domingo, 6 de novembro de 1994

Gaza cai nas malhas da Benetton

O território palestino é o novo cenário do fotógrafo Oliviero Toscani


Levou um certo tempo para acalmar as suspeitas legítimas da jovem mulher da segurança israelense da companhia aérea El Al no aeroporto de Tel Aviv. A história parecia incrível: viera a Israel e a Gaza para ver Oliviero Toscani, art-director da Benetton, que decidira fotografar seu futuro catálogo em Gaza, usando como modelos pessoas escolhidas nas ruas.

Teria sido uma conversa quase divertida, se não fosse a data. Era o 19 de outubro, à noite. Israel chorava as vítimas do atentado terrorista a um ônibus na avenida Dizengoff, em Tel Aviv, em que morreram 23 pessoas.

Enfim, a jovem mulher acreditava na minha versão dos fatos, mas queria saber como eu me situava. Havia em seus olhos uma espécie de dor profunda, um medo de traição. Me devolveu bilhete e passaporte. Agora eu podia falar.

Avancei até o balcão e segui para as formalidades da polícia. Não conseguira lhe dizer quanto eu sentia. E não podia evitar de me desprezar como um amante que covardemente abandonaria sua amada na hora do desespero. Me sentia culpado de ter ficado em Gaza, culpado por deixar Israel em sua dor e luto. Havia, neste sentimento espontâneo e excessivo, uma sinceridade acima de qualquer ideologia. Como se, na hora do perigo, reconhecesse instintivamente os meus. Mais quais meus? Se não sou judeu, porque seriam os meus?

Imagens do horror

Tudo começara um mês antes. Oliviero Toscani anunciou que viajaria a Gaza para fotografar o próximo catálogo Benetton. Usaria o povo da Palestina como modelo. Não queria propor o encanto de falsos sonhos de poder, glória e sex appeal, que a publicidade de moda geralmente promete a seus consumidores. Gaza é o símbolo de um fracasso da razão em conciliar diferenças, mas também, com o progresso da paz, um lugar de esperança. Qual melhor escolha para afirmar e confirmar o Iluminismo de Toscani? Aqui a razão triunfaria.

Naturalmente, era difícil prever que nossos dias em Gaza se situariam exatamente entre o trágico desfecho do sequestro de Nahshon Wachsman e o atentado assassino de Tel Aviv. No almoço do último dia, consternados na frente da televisão, olhávamos desfilar as imagens do horror na avenida Dizengoff. Toscani repetia: "Tudo errado, fazem tudo errado". Preferia pensar o horror como fruto de um simples erro da razão do que admitir que todas as cores talvez não sejam United Colors of Benetton.

A Renault vermelha

Para entrar em Gaza, é preciso trocar de carro. As placas israelenses não se aventuram do outro lado. O "checkpoint" Erez estava fechado quando cheguei, como estaria de novo no momento de nossa saída; fechado, entenda-se, aos habitantes de Gaza que desejam entrar em Israel. O governo israelense reage assim às agressões palestinas. Faz sentido, pois é provável que ativistas do Hamas (grupo radical islâmico) penetrem no país com o fluxo diário de dezenas de milhares de trabalhadores.

Mas a decisão alimenta uma espiral de ódio e ressentimento: quando os homens não podem atravessar a fronteira, a vida econômica de Gaza sofre imediatamente, assim como sofre seu orgulho de independência. Desvela-se a paródia da atual autonomia: a rede elétrica se alimenta em Israel, as telecomunicações dependem de Israel, não há passaporte, nem nacionalidade palestina. Ressurge então o espírito da Intifada, que dá crédito livre ao Hamas e enfraquece as chances de paz, com a autoridade de Fatah (principal facção da OLP - Organização para a Libertação da Palestina).

Esperei o carro previsto perto da entrada lateral do "checkpoint". Os marines israelenses eram cordiais, procuravam lembranças comuns de cidades italianas e ofereciam Heineken gelada. Aceitar era inevitável, assim como bebê-la ostensivamente. "Este bebe cerveja, é dos nossos!" Apesar disto, um palestino tentava chamar minha atenção. Perguntou enfim de onde eu vinha. Itália e Brasil caíram bem, ele tinha um tema na mão: a última Copa, a famosa final. O caporal israelense cortou seco a conversa, apostrofando-o: "Mas você fala bem inglês...". A nova partida ecoou como o começo de um interrogatório ameaçador.

O palestino recuou e os militares contra-atacaram, me perguntando se queria tirar umas boas fotos do "checkpoint". Os poucos palestinos que voltavam para Gaza foram então inspecionados com largos gestos abertos e posados. Parecia que ambos os lados estavam competindo por um gesto de cumplicidade e aprovação. Pareciam perguntar: "Com quem estás?" Não reconhecer os seus é difícil em Gaza.

Alberto, o representante de Benetton em Israel, encostou seu carro ao lado do "checkpoint", para que se pudesse melhor escutar o rádio. Era uma Renault Clio novíssima, vermelha. O brilho do objeto venceu: os soldados se agruparam ao redor do carro, deixaram de encenar para mim o controle de polícia e, para cima da fronteira, todos começaram a falar juntos, de cavalos a vapor, preços e coisas de carro. Era um presságio: como se um futuro de paz não devesse ser esperado de um diálogo entre culturas ou religiões diferentes e inimigas, mas de uma nova religião comum já pronta: a fantasmagoria do consumo.

Carona do consumo Em Gaza, muitos perguntariam: "Abrirá uma loja de Benetton aqui?" Como se só o acesso ao consumo pudesse, para além de qualquer palavra, significar o acesso de Gaza ao convívio das nações. Mas o próprio desejo de modernidade acarreta ódio e desconfiança. Pegar a carona do consumo implicaria aceitar ser, por um longo momento, um povo de segunda linha. É difícil, para quem adquiriu consciência de ser um povo em quase 50 anos de desastre e de luta. A modernidade desejada torna-se sempre persecutória, pois embarcar nela é também necessariamente ser frustrado dos bens que ela promete. O Hamas fatura.

Gaza não é o Irã nem o Iraque. No mínimo, os palestinos, dispersos no exílio, viajaram demais para cultivar uma incontaminada pureza cultural. Dividida entre as aspirações ou a "Realpolitik" de abertura da OLP (o acrônimo da sigla árabe, "Fatah", significa "abertura") e, por outro lado, o espírito do Movimento de Resistência Islâmica, o Hamas (o acrônimo significa "ousadia, agressão, coragem"), Gaza não é uma diferença absoluta.

As pessoas escolhidas como modelos ocasionais pela equipe de Toscani eram convidadas a responder a algumas perguntas. Suas respostas eram extraordinariamente uniformes: "Não gosto de política, a economia está um desastre, mas temos uma sociedade muito boa, a paz é uma grande esperança, aceitamos ser fotografados para mostrar ao mundo que somos pessoas como as outras".

Eu me perguntava o que podia esconder a repetida declaração que "a sociedade é muito boa". Pois, de fato, via um povo dividido entre a necessidade e a vontade de oferecer uma nova imagem de si, pacífica, aberta, seduzida pela modernidade e, por outro lado, a defesa fundamentalista das tradições islâmicas ou o rancor dos excluídos. Mas a fratura é inconfessável.
O Hotel Marna House é um dos raros lugares, com o Beach Club da ONU, onde é possível, em Gaza, beber uma cerveja. Daí o desfile vespertino de homens notáveis. Sentados em mesas diferentes, muitos deixam a mão com o copo descansar distraidamente sob a mesa. Nem a cumplicidade de uma falta comum contra a tradição religiosa lhes permite assumi-la. Fatah e Hamas em cada um.

No pátio do hotel, Toscani, Frédéric Vassor –cameraman da equipe– e eu conversamos com Hassan Dahman, representante da OLP em Paris, temporariamente em Gaza. "Os estrangeiros", ele diz, "são bem vindos a Gaza. Queremos dar uma imagem do povo palestino diferente daquela da Intifada, das pedras e das armas". Vassor não perde a ocasião: "Vocês procuram uma nova imagem?". Reação imediata: "Não, não, a imagem é a mesma, o povo palestino não mudará, é o mesmo. É a propaganda que criou esta imagem de armas e pedras".

Seduzir é a palavra de ordem. Um pouco mais tarde falamos da reação israelense ao sequestro de Nahshon Wachsman. Dahman comenta: "Os israelenses montaram esta história de refém em Gaza. E com estas prisões, eles nos atrapalharam". Depois da morte de Wachsman, Fatah prendeu 300 militantes de Hamas. Dahman parece admitir que foi para satisfazer o governo israelense e mesmo pensar que Israel fomenta assim a divisão em Gaza.
Corão e metralhadora

De fato, à tarde, e ainda na manhã do dia seguinte, veremos desfilar manifestações coesas para forçar Arafat a soltar os militantes do Hamas. É péssimo ibope para a Fatah, certo. Mas o inimigo é mesmo Israel? Cansado de escutar bobagens, largo: "Os israelenses tinham toda razão de pensar que o refém estivesse em Gaza, dado que o Hamas tornou público em Gaza a fita na qual Wachsman pedia que as reivindicações dos sequestradores fossem satisfeitas. Parece-me que o Hamas fez tudo o que podia para incomodar a Fatah e o governo de Arafat". Dahman pulou na sua cadeira: "Não! Não! Eles não quiseram nos incomodar". E de repente: "Você não está gravando tudo isso, está?". Desliguei o meu gravador.

Toscani, provavelmente para se convencer, declarava: "Aqui haverá um futuro, será mais rápido do que parece". Mas o impasse é violento. Quanto mais Arafat negocia a paz para construir uma nação, tanto mais Hamas se afirma como única bandeira do orgulho nacional. O Hamas, aposto, não se apresentará nas futuras eleições. E sobre os muros de Gaza, a imagem do Corão aberto se espelha no desenho de uma metralhadora Kalachnikov.

Na tarde de terça, permaneço no hotel. Converso com um amigo de nosso intérprete. Impossível falar sobre o que nos separa; só quer ouvir o que nos aproxima. Explico-lhe as razões francesas para não aceitar que nas escolas públicas, na França, as jovens islâmicas portem o véu. Ele defende uma tolerância aparentemente mais ocidental do que a minha. Tento lhe responder que a tolerância não é uma escancarada indiferença, mas a defesa positiva de um valor. Portanto, ela pode implicar também uma oposição declarada contra qualquer cultura que aproveite dela sem praticá-la.

Ele me responde que a desconsideração dos infiéis, assim como o ódio indiscriminado que podia permitir, são, para eles todos, coisas de museu. Na manhã seguinte, após o atentado de Tel Aviv, nos encontramos na frente da televisão. Nós nos fixamos longamente em silêncio. Continuo sem saber ler seu olhar: medo da condenação injusta por um crime que ele renega, revolta pela desconfiança que talvez já leia em meu olhar, ou talvez também orgulho e desafio.
Pulôver e cafetã

No último dia, a equipe visita a casa dos órfãos que Arafat adotou. São mais de 50 crianças e adolescentes que perderam os pais quer seja no massacre de Sabrá e Chatilá, quer seja na batalha do Líbano. Pela primeira e única vez, Lloyd, o maquiador, será autorizado a colocar, não digo uma mão, mas pelo menos um pincel no nariz de uma adolescente. Nota discordante, na frente da casa: soldados palestinos vigiam e afastam, peremptoriamente, qualquer curioso. A abertura é envergonhada.

Mas, nesse fim de tarde, antes da saída, com a última luz do sol, há na equipe um sentimento geral de missão cumprida. O humanitarismo está satisfeito. Benetton deixa com os órfãos as peças-piloto trazidas assim como uma doação em dinheiro. Esquecemos as raras recusas e preferimos lembrar a disponibilidade até de idosos tradicionalmente vestidos que aceitaram colocar um pulôver por baixo do cafetã para mostrar ao mundo que a Palestina é parte dele.

Gaza parece perto de nós. Era o que Toscani queria. De repente, ele pergunta a duas adolescentes gêmeas onde elas nasceram. "Na Romênia", respondem. Volto para uma realidade feita, no passado, de campos de treino para militantes do terror, atrás da Cortina de Ferro; e ainda feita, no presente, de campos na Síria, talvez na Líbia, no Iraque, no Irã. O Hamas nas ruas e o Hamas em cada um mantém este povo refém de si mesmo.

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