.

Se muitos adolescentes contam vantagem desse jeito estranho, é porque constatam que a violência é o caminho do reconhecimento. Fácil entender como: respeitar a lei é ser conforme -o que é péssimo para uma cultura que promove a singularidade. Ser do mal é a melhor maneira de se afirmar como uma exceção -um verdadeiro indivíduo.

Provavelmente Márcia, com sua compreensão ou mesmo seu afeto, alimentava em Alan a vontade de desastre. Aceitar o cuidado de um adulto implica o risco de perder a autonomia que a cultura preza. É um pensamento frequente: "Eles me amam como um bom moço? Agora lhes mostrarei quem eu sou! Bem diferente daquele que eles gostam que eu seja". Alguns só sonham com isso, uns ameaçam ou brincam de transgressão, outros, como Alan, aproveitam para soltar sua abjeção.

Aposto que Alan adorava se sentir aceito, incluído, graças às gentilezas de Márcia. Mas por isso mesmo devia querer demonstrar que ele não era nenhum vassalo. Conseguiu isso, sendo, literalmente, um terror. O estupro serviu para negar o lugar especial -quase materno- que Márcia devia ocupar para ele. Maneira de dizer: "Ninguém me nina, só conheço corpos quaisquer".

Agora, se você achar que nossa cultura não idealiza rebeldia e violência a ponto de tornar o horror de Santa Teresa exemplarmente moderno, assista a "Laranja Mecânica", de Kubrick. Espontaneamente, o espectador é levado a considerar o humilhante condicionamento imposto ao jovem delinquente do filme como uma metáfora apropriada de qualquer educação. De repente, a violência monstruosa da gangue se afirma como símbolo positivo de liberdade.
Cuidado: Kubrick, no caso, não inventou os ideais de nossa cultura. Apenas revelou.

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