quinta-feira, 24 de maio de 2001
A vida é o que interessa, o resto não tem pressa
Durante uma recepção em Nova York, na quinta-feira passada, conversava com alguns executivos da área financeira. Falávamos dos apagões no Brasil e nos EUA quando mais um convidado se agregou ao grupo, anunciando que seu dia fora glorioso. O recém-chegado era advogado e passara a tarde trabalhando na aquisição do grupo financeiro Banamex (o segundo banco mexicano em ordem de grandeza) pelo Citigroup: uma compra de US$ 12,5 bilhões. Ele acrescentou, com orgulho, que muito cedo só sobrarão no mundo quatro ou, no máximo, cinco bancos globais.
Desrespeitei as convenções do bom convívio social e interrompi o relato entusiasmado do jovem advogado para declarar que acho essas fusões péssimas. A idéia de que sobrem só poucos enormes bancos globais me apavora e me indigna.
Expliquei: eu não voto em bancos, não escolho políticas financeiras nem dirigentes administrativos. Meu controle (bem limitado) sobre o mundo passa pelas eleições e pelo pequeno alcance de atividades políticas locais (expresso opiniões, frequento associações da sociedade civil etc.). Ora -acrescentei-, quando as forças que movem as finanças mundiais são colossos mais poderosos do que os governos nacionais, o exercício democrático fica comprometido. Que diferença faria meu voto num mundo onde quatro bancos decidem como, quando e para onde vai o capital? Com minha cédula na mão ou tomando a palavra numa associação de pais e mestres, vou ser feito de palhaço enquanto, em algum escritório de Zurique ou de Nova York, homens em quem nenhum povo votou decidem se e como nossa comunidade receberá crédito, investimentos etc.
Calei-me, enfim, arrependendo-me um pouco de minhas palavras. Pensei: é apenas um jovem advogado que se sente importante. Vai ver que, atrás do entusiasmo infantil, ele esconde um coração generoso. De fato, meu interlocutor não comprou a briga. Ao contrário, como se quisesse se justificar, ele disse: "Você entende, é que há um bom dinheiro para nós" (ou seja, para seu escritório de advocacia). Nenhum cinismo nisso. Ele tentava mesmo ganhar minha simpatia. Mas como?
Contava com minha cumplicidade, apostava que compartilhássemos a convicção (dominante) de que, no fundo, o bem-estar justifica qualquer empreendimento. Por esse caminho, quem sabe eu também mudasse de idéia sobre fusões e aquisições: quatro bancos globais, justamente por serem poucos, podem se entender melhor e garantir estabilidade a nosso mundo. Portanto todos teriam uma vida, se não boa, melhor. Isso não é mais importante que qualquer fala "abstrata" sobre democracia, participação etc.?
O sorriso conciliatório do jovem advogado supunha, com razão, o triunfo de um ideário que, desde o fim do século 18, substituiu as aspirações ideais do Antigo Regime ou do mundo clássico pelos valores burgueses da saúde, do bem-estar, do conforto. Pergunte ao redor de si: qual é o valor supremo? Na esmagadora maioria dos casos, a resposta hodierna será: a vida. Quem ousaria opor-se? A modernidade funda seus valores de bem-estar e de conforto numa evidência apresentada como biológica.
O que o homem quer? Viver, "naturalmente". E, portanto, viver bem, não é? É necessário um sério esforço para se lembrar de que essa opção "pela vida" não é nada natural. Ela serve para impor a vida boa e o conforto como valores supremos, referências e justificações morais. Para um estóico, um cristão dos primeiros séculos e mesmo qualquer sujeito até o século 18, na hierarquia dos valores, a vida viria depois da dignidade, da verdade, da fé, da honra etc. Aliás, a vida passou a encabeçar a lista dos valores logo que surgiram ideais populares de participação política e de justiça social. Por que será?
No café Landolt, em Genebra, perto da faculdade de letras, numa noite de 1969, encontrei um colega estudante. Chamava-se Dettmeyer, era holandês e decididamente impopular por ser o único da turma que se declarava de extrema-direita. Cuidado: Dettmeyer não era autoritário ou nazi-fascista, mas anarquista, niilista e propagandista do "Único", de Max Stirner. Eu, ao contrário, tinha a reputação banal de ser um esquerdista. Dettmeyer sentou-se perto de mim e disse-me solenemente: "Temos em comum o essencial: um sentimento trágico da existência". Desprezei aquela observação e encorajei Dettmeyer a levar seu bigode nietzschiano para outra mesa.
Diante do advogado nova-iorquino, a frase de Dettmeyer, esquecida há 30 anos, voltou e fez sentido. Na verdade, senti nostalgia de Dettmeyer. Por não estar obnubilado pelo aparente sucesso da festa de 68, ele devia perceber melhor do que eu a invasão iminente que nos espreitava, ouvir o rolo compressor da ideologia do bem-estar -sorridente e vitoriosa pela facilidade sedutora de suas receitas: esqueçam suas complicadas esperanças existenciais, políticas, sociais.
A saúde, a forma física, o conforto -em suma, a vida é o que interessa, o resto não tem pressa.
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