Um grande sonho de nossa cultura nunca esteve tão prestes a se realizar: que, além e apesar de suas cores, crenças, culturas e tradições diferentes, os homens, enquanto indivíduos, se reconheçam enfim todos como membros de uma humanidade comum.
Mas o que há de comum? O que sobra, além do que parece nos separar em grupos distintos ou opostos? A premência da questão é grande, pois, libertando-nos do respeito aos valores ancestrais particulares, dinamitando as hierarquias estabelecidas e exaltando o indivíduo, nossa cultura complicou bastante a vida social. Como esta não pode mais se fundar sobre tradições de grupo, é preciso inventar um consenso idealmente universal. Mas qual?
Esta questão antiga recebeu duas respostas clássicas e não incompatíveis. A cristã: somos todos filhos de um só Deus; e a do espírito científico moderno: somos todos dotados de uma mesma razão.
Não parece que a resposta cristã tenha dado certo. A Bíblia conquistou novas terras para a cultura ocidental, mas não fundou consenso nenhum. Ao contrário, o espírito da Reforma triunfou, como era inevitável: uma religião onde Deus se endereça ao foro íntimo de cada um e não a um povo no seu conjunto só pode deixar cada indivíduo livre para interpretar a palavra de Deus, e enfim para imaginar o Deus que melhor lhe convém. Ótimo, mas sem muita chance de presidir um consenso social. Só nas culturas que resistiram ao expansionismo da nossa, por exemplo no mundo islâmico, a religião consegue ser o cimento da vida social.
O espírito moderno achou outra resposta à questão do que seria comum à humanidade inteira. Acreditou-se que a razão, como faculdade humana igual para todos, pudesse assumir a tarefa de organizar nossas condutas e os consensos necessários ao convívio. Não deu muito certo. Os doutores Kant, Habermas e Apel ainda estão sendo esperados na Bósnia e em alguns outros lugares. Também houve quem pensasse que a razão universal pudesse dar lugar a uma utopia coletiva discernível como alvo de nossa história. Como se sabe, não deu muito certo.
Um olhar simplesmente constatativo poderia nos ajudar a descobrir qual é hoje a nova universalidade que nossa cultura inventou: a única forma de controle social, o único efetivo agente regulador das condutas sociais que possa hoje ambicionar a palma da universalidade é o mercado, ou –melhor dito– o consumo.
É progressista e banal acusar desta circunstância os banqueiros de Londres, para falar como Mário de Andrade. Mas o consumismo não é o complô de sinistros especuladores. Antes de mais nada, ele é um grande movimento cultural. Talvez o maior na história de nossa cultura desde o cristianismo.
Graças a ele, mesmo vindos de horizontes disparatados, encontramos de novo uma convergência e portanto uma possibilidade de consenso social. Nem tanto ao redor dos objetos que o mercado propõe, ou do dinheiro que é seu equivalente universal, mas ao redor das imagens que temos em comum. São imagens da felicidade que o mercado nos promete ou, melhor, com as quais ele nos garante que acabaremos coincidindo se tivermos acesso aos bens que ele dispensa.
Se, como Toscani lembra, o gasto publicitário é maior em nossa cultura do que o gasto com a educação pública, então, antes de se indignar, é preciso reconhecer que a publicidade é hoje mais formadora de nossa subjetividade do que o ensino escolar. Ela é a maior expressão de nossa época, quantitativamente pelos investimentos que mobiliza, e qualitativamente por ser seu protótipo cultural, pois o consenso da razão contemporânea parece ser feito de imagens de sonho que nos convidam: sejam como nós. Imagens publicitárias.
É a dita cultura do narcisismo, onde o fundamento do laço social são estereótipos que todos queremos espelhar. Mandem para Bósnia: Valentino, Claudia Schiffer, McDonald's e, porque não, Benetton –quem sabe acalmem os espíritos. Os fundamentalistas islâmicos, que conhecem o problema, receiam acima de tudo o ingresso destes sonhos em seu mundo. Com razão: eles são a autêntica voz atual do Ocidente e de seu projeto universal.
Nunca então a vocação universal de nossa razão esteve tão perto de se realizar. Porque não celebraríamos este triunfo, como os missionários podiam exultar convertendo povos inteiros, ou os ilustrados constatando a queda dos preconceitos frente ao poder universal da razão?
De fato, a expansão do consumismo não nos garantiu a paz perpétua. Estamos permanentemente frustrados com os objetos e suas mágicas, pois evidentemente nunca coincidimos com as imagens sonhadas. Acabamos achando sempre que alguém, de perto ou de longe, mas sobretudo de longe, orquestra nossas frustrações.
Além disso, o consumismo é ao mesmo tempo o maior sucesso e a maior ameaça da história de nossa cultura: realizou um consenso quase universal, mas fundou este consenso em uma estereotipia dos sonhos, ou seja, do motor mesmo da autonomia do indivíduo e da invenção histórica. A razão do ocidente arrisca a se cristalizar em uma forma deteriorada de sociedade tradicional: um exasperante conformismo.
Há vários caminhos de revolta contra o momento atual de nossa cultura.
É possível, por exemplo, renegar a própria idéia de universalidade do humano, aspirar a uma volta a qualquer forma de tribalismo. Não é o caso de Toscani: sua tolerância, seu interesse para as diferenças são liderados por uma mensagem universal, como só nossa cultura, aliás, sabe produzir.
A estratégia de Toscani aposta na idéia que, reconhecendo e se servindo da própria potência do mercado e do consumo, seja possível promover um universal humano que não se reduza às imagens estereotipadas de falsa felicidade próprias à comunicação publicitária dominante. Por isso trata não de destruir, mas de modificar o instrumento cultural decisivo de nossa época: a publicidade. Toscani propõe valorizar as marcas (o que pode satisfazer o mercado) pela propagação de mensagens. As marcas poderiam valer e também vender por sua capacidade e sobretudo qualidade comunicativa. A sedução dos produtos passaria pelo interesse humano, político e mesmo intelectual das mensagens que os produtores comunicam.
Os próprios produtos, aliás, se encontrariam modificados: sua concepção não seria decidida pela suposta sedução das imagens que podem compor, mas pela inteligência do mundo que produziria uma nova comunicação. Cada empresa concorreria com as outras produzindo comunicação.
É bem possível que, em nossa cultura hoje, qualquer mensagem ou qualquer conjunto de mensagens só seja recebido como corolário de um estereótipo a mais. O homem Benetton seria diferente do "Marlboro man", seria mais um médico sem fronteiras do que um caubói, mas ainda seria uma imagem proposta aos nossos sonhos.
É também possível que a valorização das marcas não reserve um futuro melhor do que os estereótipos da publicidade dominante. Nos últimos anos, particularmente no vestuário, a marca é exibida, e não só para escrever publicamente nossa relação com a felicidade que sua publicidade promete. Frequentemente, aliás, ela é perfeitamente desconhecida.
Tudo acontece como se sua simples exibição a enobrecesse e nos enobrecesse com ela. Não seria totalmente louco imaginar um mundo onde ao consenso produzido pelos sonhos publicitários comuns se oporia uma divisão em clãs. Sem a mediação da imagem, as marcas funcionariam como tantas tatuagens tribais. Um mundo de torcidas organizadas.
Mas o momento talvez não seja para previsões pessimistas. Toscani trabalha para que, mesmo no mundo do consumo e das imagens, o imaginário narcísico não se torne o universal dominante. Inventa e produz justamente imagens que não possam ser recebidas como propostas feitas ao consumidor para que com elas se identifique.
O catálogo em Gaza é um exemplo: ninguém comprará Benetton por querer se parecer com a pobreza e a tragédia palestina. Para reconhecer que os palestinos são nossos semelhantes, tão humanos quanto nós, não será necessário recorrer à mediação de uma top model, ou seja descobri-los humanos porque sonham com os mesmos estereótipos que nós, bastará encontrá-los, na banalidade de seu cotidiano, não travestidos, só vestidos um pouco com a nossa mesma roupa.
Que ninguém se preocupe demais: o imaginário é tenaz e os caminhos da boa consciência são infinitos. Os palestinos de Gaza podem nos atrair não pelo sonho de sermos como eles, mas pela sedutora certeza de sermos, no fundo, o sonho deles. Do mesmo jeito, a contemplação do sangue de Sarajevo como o drama da Aids podem fazer apelo a um humanitarismo fácil que a pouco preço coroa nossa elegância com um toque de consciência civil.
Não pararemos tão cedo de sonhar coletivamente com a publicidade. E, se parássemos, qual nova universalidade nos espreitaria?
Toscani é um homem do século 18. A mensagem que lhe importa comunicar por suas imagens é um breviário do Iluminismo: universalidade do homem, crítica das religiões como fonte de preconceito, pacifismo racionalista, tolerância, fé na razão.
Mas o importante talvez é que se tente pelo menos demonstrar a possibilidade que a maior expressão de nossa cultura, a publicidade, comunique algo diferente das mascaradas de felicidade que parecem constituir hoje a razão do Ocidente.
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