Crianças deixam de ser depositárias de sonhos e tornam-se vítimas de um amor culpado e destrutivo
Há um mês, Pauline Zile, 24 anos, de Riviera Beach, Florida, apresentou-se à imprensa e à polícia como sendo a mãe com o coração destroçado pela perda de sua filha Christina, inexplicavelmente sumida em uma feira. Soube-se mais tarde que Christina fora de fato espancada até à morte pelo marido de sua mãe.
A história, por horrível que fosse, deixava pelo menos murmurar: não foi a mãe, foi o marido. Podia-se aparentemente esquecer que Pauline aceitara participar em uma farsa pública para desculpar seu homem, e –pior ainda– que ela devia então querer seguir vivendo com o assassino de sua filha.
O caso mais recente, Susan Smith, 23 anos, de Union, Carolina do Sul, não deixa esta escapatória. No 25 de outubro último, Susan declarou que seus filhos Michael de 3 anos e Alexander de 14 meses teriam sido raptados, com o carro dela, por um homem negro de quem forneceu descrição.
Seguiram-se conferências de imprensa, aparição na televisão com o marido e pai das crianças (de quem ela estava separada), batidas pelos campos da Carolina do Sul por policiais e voluntários, vigílias de prece nas diferentes igrejas de Union etc. Enfim Susan não aguentou e confessou que deixara ela mesma seu carro, com as crianças devidamente amarradas pelos cintos de segurança, deslizar nas águas escuras de um lago.
O marido e pai das crianças nada tinha a ver com isso; foi enganado como todos os outros. Parece que um atual namorado de Susan teria declarado que só aceitaria ficar com ela se não tivesse filhos. A imprensa e a opinião americanas jogam a carta eterna da perversidade humana ou do moralismo.
Mas os vizinhos de Susan não se convencem e seguem declarando que Susan adorava seus filhos. Provavelmente eles tem razão. E é bem por isso que o caso agita tanto a dita opinião pública. Se Susan fosse uma megera disfarçada, bastaria queimá-la (a cadeira elétrica substitui a fogueira). Mas se for uma mãe amorosa e assassina, as coisas se complicam.
Certamente nos próximos meses psiquiatras e psicólogos, forenses ou não, terão matéria. Contudo, a questão mais importante talvez não seja a hipotética dinâmica subjetiva que produziu o ato de Susan ou o de Pauline Zile. Talvez seja mais relevante considerar as reações que eles inspiraram.
A comunidade negra naturalmente protestou pelo racismo implícito na denúncia de Susan, e na imediata credulidade da comunidade de Union: para raptar criancinhas, só negro mesmo. Como sempre, o racismo consiste sobretudo, em delegar ao outro (ao negro de plantão, no caso) a parte mais preta de nossa própria alma.
Isso fica claro, por exemplo, quando nossas preocupações sociais se tingem de racismo (e negros malvados ameaçam o sono de nossas propriedades). Podemos apostar, neste caso bem brasileiro (quem disse que este país não é racista?), que as ditas propriedades são fruto de uma exploração que não reconhecemos, e cuja violência atribuímos às próprias vítimas. Em outras palavras, o receado latrocínio pelos negros é a caricatura da violência com a qual eles foram explorados e serve justamente para esquecer esta violência.
Do mesmo jeito, o suspeito negro de Susan Smith era perfeito para que não só Susan, mas todos pudessem esquecer qual é o lugar das crianças em nossa cultura hoje e quanto este lugar as torna vulneráveis à violência mais explícita. Em suma: para acreditar que os negros comem criancinhas, precisa estar com bastante apetite.
Tanto a conclamação de terror que estas condutas infanticidas parecem produzir, quanto a caçada racista ao famigerado negro testemunham de uma mesma tentativa: trata-se de ocultar, de esquecer algo que faz parte de nós. O quê? Que as crianças não são mais o estereótipo da busca da felicidade. Fazer a felicidade de filhos e filhas ou mesmo simplesmente planejar em vê-los ou vê-las felizes um dia não é, como já foi, em nossa cultura, o que nos faz sonhar.
Assim como criar crianças não é mais razão de ser. Preferimos estereótipos de felicidade para nós mesmos, imagens adultas de satisfação. Pauline preferiu o marido à filha e para Susan se suspeita que também tenha preferido sua liberdade solteira aos filhos.
Esta nova situação, que decreta o fim da infância como tempo privilegiadamente amado pelos adultos, não precisaria ser dramática. Ao contrário, poderia até constituir um excelente negócio para as crianças. Quem sabe parássemos de persegui-las com nossos sonhos e deixássemos viverem sua vida.
Mas não é assim. Vivemos numa época de transição; por isso, a contradição nos tortura entre nossas novas aspirações adultas e o antigo amor pelas crianças. As Paulines e Susans da vida parecem preferir ver suas crianças mortas do que amá-las menos do que a si mesmas. O próprio horror que estes contos da crônica inspiram na massa testemunha de uma exasperada declaração coletiva de amor, que é só uma expressão de culpa.
Conseguimos parar de amar as crianças como se fossem os únicos representantes de nossa felicidade, preferimos agora amar diretamente a nós mesmos, mas não conseguimos nos perdoar por ter assim mudado. Pauline e Susan, acredito, amavam suas crianças. Demais, como por culpa. Nós também estranhamos demais estes crimes, nos indignamos demais. E talvez seja pela mesma culpa.
O pai de Susan será certamente lembrado até não poder mais no processo: suicidou-se quando ela tinha sete anos. Os psiquiatras invocarão os nefastos efeitos do trauma. Mas este não concerne só a Susan. O suicídio do pai assume aqui quase uma dimensão mítica, como se fosse o símbolo de uma mudança pela qual os pais cessaram de ser pais, elos decisivos na cadeia das gerações, e decidiram ser simplesmente indivíduos.
Imaginamos um suicídio de desespero, por um fracasso, e acabamos supondo que um pai ou uma mãe só podem se matar legitimamente à condição de não mais depor seus anseios de uma vida melhor no futuro de suas crianças.
É frequente que sujeitos cujo pais ou cuja mãe se suicidou atravessem a vida lamentando não ter podido impedir o suicídio. Lamentam com razão não ter sido os depositários dos sonhos de seus pais, ou não tê-lo sido o suficiente para que os pais se contentassem de esperar de ver suas crianças felizes. Se os pais puderam se matar de desespero, se puderam parar de depositar esperança nos filhos, então o que conta para o órfão que sobrou é sua própria felicidade.
Por isso, elas podem facilmente se transformar em simples empecilhos no caminho da vida. Não seria razão suficiente para matá-las ou abandoná-las. A não ser que a culpa nos espreite, porque ainda as amamos. Precisará, neste caso, fazer desaparecer as crianças, ocultar assim o corpo de um delito que não é o assassinato, nem propriamente a mudança do amor. Na verdade não há delito, só perplexidade: a mão que segura o berço não sabe mais ninar, mas tampouco se autoriza a soltá-lo e acaba sacudindo a tal ponto que às vezes o nenê cai no chão.
Fantástico.
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