domingo, 28 de agosto de 1994

Servidão ao amor desafia espírito objetivo

O amor é uma peça essencial de nossa cultura. Sua fortuna é indissociavelmente ligada aos progressos do individualismo. E de fato ele participa ativamente na luta para o triunfo do indivíduo: atropela a sociedade tradicional, acaba com barreiras sociais entre trovadores e damas, despreza antipatias bem estabelecidas entre Montecchi e Capuleti. Raças, culturas, religiões, preconceitos: as formas coaguladas do espírito objetivo lhe resistem dificilmente.

"Eu (te) amo" ou "nós (nos) amamos" são referências últimas e soberanas, indiscutíveis, por serem, linguisticamente, performativas. Independentemente de atos e obras, estas expressões só se referem a si mesmas. A prova que "nós (nos) amamos" é nossa declaração, portanto irrefutável. Atrás dela se supõe uma efusão tão íntima que sua sinceridade só pode ser decidida por quem declara.

Daí o sucesso moderno do amor como motor do agir humano: ele é uma razão perfeitamente subjetiva. O que fazemos por amor, fazemos por nós mesmos. Amando, não obedecemos a ninguém, se não à paixão que é nossa.

Assim nos casamos ou vivemos juntos porque nos amamos. Qualquer escolha fundada em um outro critério é –em nosso moderno ver– estigmatizada como hipócrita ou interesseira. Assim também cuidamos de nossas crianças porque as amamos. Qualquer outra razão, mais simbólica (assegurar a descendência, por exemplo) ou mais realística (criar braços para trabalhar a roça) é suspeita. Pois tais razões testemunham uma servidão a princípios externos que ofendem nessa sede de autonomia.

Se o amor é uma realização do indivíduo, se seu triunfo social é próprio ao individualismo, além de um performativo, talvez ele seja mesmo um verbo intransitivo: podemos nos perguntar se seu objeto é bem o outro amado e não o próprio sujeito que ama e, assim fazendo, goza sobretudo de sua autonomia. Em época de aniversário de Woodstock, as tiras de Angeli, na Ilustrada, sobre os casais apaixonados são apropriadas. A nua marginalidade social da exaltação amorosa dos casais derrama um narcisismo gosmento que é provavelmente a verdade última de "Love is all you need".

Justamente, o caderno Mais! de 24/7/04, consagrado ao fim da infância em nossa época, em seu conjunto, chamava a atenção sobre a índole narcísica de nosso amor pelas crianças. Amamos as crianças como imagens de nossa própria felicidade. Acabamos assim querendo-as tão parecidas conosco, em sua felicidade forçada, que as privamos de infância, transformando-as em caricaturas de nossos devaneios.

Ora, Marcelo Coelho, em sua coluna na Ilustrada de 3/8/94, observava que, nesta transformação das crianças em anões sem fé nem lei, alguma responsabilidade devia ser atribuída às famílias e à "crise de autoridade". "Os pais –ele escrevia– vivem na ideologia anti-repressiva, de estímulo à espontaneidade e à liberdade que talvez não tenham tido..." Ele tem razão. Mas a responsabilidade pela dita crise de autoridade está também com o amor.

Já em 1977, Christopher Lasch ("Refúgio num Mundo sem Coração", Paz e Terra), analisando a família dos anos 60 e 70 nos EUA, notava que esta tendia a limitar sua vocação à tarefa amorosa, delegando cada vez mais suas tarefas educativas. A consequência que mais o assustava era a massificação: pois, se o quadro familiar e privado é só efusão amorosa, entende-se que uma mesma esfera pública –a da opinião– educaria a todos e acabaria uniformizando a todos. Assim, o mundo moderno, por valorizar o indivíduo e sua liberdade, necessariamente massificaria seus filhos. O triunfo do amor nos laços de família (entre pais e filhos) realizaria a sociedade de massa.
Mas, como Marcelo Coelho também observava com razão, as coisas se complicam. Os laços construídos ao redor do amor são dos mais precários; os casamentos por amor duram menos, ao que parece, do que os contratos do passado. E, quando duram, podem doer mais (tipo: nossa vida é um inferno, a gente não se entende, mas ficamos juntos porque nos amamos). Do mesmo jeito, os deveres tradicionais para com as crianças eram de mais fácil observância do que o imperativo de amá-las. Este, por exemplo, joga na angústia e na culpa os pais que achem seu amor insuficiente, o que é frequente, se o amor é aqui sobretudo a necessidade narcísica de ver suas crianças felizes. Qualquer obstáculo real ou imaginário oposto a este ideal de felicidade (por exemplo, uma mínima intervenção educativa) acabará impondo aos pais uma culpa de algoz arrependido. E por aí vai.

Abrem-se dois caminhos para o reinado do amor (narcísico) como afeto propriamente individualista.

O primeiro pode inspirar um certo apocaliptismo (com despachos para evocar antigos valores perdidos). Nele, depois de ter inventado a infância como época feliz e distinta da vida adulta, depois de ter transformado as crianças em caricaturas da felicidade adulta para melhor se espelhar nelas, os sujeitos da cultura ocidental conseguiriam inventar um narcisismo mais direto, não mediado pelos seus rebentos. Eles fariam assim a economia da tarefa reprodutora. Criariam uma sociedade de adultos na idade certa para gozar de sua conformidade com as imagens da felicidade de massa, afastando os velhos e resolvendo o problema demográfico graças a uma porosidade controlada das fronteiras. A mais longo prazo, também seria possível fazer a economia dos empecilhos que os parceiros colocam à relação amorosa. A realidade virtual poderia permitir, por exemplo, que cada um se juntasse com a imagem projetada de sua própria perfeição.

No segundo caminho, nossa cultura inventaria novas formas de amar crianças e parceiros. Para saber quais e como, só um conselho: precisa ficar de olho na literatura e no cinema. Pois, em uma cultura individualista, não a tradição, nem a história, mas a ficção –já dizia Mathew Arnold– é o grande repertório ético onde se inventam, se canonizam e se propõem condutas. Por isso, como Jurandir Freire Costa o mostrava nesta coluna (31/7/94), "Quatro Casamentos e um Funeral", de Mike Newell, por exemplo, deixa esperar convívios amorosos, se não mais felizes, ao menos mais leves: uma espécie de savoir-faire com o narcisismo.

Um comentário:

  1. Olá Contardo.
    Gostaria de trocar e-mails com você sobre alguns fatos ocorrido no meu relacionamento, duvídas referente a valores e sentimentos.
    Pode me ajudar?

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