quinta-feira, 14 de outubro de 1999

Serial killer: um ideal para os nossos tempos



Lembram "O Silêncio dos Inocentes", o filme de Jonathan Demme com Anthony Hopkins e Jodie Foster que ganhou cinco Oscar em 1992? Pois é, o psiquiatra canibal e a jovem agente do FBI estão de volta. Saiu em junho a sequência literária pelo mesmo Thomas Harris, sob o título "Hannibal"". Foi um sucesso. O filme não vai tardar.

Neste segundo volume, o dr. Hannibal Lecter se torna o verdadeiro herói da história. Já era o caso em "O Silêncio dos Inocentes", mas agora estamos mesmo autorizados: podemos enfim idealizar tranquilamente um serial killer canibal.

Cada cultura se diverte imaginando maneiras de desobedecer à lei e ao próprio pacto social. Afinal, viver em sociedade nos custa um esforço de repressão e autocontrole suficientes para que se torne engraçado sonhar com heróis que mostram um soberano desprezo para com as leis que nós respeitamos.

A coisa vale especialmente para a modernidade, que tem a tarefa impossível de conciliar as exigências da vida em sociedade com um ideal de liberdade individual. Por isso, a cultura pop moderna inevitavelmente idealiza criminosos.

Esses delinquentes de sonho (literário ou cinematográfico) são reveladores, pois eles encenam nossas esperanças de evasão.

Por exemplo, na cultura americana, há o pistoleiro do "far west" e o gângster. O pistoleiro é o herói que, no mundo selvagem da fronteira, inventa uma moral acima dos códigos - uma moral do indivíduo. Ele faz o que é justo, mesmo que não seja conforme a lei. Nisso, ele é um herói individualista clássico.

A figura do gângster nasce entre as duas guerras, tanto na realidade quanto na cultura popular. Naqueles anos difíceis de depressão econômica e invenção do imposto de renda, ele consegue ser um empreendedor de sucesso. Se torna assim, aliás, o ideal inconfessado de quem sonha com dinheiro.

Talvez o cangaceiro seja o equivalente brasileiro do caubói bandido, com a mística de uma moral individual acima da lei. Mas de fato, na cultural pop nacional, o jagunço ganha do cangaço. O jagunço é uma imagem saudosa que situa a honra na subserviência, numa sociedade fundada no favor e no clientelismo. O jagunço não é o equivalente do pistoleiro, mas do mafioso. Nele celebramos uma evasão da necessidade moderna de inventar as leis, descansando na nostálgica fidelidade a um código tradicional. Enfim, há espaço para uma história cultural do delinquente idealizado. E seria bem interessante, nesse quadro, seguir as peripécias do ideal do malandro brasileiro.

Mas hoje é dia de serial killer. Voltemos então a Hannibal Lecter. Objeto imediato de tratamentos jornalístico-literários, Ted Bundy, Jeffrey Dahmer ou outros maníacos do parque inspiram uma curiosidade que me parecia até agora psicopatológica. Assim como há leitores para a história do homem que tomava sua mulher por um chapéu, por que não haveria para alguém que sistematicamente mata, estupra ou frita e come seus semelhantes?

Ora, com a história do Dr. Lecter, o serial killer se torna pela primeira vez herói pop.
O serial killer pop (nisso, aliás, próximo ao de verdade) não conhece culpa nem remorso. Sua vontade de gozar nos termos exatos de sua fantasia está para ele acima de qualquer consideração ou incômodo moral. Ele não precisa de desculpas nem justificativas. Pois (aqui está a novidade de ""Hannibal") ele tem o bom direito de matar a vontade. De onde vem este bom direito?

Hannibal Lecter é o homem que sabe e consegue gozar plenamente a vida. Como James Bond, ele combina os vinhos certos com os pratos certos e sabe escolher carros e roupas. Mais próximo de um aristocrata do que de um emergente, não ignora o gozo estético: encanta uma platéia de eruditos com uma palestra sobre Dante e é conservador de uma preciosa coleção florentina.

Sua competência em gozar a vida estabelece para nós leitores seu direito de gozá-la livremente. Ao risco de sermos digeridos sem escrúpulos, aplaudimos, portanto, quando ele come banais mortais.

O serial killer tem tudo para ser um herói de nosso anseio de gozar sem compromissos ou perplexidades morais. Com o dr. Lecter, este ideal um pouco abjeto encontra legitimidade, pois quem sabe como gozar a vida ganha o direito de gozar dela sem estorvos.

O novo serial killer pop é uma curiosa mistura de privilégio medieval com a constatação de Veblen segundo a qual o poder moderno se mantém e confirma pelo esbanjo de riqueza e consumo. O serial killer pop, em suma, é nosso ideal monstruoso de uma classe dirigente cuja legitimidade está e se sustenta acima da lei, graças à admiração do povo.

Ou seja, quem sabe gastar merece receber nosso dízimo. Ou então, quem conhece o conforto de lençóis de linho engomados tem direito à primeira noite de nossas noivas. E quem sabe colocar a mesa, escolher o vinho e a música certa, tem mesmo direito de nos comer. Bom apetite!

quinta-feira, 7 de outubro de 1999

Oficial, gentleman e degredado

Augusto Pinochet está em Londres sob prisão domiciliar. Amanhã, a Justiça britânica decidirá se ele deve ou não ir para a Espanha e ser processado por ao menos alguns dos horrores cometidos durante seu governo.

Seja qual for a decisão, haverá apelos. Talvez ele fique na Inglaterra, num limbo jurídico, até morrer. É também possível que, por razões humanitárias (é o cúmulo) ou políticas, Pinochet volte para o Chile para se fazer esquecer. Pouco importa.

Mesmo que o general seja solto hoje, há de se saborear uma pequena vingança. Pois ele já encontrou uma punição pouco banal quando em outubro de 1998 foi preso em Londres.
Pinochet não imaginava que isso pudesse lhe acontecer, pois, indo para Londres, ele pensava estar passando em casa. Como então seus conterrâneos civilizados (no caso, os europeus) não reconheceriam nele um par, um amigo, um próximo? Não bastaria os ingleses verificarem o perfume delicado do seu "after shave", o brilho de seus sapatos (que podiam até ser argentinos, mas imitação Bond Street) e o corte de suas camisas? Apesar da dor nas costas não veriam eles seu porte ereto e naturalmente autoritário?

O "The New York Times" relatou que, quando o detetive A. Hewitt, da Scotland Yard, lhe entregou o mandato de prisão, Pinochet comentou: "Estou sendo humilhado. Sou um general com 64 anos de serviço. Sou um gentleman que sabe o que é honra".

Pinochet se olha no espelho e vê o quê? Um oficial e um gentleman: a prestância de um soldado fiel e corajoso ou então a tranquila elegância de um militar aposentado instalado na poltrona de couro de um clube inglês. Devia, aliás, ser essa a imagem de si que o acompanhava nessa viagem a Londres.

Mas, quando olho para Pinochet, eu vejo outras coisas: um peito coberto de condecorações vazias, o cabelo brilhantinado, os óculos escuros envolventes. É a imagem da truculência brega: poderia ser "el general dictador" se um dia Angeli, Laerte e Glauco precisassem de um desses para a tira dos "Los Três Amigos".

Essa imagem manchada por pingos de sangue, suor e gritos é o retrato de Dorian Gray do general, escondido nos porões da guerra suja. Pinochet, naturalmente, prefere se contemplar no espelho do alfaiate de Londres. E devia presumir que todos os ingleses o veriam como o via seu alfaiate.

Ora, parece que os ingleses viram o retrato no porão. Prenderam o general, como se fosse ele, pode ter pensado, um índio Mapuche qualquer. Em suma, eles não entenderam que o general pertencia a mesma raça superior que a deles.

Fecharam-lhe na cara a porta do único clube que lhe importa. Seus fãs poderão recebê-lo de volta com bandeiras e aplausos no aeroporto de Santiago. Tanto faz. Para o tempo que lhe sobra, ele deverá ficar no Chile e saberá que lá fora ele não é considerado diferente das caras de povo que seus homens pisaram.

Para se defender, em dezembro de 1998, Pinochet teve de declarar que ele não poderia reconhecer o direito de julgá-lo a nenhuma corte que não fosse chilena.

Que desastre: o general teve de renunciar assim à sua nacionalidade especial de elite colonial. Ele era inglês por gosto, e, por ideal, a Inglaterra de seus sonhos deve ser o império vitoriano, a potência colonial por excelência. Ele era espanhol por ter sido a Espanha a potência que originalmente colonizou o Chile. Agora tanto a Espanha quanto a Inglaterra parecem desconhecer seu filho fiel. O prendem e processam. O que pensaria Pizarro se fosse preso e processado por matar alguns incas rebeldes e mandar ouro para a Espanha e para a Inglaterra?
Na frente da Corte de Justiça, onde corre o processo de Pinochet, grupos de chilenos se manifestam a favor e contra o general. Os que pedem que ele seja solto nem são todos fascistas. Alguns podem estar defendendo uma espécie de orgulho nacional: Pinochet é nosso, nós o julgaremos.

Eles esquecem que as elites mais sinistras, na América do Sul, sempre se mantiveram estrangeiras, coloniais.

Isso não só por preferência bancária, mas também por estarem convencidas de que a injustificável diferença social e econômica teria fundamento em alguma diferença étnica originária.

A história de Pinochet, aliás, sugere um interessante sistema de punição para ditadores e outros malandros poderosos do terceiro mundo. Seria uma espécie de nova versão do degredo.
Banqueiros corruptos, donos de imobiliárias caloteiras, deputados e vereadores cassados, ex-presidentes impeachados deveriam ser degredados ao contrário. Ou seja, como essas elites não se consideram nacionais, ser excluído dos Estados Unidos e da Europa é para elas ser excluído de casa, do lugar ao qual elas acham que verdadeiramente pertencem.

O degredo para elas deveria ser a condenação a ficar para sempre no terceiro mundo, junto com os povos que essas elites continuaram tratando como trataram os índios no tempo da conquista.

quinta-feira, 9 de setembro de 1999

Os benefícios de acabar com castas sociais

Na semana retrasada, defendi aqui uma proposta para mudar (um pouco) o sistema injusto pelo qual o acesso às universidades públicas se torna privilégio de quem conseguiu pagar um secundário particular.

Desde então, tomei conhecimento de um projeto de lei senatorial que agora está à espera de aprovação da Câmara. O projeto reserva 50% das vagas das universidades públicas para alunos que cursaram integralmente escolas públicas.

No último domingo, o editorial da Folhase situava contra este projeto. De fato, mesmo com as melhores intenções, o projeto senatorial prepara uma pequena catástrofe, pois ele institui um sistema de cotas (50% de vagas). A experiência americana neste sentido poderia nos ser útil, pois ela está na época do balanço conclusivo.

Sua primeira lição é que a instituição de um sistema de cotas se revelou insuportável, contrária a sentimentos básicos de justiça em uma sociedade moderna. Não é possível compensar injustiças e abusos se isso parece se tornar fonte de novas discriminações e injustiças.

A ação afirmativa nos EUA queria estabelecer, no trabalho e nas escolas superiores, porcentagens de presença negra comparáveis com a porcentagem de negros na população americana -o que é mais que legítimo. Mas a idéia de que um avanço social não fosse definido pelo mérito tornou a medida gradativamente intolerável.

No caso do projeto senatorial brasileiro, a coisa é pior. A injustiça não corta o país entre riquíssimos e miseráveis, sem zonas de sombra. Milhares de famílias decidem, a cada ano, se pagam o seguro-saúde ou as mensalidades da escola particular para as crianças.
A escolha de uma escola particular não é sinal de privilégio. Como não surgiria, então, a objeção de que a lei teria efeitos injustos, discriminando alunos de escolas particulares que, ao contrário, deveriam ser ajudados?

É possível promover ações afirmativas sem instaurar sistemas de cotas iníquos. Em vez de compensar as dificuldades sociais por privilégios (vagas reservadas), é melhor insistir sobre critérios para avaliar corretamente o mérito dos alunos.

Por exemplo, os que conseguissem se destacar como os melhores alunos do secundário público teriam direito a uma consideração especial pois, os resultados sendo equivalentes, é bem provável que seus méritos fossem superiores aos de alunos favorecidos socialmente. Minha proposta ia nessa direção.

De qualquer forma, os programas de ação afirmativa são paliativos e certamente não alteram a distribuição das cartas na sociedade brasileira.

Mas eles podem ter uma função social concreta e importante. São declarações de intenção pelas quais o Estado (e com ele a comunidade) explicitamente recusa e critica as formas mais dolorosas da diferença social. Ou seja, afirma-se: as iniquidades serão corrigidas. Afirmação essa que é essencial para que ninguém se identifique como excluído da comunidade.
Alguns leitores manifestaram preocupação com a idéia de que a proposta permitiria falcatruas. Jovens de classes abastadas se matriculariam no secundário público e conseguiriam assim uma espécie de vestibular para pobres - fácil para quem teria uma cultura de rico.

É por isso, aliás, que o projeto do Senado propõe que só se beneficie das vagas reservadas quem passe no ensino público sua escolaridade inteira.

Ora, as eventuais falcatruas (ou seja, a escolha do ensino público por famílias de classe média), longe de ser um problema, poderiam ser o começo de uma verdadeira solução.
Vejam só: em qualquer sociedade moderna, o pacto social mínimo é comprometido quando as classes se encontram divididas, como se fossem castas. O contrato democrático implica a idéia de que a mobilidade social seja, em princípio, possível. E, para que a sociedade acredite neste contrato, é preciso que as classes não sejam segregadas em mundos distintos, casas-grandes e senzalas. É preciso que, em alguma medida, elas coabitem.

Uma série de pesquisas americanas dos anos 70 e 80 mostrou, por exemplo, que um gueto precipita no caos (ou seja, apresenta aumento vertiginoso de gravidez de menores, interrupção de escolaridade etc.) desde que o número de habitantes de classe média se torna insignificante. Se nele continuam morando, por exemplo, 7% de classe média, o bairro segue dentro do contrato social, não se marginaliza.

A pobreza ou mesmo a miséria não são excludentes se aparecem circundadas por destinos melhores dentro do mesmo espaço social. Sem isso, seus habitantes se sentirão e tornarão excluídos - não mais obrigados pelo pacto comum.

Aposto que a mesma coisa deve acontecer com a escola. Um primário e secundário públicos frequentados só por indigentes não têm como produzir motivação. Se, mesmo que seja por malandragem, a classe média voltasse a frequentar o ensino público, os estudantes mais pobres seriam favorecidos por esta mudança. Pois voltariam a acreditar que ricos e pobres pertencem um pouco ao mesmo povo. Quem sabe se autorizassem, assim, a esperar e sonhar. Portanto, a agir.

sábado, 4 de julho de 1998

SEARLE

A linguagem como ação


Há quem diga que Searle é um homem de direita. Em 70 escreveu "The Campus War" ("A Guerra no Campus"), uma análise impiedosa do funcionamento do movimento estudantil, na qual, por exemplo, já suspeitava que o radicalismo estivesse se tornando um estilo de vida. Mais tarde, foi um dos primeiros a se opor à ação afirmativa e ao multiculturalismo triunfante. Mas, cuidado, o aparente conservador é um democrata intransigente.
Estudante em Wisconsin, Searle foi secretário do grupo Estudantes contra McCarthy e, voltando de Oxford para os EUA, fundou em Berkeley o Movimento da Liberdade de Palavra. No começo dos anos 60 -quando o poderoso Comitê das Atividades Antiamericanas apavorava a todos- esta postura foi notável, sobretudo para um jovem professor que ainda não era titular -e que, aliás, não tinha nenhuma simpatia socialista ou comunista.
Na França dos anos 70 -junto a "Como Fazer Coisas com Palavras", de Austin- o livro de Searle -"Atos de Palavra"- foi uma espécie de lufada de ar no clima estruturalista vigente. Searle propunha pensar a linguagem como comportamento e ação -a frase sendo o ato humano elementar. Sua descrição do que significa falar era mais convincente que o "Curso de Linguística Geral" de Saussure. E nos deixava com a suspeita de que uma parte ampla de nossas construções psicológicas fosse decorrente de invenções forçadas por um entendimento insuficiente da prática linguística.
Mas se delineou uma falsa alternativa entre acreditar -por exemplo, com Lacan- que somos efeitos, e não agentes da linguagem, ou então adotar uma visão do sujeito como intencionalidade consciente -e abandonar portanto os fundamentos da psicanálise. De fato, a concepção da intencionalidade em Searle está longe de ser inconciliável com uma concepção complexa da subjetividade. Algo disso aparece na entrevista.
A verdade é, para Searle, sempre decidida pela adequação de nossas descrições à realidade. A questão é mais delicada, obviamente, do que aparece na entrevista. Ela se complica quando se trata de descrições que não concernem à realidade exterior, por exemplo, proposições de juízos abstratos ou de qualidade. Mais delicada ainda é, a meu ver, a contradição entre o caráter convencional e cultural de nossas descrições e a idéia de uma realidade que, para ser medida da verdade, deveria ser independente delas. Mas admiro o fundo de bom senso na posição de Searle: uma espécie de aceitação do realismo espontâneo de nossa experiência cotidiana.
Com toda sua simpatia pela ciência, Searle nunca se tornou positivista. Sua ironia em relação às posições dos cientistas-filósofos como Edward Wilson é explícita. E é famosa sua crítica sobre a idéia de que os computadores possam reproduzir uma inteligência humana. Justamente no livro que sai agora no Brasil, Searle retoma e completa seu "argumento do quarto chinês". É a história do homem que recebe um texto em chinês e, com a ajuda de regras fixas de correspondência, reproduz o texto em uma outra língua. Ora, mesmo se esse texto conseguisse manter a significação do original, será que o homem estaria traduzindo?
Do mesmo modo, os computadores podem imitar o pensamento, mas não pensar, pois são máquinas sintáticas, sem semântica. A este argumento antigo, Searle acrescenta hoje a idéia de que o computador só pensa do ponto de vista de um observador, quando um homem pensa do seu próprio ponto de vista. Há, em Searle, um cuidado constante com o caráter original e irredutível da experiência humana da subjetividade (e não só da consciência).
Enfim, importa assinalar que Searle é um analista imprescindível das construções sociais. Sua explicação das formações simbólicas (sobretudo modernas, contratuais) em "A Construção da Realidade Social" é das melhores que conheço.


Entrevista

da Redação

Leia a seguir entrevista concedida pelo filósofo John Searle à Folha em seu escritório na Universidade da Califórnia, em Berkeley (EUA), onde leciona.

Folha - Como você resumiria sua trajetória desde "Speech Acts" (Atos de Fala)?
John Searle -
Hoje me parece que meus dez livros são partes de um único projeto que emerge só aos poucos. Eis o problema: como conciliar a concepção que temos de nós mesmos -como agentes conscientes e racionais- com um mundo do qual nos é dito que é feito de partículas sem espírito e sem significação? A questão de "Atos de Fala", meu primeiro livro, era uma variante deste problema maior. A pergunta, na época, era a seguinte: como é possível que eu produza estes barulhos com a boca e eles acabem sendo entidades significativas? Como se passa do som à significação? Respondendo a esta questão, eu tive que recorrer a uma série de aparatos mentalistas.
Estava assim contraindo uma dívida que algum dia teria que pagar. Precisava explicar o que é um desejo, uma promessa, um medo... Assim, depois de "Atos de Fala" escrevi um livro sobre a "Intencionalidade", em que tentei analisar estas noções. Isso me levou a toda uma série de debates sobre a natureza da mente. Depois, como a mente cria a sociedade, quis me perguntar de que modo pessoas que agem de concerto criam um mundo social objetivo. É a "Construction of Social Reality" (A Construção da Realidade Social).
Folha - O livro que sai agora no Brasil, "O Mistério da Consciência", vale como uma espécie de introdução ao debate em curso sobre a questão das relações entre cérebro e mente, e apresenta, naturalmente, sua posição. Você não quer abandonar o materialismo, mas também não quer reduzir a consciência, ou seja, a consciência não pode ser negada como experiência original, mas, por outro lado, não há nada mais do que o cérebro. Portanto a consciência deve ser uma caraterística que emerge da atividade cerebral.
Searle -
Parte do problema neste debate é a oposição tradicional entre materialismo e dualismo. O materialismo é pensado de forma a excluir a possibilidade de um fenômeno mental irredutível (como a consciência) e o dualismo (de corpo e espírito) é geralmente usado para negar o materialismo. Eu penso que ambos de uma certa forma são verdadeiros, não são inconsistentes, e gostaria sobretudo de me livrar do vocabulário tradicional.
O mundo é composto de partículas físicas organizadas em sistemas, alguns sistemas são orgânicos e, entre estes, alguns são sistemas nervosos. Por sua vez, alguns destes comportam processos neuronais que produzem, em um nível mais alto, estados de consciência. A consciência então é uma faculdade emergente de certos sistemas biológicos. Disse tudo isso sem usar o vocabulário tradicional de materialismo e dualismo. Quero evitar esse vocabulário e dizer: a consciência é produzida por processos cerebrais e é ela mesma um certo nível de organização do cérebro.
Folha - É um bom caminho, aliás, para mostrar que não há necessariamente contradição entre biopsiquiatria e psicoterapia pela palavra. Sei que esta mesa é feita de moléculas, mas minha experiência continua sendo a de uma mesa de quatro pernas. Do mesmo jeito, mesmo se a consciência é um efeito do cérebro, a gente nunca vai se vivenciar como um sistema neuronal. Quando decido ir ao cinema, não tenho a experiência de meus neurônios disparando o título do filme que quero ver.
Searle -
Exatamente, não há nada de inconsistente em dizer que a consciência está inteiramente no nível dos neurônios, mas é a experiência que forma o conteúdo da consciência. Nenhum paradoxo: quando dirijo meu carro, não penso na oxidação de hidrocarbonetos etc. Simplesmente boto o pé. Trata-se de diferentes níveis de descrição. A consciência não é uma experiência de neurônios disparando (ou seja qual for a descrição mais adequada -talvez precise, no futuro, descer a um nível subneuronal). Ao mesmo tempo, em algum nível, o cérebro deve fornecer a explicação, porque o cérebro causa a consciência.
Folha - Agora gostaria de voltar ao começo de sua produção, "Atos de Fala". Por causa deste livro, eu sempre identifiquei você com a dita Virada Linguística (Linguistic Turn, movimento sobretudo anglo-saxão que situou a linguagem no centro da investigação filosófica). Com razão?
Searle -
Sim, absolutamente. Sou um filósofo da linguagem.
Folha - Mas, por alguma razão, no que concerne à concepção da verdade, você se tornou um representante do realismo contra a Virada Linguística. E defende a idéia de que a verdade depende da adequação à realidade, não é um critério intrínseco à linguagem.
Searle -
Sempre pensei que importava examinar a linguagem para descobrir mais coisas sobre a realidade que a linguagem representa. Uma maneira de chegar, por exemplo, à realidade da intencionalidade humana ou do comportamento humano é examinar a estrutura da linguagem que usamos para descrever as ações: voluntárias ou involuntárias, forçadas ou não etc. Mais importante ainda, a linguagem enquanto tal é um certo tipo de realidade. Em "Atos de Palavra" o projeto era examinar como a linguagem se relaciona com o mundo, e a intuição básica de qualquer teoria dos atos de palavra é que a unidade essencial na comunicação humana é o ato de palavra.
A linguagem é assim concebida como uma forma de comportamento humano, um comportamento intencional. Se a Virada Linguística significa examinar só a linguagem por si só e nada mais, não faço parte dela. Eu nunca pensei que a filosofia devesse se interessar inteiramente pela linguagem enquanto tal. Mas pensava, isso sim, que a linguagem, além de ser um campo de investigação autônomo, era um instrumento maravilhoso para analisar problemas filosóficos tradicionais.


Para Searle o pós-modernismo é um desastre da filosofia, uma verdadeira favela intelectual


Folha - Serei mais específico. No último livro de Richard Rorty, "Verdade e Progresso" ("Truth and Progress", Cambridge University Press), há um capítulo que discute um artigo seu de 92, em que, em nome do realismo, você criticava Rorty, Kuhn e Derrida. Para ser mais direto: não acredito que Derrida caiba neste grupo, mas é verdade que, por alguma razão, Rorty acredita que Derrida jogue no seu campo. De qualquer forma, o debate é entre concepção pragmatista e concepção realista da verdade. Para você o realismo não é pouca coisa; a segunda parte de "A Construção Social da Realidade", por exemplo, é consagrada ao realismo.
Você defende contra todos a idéia de que a verdade seja, possa e deva ser medida pela adequação à realidade. É surpreendente, pois você certamente seria o primeiro a dizer que a linguagem é a instituição fundamental, sem a qual nenhuma outra instituição seria possível. Como entender a noção de que qualquer coisa que a gente diga possa ser adequada à realidade enquanto tal? Se estamos sempre lidando com descrições, e as descrições, sendo linguísticas, são convencionais, como apreendemos a realidade em si?
Searle -
A resposta é muito simples. Algumas descrições são verdadeiras porque correspondem aos fatos. Digo: há uma árvore lá fora, e há uma árvore lá fora.
Folha - Há uma árvore porque você pode bater nela, cortá-la...
Searle -
Não, há uma árvore porque há uma árvore. Como é que eu acabo sabendo que há uma árvore é uma outra questão. Não devemos confundir a epistemologia de como descobrimos que há uma árvore com a ontologia, aquilo que existe. As descrições do mundo são articuladas por meio de frases em um vocabulário convencional, mas os fatos que correspondem a estas descrições não são convencionais.
Há água salgada no oceano Atlântico, ela estava lá anos antes que qualquer ser humano declarasse que havia água salgada no oceano Atlântico. Tínhamos que inventar um vocabulário para dizê-lo, mas o fato mesmo não depende de nosso vocabulário. O vocabulário é convencional, mas, uma vez que você tenha um vocabulário convencional, que haja ou não um fato no mundo que corresponda à sua declaração não é convencional.
Folha - Estamos acostumados a dizer que a realidade é composta de partículas. Isto é verdadeiro porque este é o tipo de descrição do mundo que é científica para nós. Duzentos anos atrás, teríamos falado de uma maneira completamente diferente. Por exemplo, em lugar de vermos a verdade em partículas mínimas, poderíamos pensar que ela está na ordem holística do universo. Qual é o fato que está por trás desta mudança? Naturalmente, há algum fato, não estamos discutindo que haja realidade.
Searle -
O ponto é que, avançando na ciência, mudamos nossa descrição, mas isso não coloca em causa a existência de uma realidade independente.
Folha - Concordo até aqui.
Searle -
Que a gente modifique, melhore nossas descrições, isto só faz sentido porque tentamos nos aproximar da verdade. E a verdade é uma questão de como nossas descrições correspondem a um fato.
Pergunta - Aqui já concordo menos. Há uma teleologia em sua posição, a idéia de um progresso de nossas descrições.
Searle -
Mas é assim. Sabemos muito mais do que nossos avós. Havia um tempo em que ninguém sabia das doenças produzidas por bactérias, e agora sabemos. E, por consequência, somos decididamente mais capazes de curar doenças do que no passado.
Folha - Justamente, este é um argumento pragmático. Aí concordaríamos.
Searle -
Ok, mas a utilidade pragmática deriva da correspondência aos fatos. Identificamos a bactéria da TB e por isso fomos capazes de agir utilmente. A utilidade depende da correspondência (e não vice-versa). É porque temos uma representação adequada de uma coisa que podemos agir do modo certo.
Folha - O pragmatismo diria apenas o inverso.
Searle -
Pior. Richard (Rorty) não quer falar da verdade. Segundo ele, não podemos dizer que a ciência nos permite fazer melhores predições porque o que ela diz é verdadeiro. Tampouco se pode dizer que é verdadeira porque permite melhores predições. Deveríamos simplesmente dizer que ela nos permite fazer melhores predições -ponto. O que "melhores" significa aqui, a não ser "correspondente aos fatos", não tenho a menor idéia.
Folha - Acho que, se Rorty não quer falar sobre a verdade, é porque receia que a verdade tenha dono. A idéia de deter a descrição verdadeira do mundo às vezes inspira pretensões delirantes. Veja o caso de Edward Wilson, o biólogo, que acredita ser possível deduzir até normas éticas a partir da descrição científica da realidade.
Searle -
Eu contestei Ed Wilson. Ele disse, por exemplo: estabelecemos em sociobiologia que o incesto é um mal. Eu mostrei que, mesmo em seus próprios termos, ele não estabeleceu nada disso. No melhor dos casos ele estabeleceu que o incesto que leva à gravidez é um mal, mas o pai que estupra sua filha usando métodos contraceptivos não vai de nenhuma maneira contra o que a sociobiologia pode estabelecer. A sociobiologia não mostra as coisas que Ed Wilson pretende.
Folha - O sonho dele (e de outros) é chegar a algum tipo de regulador ético que não seja convencional ou institucional.
Searle -
Ele está errado.
Folha - Mas não deixa de ser uma tendência forte. Entende-se por que: seria uma maneira de substituir Deus. Se pudéssemos deduzir princípios morais da ciência ou da biologia, seria um alívio.
Searle -
Mas em filosofia não estamos no negócio de oferecer conforto e alívio para ninguém.
Folha - Justamente, no último capítulo de "Atos de Fala", você abordava uma questão filosófica clássica: como deduzir o "dever" do "ser" (o "ought" do "is"). Sua posição era: é possível, mas há que se ter ao menos uma regra convencional, que deve ser acrescentada aos fatos; ou seja, só é possível na linguagem. Uma posição oposta à de Ed Wilson.
Searle -
Vejamos esta posição. Mostrei que a sociedade só funciona se as pessoas podem criar razões para agir independentemente de seu desejo. A instituição da promessa é um bom exemplo. Ao prometer que encontraria você aqui em meu escritório, criei uma razão de agir que permanece autônoma do meu desejo. Engajo-me em algo que eu poderia não estar a fim de fazer.
Agora, a obrigação de manter uma promessa não deriva da instituição da promessa. A maior parte dos comentadores deste capítulo pensou que eu estava dizendo que as regras constitutivas da linguagem (por exemplo, o engajamento produzido pelo ato de prometer) engendram as obrigações. Não é isso: o agente individual, prometendo, cria intencionalmente uma situação em que vai ter que fazer alguma coisa independentemente do desejo. A obrigação (moral) de respeitar a promessa é outra coisa e não depende da instituição da linguagem.
Naquele escrito, o que me importava era que temos instituições linguísticas que permitem aos indivíduos em sociedade conectar sua vontade. Uma sociedade não poderia funcionar sem isso. Porque, sem isso, a única maneira de predizer o comportamento das pessoas seria tentar adivinhar o que desejam, e isso não levaria a lugar nenhum. Deve haver um sistema para que eles possam agir segundo uma razão que não depende do que eles estão a fim em um dado momento.
Folha - Então não é possível deduzir normas éticas da instituição da linguagem.
Searle -
Não há nada na linguagem enquanto tal que garanta uma teoria em lugar de outra.
Folha - Talvez as questões propriamente éticas, em sua filosofia, dependam mais do que você chama de background -pano de fundo. Para explicitar este conceito, poderia situá-lo entre o que um antropólogo chamaria cultura e o que, na hermenêutica de Gadamer, seria o horizonte comum entre locutores? São conceitos que se sobrepõem?
Searle -
De qualquer forma, a ética é um pântano. Não é tão ruim quanto o pós-modernismo, que é um desastre, mas é uma área fraca da filosofia. Quanto ao background, minha concepção é a seguinte: o uso da linguagem depende de pressuposições implícitas, ou seja, depende de capacidades gerais, disposições, maneiras de comportamento, práticas culturais. A significação literal da proposição articulada pode ser interpretada só por meio deste background. O background não é exatamente a mesma coisa que os antropólogos chamam de cultura, porque muitos elementos do background são transculturais.
Se você lê em um livro que "comiam carne", sabe que comiam carne pela boca, não pelos ouvidos, e esta não é uma questão de cultura, mas de pressupostos comuns de background -neste caso, biológico. Mas atenção: não devemos pensar o background como um sistema de crenças. É algo que se situa antes da crença, é um conjunto de posições diante do mundo. São disposições, capacidades que as pessoas têm no trato com o mundo.
Folha - De maneira recorrente em sua obra, aliás, você evoca o inconsciente freudiano e contesta a idéia de uma intencionalidade inconsciente. Ora, muitos psicanalistas contemporâneos (eu me incluo entre eles) na verdade situariam o inconsciente, para usar seus termos, no background. Ou seja, como representações, pressupostos ou implicações que são evocados, ativados pelos atos de palavra, mas que não estão presentes na consciência quando o ato é produzido.
Searle -
Isto é interessante. A maneira como sempre interpretei Freud me mostrou que sua concepção do inconsciente era intencionalista, ou seja, concernia a crenças e desejos que as pessoas têm inconscientemente. Por isso, sempre pensei que meu ponto de vista era oposto ao de Freud.
Folha - Minha opinião é a de que a aparência de uma intencionalidade inconsciente é produzida a posteriori, pela interpretação. De fato, a intencionalidade é sempre consciente: o que acontece é que um background composto por memórias privadas, histórias de família, convenções sociais etc. intervém, atrapalhando o exercício intencional.
Searle -
Mas isto não é o que diz o texto de 1915 sobre o inconsciente.
Folha - Concordo, mas Freud produziu no mínimo duas metapsicologias. De qualquer forma, me parece que é do lado daquilo que você chama de background que se explica a relevância de qualquer terapia pela palavra.
Searle -
Certo. Parece-me, aliás, que muitas vezes o comportamento patológico das pessoas tem a ver não com alguma crença ou desejo inconscientes, mas com uma capacidade de background que é contraprodutiva, patológica.


A idéia de nação está acabando; o problema é que até agora não temos estruturas institucionais para substituir a nação-Estado


Folha - Você dizia que a linguagem como tal não carrega todas as complexidades de uma cultura (por exemplo, não implica as obrigações éticas), mas uma linguagem não deixa de representar uma cultura, pois as palavras valem como convenções sociais que são às vezes específicas da cultura que fala esta língua. Quais as consequências políticas disso, por exemplo, no que diz respeito ao debate entre integração ou preservação das diferenças culturais?
Searle -
Duvido que a gente consiga obter uma derivação estrita de minha filosofia para questões de política. No entanto há implicações gerais, embora não de natureza estritamente lógica. Se estou com razão a propósito da construção da realidade social, que é uma questão de aceitação ou reconhecimento (coletivos) de uma sequência de funções simbólicas, então parece que uma sociedade vai funcionar melhor se não for centrífuga. Ou seja, em uma nação como os EUA, se o foco primário de lealdade de grupo estiver relacionado com a nação, e não com grupos subsidiários.
Estamos hoje em um momento em que tem sucesso uma coisa chamada multiculturalismo, isto é, a idéia de que é necessário haver lealdade entre grupos étnicos específicos, mais do que com a mais larga unidade nacional. Eu acho que isso é uma péssima notícia. Duvido que -especialmente em tempos de crise, como em caso de guerra- um país como os Estados Unidos possa funcionar com focos de lealdade primária diferentes daqueles do Estado nacional.
Naturalmente, há uma outra questão: talvez a idéia de nação esteja acabando. Durante quase 700 anos as nações eram um foco primário da identificação de grupo. Talvez, com a unidade européia e com a concepção multiculturalista nos EUA, a nação-Estado esteja no fim. O problema é que até agora não temos estruturas institucionais para substituir a nação-Estado, nem organizações supranacionais (certamente, não as Nações Unidas), nem subsidiárias. Outra implicação de minha filosofia para a política.
Na "Construção da Realidade Social", mostrei que há realidades que são construídas socialmente, como dinheiro, governo, matrimônio etc.
Nos EUA há um caso muito interessante que não discuto no livro. A raça é largamente (embora não inteiramente) uma construção social. Não é uma questão de biologia. É evidente que, por não sabermos lidar com diferenças étnicas e raciais, fazemos de conta que são entidades biológicas, naturais, conquanto sejam construções sociais.
Folha - Qual é a sua visão da comunidade intelectual americana hoje?
Searle -
Houve um desastre: o advento de uma facção de filosofia anti-racionalista conhecida como pós-modernismo: é uma espécie de favela intelectual. Se tivesse cem anos pela frente, entraria para fazer a limpeza.
Folha - Quais são os nomes?
Searle -
Ok. Derrida, De Man. Não incluiria Foucault. Foucault era sobretudo um intelectual europeu tradicional que obedecia a um certo estilo francês. Mas incluiria o elemento radical do movimento feminista, as pessoas de filosofia da ciência que dizem que a ciência cria os fatos...
Pergunta - Kuhn faria parte disso?
Searle -
Ele deu conforto e tranquilidade para essas pessoas, mas não faz parte disso.
Folha - Diria a mesma coisa sobre Rorty?
Searle -
Um pouco mais. Rorty é um aliado deles, deu mais do que conforto. Acho que Richard não se sente muito bem na companhia de lésbicas radicais e desconstrucionistas, mas ele deve pensar que é uma maneira de atacar as coisas que ele quer atacar. Para ele, é uma aliança interessante. Diria que ele é um pós-moderno ambíguo, mas é definitivamente um aliado. Os pós-modernos são essencialmente uma coleção de anti-racionalistas e antiiluministas. Invadiram os departamentos de inglês, nos quais se passou a ler Derrida, Geoffrey Hartman, De Man... e nada de literatura.
Folha - Kuhn e Rorty certamente não compartilham sua posição realista em matéria de verdade. Mas não me parece que seja este o desastre. O desastre é que seus aliados desconstrucionistas se aproveitam disso para produzir uma descrição do mundo em termos exclusivamente ideológicos.
Searle -
Certo, é o que acontece. Quando me criticam, não criticam meus pensamentos, dizem: "Searle usa metáforas masculinas". "Searle encontra uma aporia burguesa que o leva ao falo-fono-logo-centrismo...". Não se interessam pelo conhecimento, em como conseguimos dar conta do mundo e em como ele funciona. E, para mim, este é o sentido de uma vida intelectual. (CONTARDO CALLIGARIS)

OBRAS DE SEARLE

O Mistério da Consciência
- Tradução de André Yuji Pinheiro Uema e Vladimir Safatle. Ed. Paz e Terra. Preço não definido.

Expressão e Significado -
Tradução de Ana Cecília G.A. de Camargo e Ana Luiza Marcondes Garcia. Ed. Martins Fontes. 320 págs. R$ 22,50.

Intencionalidade -
Tradução de Julio Fisher e Tomas Rosa Bueno. Ed. Martins Fontes. 408 págs. R$ 27,50.
A Redescoberta da Mente -
Tradução de Eduardo Pereira e Ferreira. Ed. Martins Fontes. 388 págs. R$ 27,50.

Em inglês:
The Construction of Social Reality - Free Press. US$ 17,50.

Speech Acts - Cambridge University Press. US$ 20,95


domingo, 14 de junho de 1998

A autoridade razoável



A justiça é sempre de natureza política e depende do quadro social em que age


CONTARDO CALLIGARIS
especial para a Folha

Frequentemente nossa insatisfação com a administração da justiça se expressa da seguinte forma: a Justiça não consegue ser cega. Gostaríamos que nossos tribunais julgassem sem nenhuma consideração política.


Achamos injusto que a Justiça favoreça cidadãos de classes sociais privilegiadas. Achamos indigno que, por exemplo, no Brasil existam prisões diferenciadas para cidadãos com nível superior de estudos. Podemos achar injusto que a criminalidade de colarinho-branco seja menos severamente reprimida do que a violência desesperada da miséria. Reciprocamente, nos Estados Unidos de hoje, podemos achar injusto que o fato de se pertencer a uma minoria étnica ou social desfavorecida possa constituir uma espécie de desculpa. Assim como achávamos injusto que, no passado, pertencer à mesma minoria fosse, ao contrário, uma espécie de agravante.


Quando pensamos nos fundamentos de uma democracia moderna, imediatamente evocamos a separação dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário como uma condição não negociável. E esta exigência parece incluir a idéia de que a Justiça não deve nem pode ser expressão de vontades políticas.


Ora, Susan Estrich -advogada e professora de direito e ciência política na Universidade da Califórnia- acaba de publicar "Getting Away with Murder -How Politics is Destroying the Criminal Justice System" (Matando Impunemente -Como a Política Está Destruindo o Sistema de Justiça Criminal), Harvard University Press. O título é enganador: deixa supor que seja mais um livro preocupado com os efeitos maléficos da política na administração da Justiça. Um livro, em suma, que confirmaria tudo o que já pensamos.


Não é nada disso. Estrich constata que em uma sociedade ocidental moderna -salvo os que alimentam nostalgias para julgamentos divinos e santas inquisições- a fonte da autoridade da lei e de sua administração é a própria comunidade dos cidadãos. Ou seja, se em nossas sociedades é proibido matar, estuprar, roubar etc., isso não acontece porque essa foi a regra transmitida pelos antepassados ou por Deus. Acontece, ao contrário, por decisão política da comunidade. Idéias, valores, princípios morais e leis valem porque concordamos de alguma forma em sermos orientados e regidos por essas normas.


Esta primeira constatação, excessivamente banal, acarreta uma consequência: não faz sentido protestar contra a ingerência da política na administração da justiça, pois, em nossas sociedades, a justiça é de natureza política, já que a própria idéia do que seria justo ou não só vige graças ao acordo da comunidade política.


As imperfeições (ou pior) do sistema jurídico, portanto, não são devidas à iníqua invasão da política na esfera pretensamente purificada da lei. Não são contaminações da justiça por um corpo estranho. Ao contrário, lei e justiça são e só podem ser expressões políticas da vida social.
Um marxista não diria diferente, e acrescentaria que por isso mesmo o exercício da justiça é mais um teatro (falsamente neutro) onde se desdobra a luta entre classes. Mas uma liberal, como Estrich, acreditando nas virtudes da democracia, propõe, ao contrário, o silogismo seguinte: 1. Em uma sociedade moderna, a fonte de toda autoridade é a própria comunidade dos cidadãos; 2. O que é justo (e o que não é) depende da suposta vontade da comunidade; 3. Portanto, se a administração da justiça não funciona, isto não acontece por ela estar sendo "invadida" por considerações políticas, mas por algum fracasso da vida política da comunidade que deveria se expressar na sua capacidade de fazer justiça. Uma comunidade mais ou menos politicamente doente é incapaz de articular uma voz comum que sirva de fundamento à administração da justiça.


O problema da justiça no Brasil, por exemplo, não seria uma questão de separação insuficiente entre judiciário e legislativo ou executivo, mas uma expressão do fato de que a comunidade nacional está dividida, impedida de funcionar como comunidade. Se uma classe é privilegiada na administração da justiça, isto não manifesta sua usurpação do Judiciário, mas sim sua usurpação da comunidade.


As idéias de Estrich parecem particularmente evidentes em um sistema jurídico - como o americano - fundado na "Common Law", ou seja, onde distintamente o que tem valor de lei são em última instância as idéias compartilhadas (os "standards") da comunidade. Mas é fácil constatar que, mesmo os países de direito romano e napoleônico (como o Brasil), evoluem nesta direção por um caminho indireto, mas seguro. Pois acontece que o legislador é inevitavelmente chamado a atuar segundo os costumes comunitários.


Para medir os padrões comunitários em matéria de justiça, Estrich oferece um conceito interessante: "A pessoa razoável". Bem distinta do "ser racional", cujas ações corretas seriam decididas por princípios pretensamente deduzidos de alguma razão universal, a pessoa razoável é quem age de uma forma compatível com a comunidade e compreensível por ela. Uma comunidade (e portanto sua justiça instituída) decide o que é punível ou não, assim como o que pode ser considerado como uma circunstância atenuante ou agravante, a partir da idéia vigente da pessoa razoável.


Contrariamente ao ser racional, a pessoa razoável evolui no tempo. Por exemplo, 30 anos atrás, o homem razoável poderia aparentemente ser desculpado caso matasse sua mulher surpreendendo-a com um amante. A mulher razoável da mesma época não seria desculpada. Já hoje parece que, seja qual for seu sexo, a pessoa razoável é menos ciumenta. Mas o que mais importa é que, na evolução saudável da vida de uma democracia, a pessoa razoável deveria sobretudo se tornar cada vez mais representativa da comunidade em seu conjunto.


A pessoa razoável da Justiça americana, até os anos 60, era masculina e branca. Já hoje ela pode ser negra, hispânica, feminina. Portanto, a comunidade que achava razoável quem linchava um negro ou batia em uma mulher, pode hoje achar razoável a raiva do mesmo negro e desculpar Lorena Bobbitt, que cortou o pênis do marido. A pessoa razoável, em suma, vem a ser a unidade de medida da Justiça, se conseguir se tornar representativa do conjunto da comunidade.


Ora, as dificuldades da Justiça americana, seu vaivém às vezes cômico de decisões extremas e frequentemente compensatórias, derivam do caráter peculiar do projeto comunitário americano: compor e manter uma comunidade que reconheça e exalte todas as diferenças particulares. Os paradoxos deste projeto aparecem na administração da justiça, pois a "pessoa razoável" se torna um arlequim multicolor impossível de ser reconstituído, mesmo pela assembléia de 12 jurados. A Justiça aparece assim como o incerto teatro político de uma luta entre facções da comunidade.
No Brasil é outra história: faltam as condições básicas, materiais, de uma comunidade. As diferenças sociais fazem com que, para um adolescente filho de ministro, seja razoável atropelar, matar e omitir socorro, com a condição de que o morto seja um trabalhador passante -quando certamente não seria razoável que o dito trabalhador atropelasse e matasse um filho de ministro.
Segundo Estrich, o problema não é de má administração da justiça. Ao contrário, por nossa vida política e social, temos a justiça que merecemos.

domingo, 1 de fevereiro de 1998

Crise mostra descompasso entre mídia e público


A sexo-crise da Casa Branca entra em sua segunda semana. Seja qual for sua conclusão, ela poderá passar para a história como um extraordinário descompasso entre a mídia e seu público.
A mídia norte-americana continua pressupondo uma reação de indignação que seus ouvintes e leitores manifestamente lhe negam.


Jornalistas de todas as orientações ostentam um tom fustigador, mas -nas pesquisas quantitativas como nas conversas de esquina- o público responde que, para essa história, não dá a menor bola: o uso do membro presidencial concerne ao presidente, a sua mulher e, eventualmente, a paixões paralelas, se existirem.


Até os adversários políticos tradicionais preferem se abster a pedir uma indignação que não é o sentimento popular.


Só reagem os raivosos profissionais, que desde sempre alimentam alguns talk-shows de rádio num constante e paranóico descontentamento ou colocam bombas nas clínicas de aborto (e que mal representam 10% dos americanos).


Em breve, tudo indica que, se o presidente for culpado de uma aventura com uma estagiária, ninguém se importa. Agora, se for provado que ele tentou obstaculizar a Justiça, induzindo Monica Lewinsky a mentir, poderemos nos indignar, mas o risco é quase nulo, pois nas próprias gravações das conversas telefônicas de Monica com Linda Tripp, ela afirma que não foi aconselhada a mentir.


A mídia internacional globalmente caiu na armadilha de tomar o evento montado pela mídia americana como expressão de uma voz popular que, de fato, está ausente.
Conclusão (viva as banalidades!): denuncia-se ou ironiza-se o pretenso "puritanismo" americano. Não podia dar mais errado, pois a história indica, ao contrário, que a mídia americana presumiu um puritanismo do público, que desta vez faltou à chamada.


Procura-se então uma explicação simples e alternativa. Mais um lugar comum: o americano, além de puritano, se presume que seja pragmático, ou seja, cínico. Conclusão: as pessoas não se indignam porque com Clinton a economia está dando certo, e o bolso fala mais alto do que a moral. Será? Ou será que algo mudou enfim -e radicalmente- na maneira americana (e não só americana) de pensar e viver a política?


A situação atual é um bom teste para verificar essa hipótese. Na terça, o presidente Clinton proferiu o tradicional discurso sobre o Estado e a União. Logo após o discurso, sua popularidade disparou para perto dos 70% (sondagem da CNN). Por quê?


Foi um discurso de política pós-moderna: nenhuma proposta radical, nenhuma grande oposição ideológica, nem mesmo a procura de zonas de conflito com a oposição republicana. Ao contrário, na enumeração dos sucessos de seu governo, o presidente sublinhou os resultados que foram efeito de acordos e esforços bipartidários.


Nas propostas, ele planejou gastar (democraticamente), mas respeitou a oposição se engajando a não se endividar (republicanamente). Evitou ventos ideológicos e avançou esparadrapos sociais pontuais, possíveis e concretos.


Se houve um apelo ideal, foi à esperança genérica de construir uma comunidade mais apaziguada e justa, de reinventar uma idéia de bem comum no respeito das diferenças da sociedade americana e global.


Este ideário básico pode parecer piegas e talvez seja. Mas o que importa é que ele está em perfeita consonância com o clima do momento. É este o ideário da geração que hoje lidera a opinião pública: os baby-boomers, influenciados pelos anos 70, revoltados ou revolucionários arrependidos, tolerantes, multiculturalistas, vagamente libertários, cuidadosos de seu conforto, mas bem intencionados socialmente, nostálgicos e sedentos de vida comunitária, anti-racistas, desconfiadíssimos de oposições ideológicas abstratas e partidárias (nas quais acreditaram no passado) e geralmente menos hipócritas do que seu predecessores.


O pano de fundo atual é uma mudança da política como disciplina e exercício, pela qual hoje a moda não é o conflito, mas a convivência. O novo urbanismo americano propõe a fuga dos subúrbios e a volta aos centros urbanos, mais diversos. Ou então, negros -homens e mulheres- marcham sobre Washington não para pedir algo do governo, mas para proclamar seu engajamento em produzir uma vida melhor para todos. Ou ainda: assiste-se a um vasto "revival" do serviço comunitário e dos esforços caritativos.


No discurso, Clinton apresentou os sucessos da redução dos subsídios a pobres e desempregados como sendo antes de mais nada o efeito do heroísmo dos próprios desfavorecidos que conseguiram passar do cheque-subvenção ao cheque do salário.


Ele levou o Congresso inteiro a aplaudir de pé uma mulher do povo: heroína da nova comunidade americana. É isso que os baby-boomers esperam de seus políticos: que coordenem nossos esforços para criar uma vida melhor e que não nos azucrinem com princípios ou com estatuários exemplos de virtude.


Os feiosos de repente são os acusadores de Clinton, por parecerem (e provavelmente serem mesmo) perigosamente partidários. Kenneth Starr, o promotor nem tão independente assim, pertence a um escritório que defende os interesses das companhias de tabaco, é republicano militante e, antes de ser escolhido para sua função atual, se ofereceu espontaneamente para ser advogado de Paula Jones. O mesmo ou quase vale para Linda Tripp ou para sua agente literária. Eles aparecem vulgares, fora de moda, intolerantes.


Clinton, ao contrário, se beneficia da própria política que ele representa e promove. Em um clima onde a esperança é respeitar a diversidade sem perder a comunidade, onde portanto se promove a tolerância das diferenças de orientação sexual, como poderíamos contestar seu direito à Presidência por um presumido adultério oral?


O discurso de Clinton constituiu assim um exato a-propósito. Seu governo parece feita para os nossos tempos. Ele é um baby-boomer comum. Suas forças (poucos "a prioris" básicos humanitários, diálogo e conciliação) são nossas forças. Suas fraquezas (da carne) também são. Por isso é fácil atingi-lo, mas por isso mesmo não vai ser fácil afundá-lo, pois ele é o homem político de uma geração.


Retomando a questão levantada por Otavio Frias Filho em sua coluna de quinta passada -para descobrir quem quer a pele de Clinton, vale perguntar: além do interesse da mídia por qualquer história que levante poeira, quem quer hoje voltar a um clima interno e externo de Guerra Fria? Quem tem interesse em uma sociedade de oposições adamantinas?


Não sei, mas talvez a resposta seja só cultural: a geração de Woodstock chegou a sua maturidade e sabemos que, de regra, a passagem do poder de uma geração para outra nunca é pacífica.

domingo, 18 de janeiro de 1998

A geopolítica do prazer


Brasileiro assume a imagem de ardente para ocupar o lugar dos sonhos dos outros


O século 20, o século dos antibióticos, do telefone, do homem na lua etc., será também lembrado como o século do sexo. Alguns dirão que foi o século da liberação sexual. Outros que foi o século, não da repressão, mas da opressão sexual. Ambos terão razão.


Os comportamentos sexuais ficaram certamente mais livres. Na maior parte dos países ocidentais a lei hoje proíbe muito pouco: a violência contra menor de idade, o estupro, às vezes a prostituição e só. A medicina do século 19 travara uma guerra contra as condutas sexuais que não servissem à reprodução. Culminou com a monumental "Psychopathia Sexualis", de Krafft-Ebing, traduzida em todas as línguas, sabiamente guardada nas estantes mais inacessíveis das casas burguesas. Este catálogo tragicômico dos desvios de conduta sexual só serviu, neste século, para inspirar a masturbação de legiões de jovens ocidentais que nela aprenderam o que podia ser sexo.


A tentativa de patologizar as condutas sexuais veio morrer na praia da psicanálise. Mas morreu como? Foi uma troca pela qual a sexualidade se encontrou liberada para uma dupla condição: de se tornar, por um lado, objeto infinito de nossas preocupações e, por outro lado, uma obrigação. Começamos, assim, a trocar a repressão das condutas com a opressão produzida pelo imperativo de falar de sexo e sobretudo de sermos sexualmente felizes e satisfeitos. O verdadeiro doente sexual deste fim de século não é nem o impotente nem a frígida; a eles perdoa-se com comiseração. O verdadeiro doente sexual é o desinteressado.


A revolução sexual foi uma exacerbada necessidade de falar do sexo e de colocá-lo no centro de nossas vidas. Ou ainda uma idealização da sexualidade como via régia para ser feliz e, por consequência, uma inédita valorização de qualquer prática que acarrete a esperança de satisfação maior. Isto facilitou a vida dos praticantes que puderam aos poucos sair do armário e seduzir novos adeptos, mas não mudou a vida sexual da maioria. Só impôs a todos um mandato de satisfação sexual: goze!


O retrato da sexualidade brasileira oferecido pela pesquisa do Datafolha confirma e se insere neste rápido diagnóstico da sexualidade ocidental no fim de século. Por exemplo, a maioria dos brasileiros parece topar a idéia que a principal função do sexo seja o prazer e não a reprodução. Resta que, com isso, o sexo se torna facilmente uma função obrigada do prazer. O que pode ser no mínimo incômodo.


Ginga
Um dado marcante da pesquisa é a discordância entre a opinião que os entrevistados têm de si e sua visão dos "brasileiros". "O brasileiro" é bem mais liberado sexualmente e interessado por sexo do que os brasileiros entrevistados.


A situação evoca singularmente minha adolescência na Itália: o país inteiro aparecia como um maníaco "latin lover", engomando cabelos para seduzir turistas austríacas, alemãs ou suecas que invadiam nossas praias na esperança de saborear o macho italiano.


As duas situações -Itália e Brasil- permitem uma explicação comum: as misérias históricas e sociais produzem uma dificuldade de identificação nacional. Portanto, torna-se bem-vindo, como modelo de identidade, o cartão-postal segundo o qual somos todos gingões, interessadíssimos por bunda, ou mulatas prestes a ser arpoadas na praia do Arpoador.


A defasagem entre exotismo sexual nacional e sexualidade vivida poderia, assim, ser colocada na conta do subdesenvolvimento: uma comunidade nacional pouco valorizada na praça global aceita com complacência qualquer imagem positiva. Frequentemente o que lhe é proposto é uma vinheta de desbunde que se origina em uma forma domesticada de racismo. Os outros nos concebem como seres animalescamente entregues a desejos ardentes ("trepa com eles/ elas que é bom e barato, mas não faz negócio que é outra história"). Assumimos este cartão-postal que passa a ser nossa própria imagem, porque -o sexo sendo um ideal global moderno- somos seduzidos pela ilusão de ocupar assim o lugar dos sonhos dos outros.


Em suma, a idealização sexual parece se distribuir geopoliticamente, obedecendo às facilidades do turismo sexual norte-sul mais do que ao espírito nacional dos prestigiados.


Mas não é só isso. De fato, é provável que, se a mesma bateria de questões fosse repetida em outros contextos nacionais e culturais, o resultado -embora talvez menos contrastado- seria o mesmo. Ou seja, os entrevistados se diriam menos interessados por sexo do que o grupo nacional ou cultural ao qual pertencem tomado coletivamente. Eles reconheceriam, assim, ao mesmo tempo sua realidade sexual, mas também a pregnância coletiva do ideal moderno de felicidade e satisfação sexual. A prova disso, por exemplo, está na inevitável associação da alegria da festa com o gozo sexual. Sem isso, a farra não tem graça e, logicamente, a farra acompanhada por esta obrigação perde graça. Os beijos de fim de noite na Oktoberfest têm o mesmo gosto de vômito de cerveja do que na praça Castro Alves.


Dois países
Na descrição de sua vida sexual efetiva, os brasileiros se revelam simpaticamente banais.
Mágica demonstração da sinceridade dos entrevistados, a duração das relações coloca todos de acordo: meia hora basta. A grandíssima maioria se diz satisfeita e está feliz com seu parceiro para quem dá nota alta. A metade acha bom uma vez por semana. Muitos praticam sexo oral e anal, mas não sempre, ou seja, não como fins em si. Pouquíssimos parecem precisar da ajuda de bebida, drogas, revista ou vídeo eróticos etc.


Surge da pesquisa a imagem de um país surpreendentemente conservador. Com exceção da masturbação e das relações antes de casar, que estão liberadas, a opinião dos brasileiros em matéria de homossexualismo, aborto, prostituição e virgindade é careta.
A isso se acrescenta que só uma minoria parece ter acesso a suas próprias fantasias e uma persistente maioria (silenciosa) responde à questão sobre as 14 práticas sexuais com um abstrato e árido "nunca fantasiou".


No entanto, uma leitura mais cuidadosa dos números revela um divórcio entre os entrevistados, segundo níveis de instrução e de renda. Não estou me referindo ao fato previsível de que as pessoas mais instruídas se mostrem mais esclarecidas e tolerantes. Bem mais interessante, os mais desfavorecidos parecem transar um pouco mais frequentemente, mas sem fantasia (papai-e-mamãe todo dia é a imagem caricatural -o que poderia explicar, aliás, a maior fertilidade). Os ricos e instruídos, ao contrário, talvez transem menos, mas fantasiam bem mais.


Ao que parece, nossos filhos estão na escola para perder a inocência reprodutiva e parte de sua potência sexual natural, tornando-se masturbadores cheios de idéias. É a degenerescência das classes médias e altas. A ela responde o pobre e ignorante, próximo do bom selvagem, fiel à fisiologia, que prefere coito sem rendas e bordados.


Por esta diferença estereotipada, confirma-se que o imperativo que coloca o sexo no centro de nossas vidas e preocupações como fonte obrigatória de nossa satisfação é eminentemente cultural. Quanto mais somos expostos à cultura de massa (o que é o caso das classes médias e altas), tanto mais o sexo importa para nós.


Ora, por um lado, quem procura sua felicidade no sexo estará disposto a testar modalidades originais. Por outro lado -e mais importante-, a cultura é o reservatório das fantasias sexuais. A diferença apontada pela pesquisa justamente mostra que a configuração de uma fantasia sexual não é tanto o efeito de circunstâncias de vida. As fantasias são sugeridas pelo imaginário cultural. Elas são induzidas. A variedade de suas formas e sua relevância na vida sexual crescem com a cultura do sujeito.


Tirem disso as consequências que quiserem segundo seu ponto de vista moral -desde um pedido de censura até a defesa da Internet em cada sala de aula.


Santo Graal
Como era previsível, as mulheres gozam menos do que os homens (só 31% têm orgasmo garantido). Desde os anos 70, com o famoso "relatório Hite" (Shere Hite, "The Hite Report - A Nationwide Study of Female Sexuality", MacMillan, Nova York, 1976), o imperativo social de fazer gozar as mulheres é palavra de ordem.


O gozo feminino tornou-se o Santo Graal moderno. Todo mundo procura, ninguém sabe onde está e, mesmo quando acontece, a gente se pergunta se foi mesmo. As mulheres, em suma, são as mais oprimidas pela obrigação de gozar e, enfim, se sentir satisfeitas. Pois, por elas não disporem de ejaculações que confirmem o fato, o gozo das mulheres foi aparentemente escolhido como símbolo social do gozo ao qual todos aspiramos e que ainda nós não conseguimos. Uma carga pesada.

Nota: Com relação às 14 práticas sexuais, mulheres parecem fantasiar menos do que homens. Salvo no caso de fazer sexo com dois ou mais homens, em que são majoritárias. O psicanalista deve assinalar um detalhe que a pesquisa necessariamente negligencia: as mulheres não fantasiam menos, mas de uma maneira diferente que dificilmente se enquadra nos enunciados de cenários (sejam 14 ou mil).

segunda-feira, 3 de novembro de 1997

Um silêncio barulhento

Cada escritor que se esconde deve ter suas razões para evitar a praça pública.

Mas, atrás de fobias, timidez ou filosofias orientais, também há um drama que é próprio do nosso mundo, do jeito que somos. A escolha de Salinger, Pynchon e outros eremitas aponta para uma dificuldade de nossa cultura.

No mundo ocidental moderno, apesar de restos patrimonialistas e aristocratas, se presume e se espera que cada um faça suas provas. O passado prescreve muito pouco: para decidir nossa miséria ou excelência, importam os atos dos quais nos revelaremos capazes.

Esta liberdade obrigatória não é um mar de rosas. Pois quem decide qual é o valor dos atos dos quais seremos ou não capazes? Não existem critérios canônicos como aqueles que diferenciavam a gente por nascimento. Só existe o tribunal permanente e misterioso da opinião pública. Se nossos atos ou nossas produções caem na graça do público, valem (e nós subimos). Sem isso, eles não têm valor (e nós descemos). A sociedade moderna, em suma, se diferencia segundo a reputação que cada um consegue conquistar.

Seria natural presumir, no entanto, que haja alguma relação entre nossa reputação e a qualidade de nossos atos. Por exemplo, ser um médico de valor significa ser reputado bom médico, mas isso em princípio acontece quando curamos mais pacientes do que matamos. Se formos romancistas reputados, se presume que nossos escritos tenham a qualidade intrínseca de interessar ou divertir os leitores etc.

Ora, apesar dessa presunção, um sistema social baseado na reputação acaba se transformando em um sistema de "celebrity". A expressão inglesa faz uma distinção interessante entre fama ou reputação, de um lado, e "celebrity", do outro. A fama é merecida, depende da qualidade de nossos atos; a "celebrity" pode ser puro efeito do favor público sem que o sujeito célebre e seus atos eventuais tenham outro valor do que a capacidade de produzir celebridade.

Afinal, se o alvo é a fama, os atos de um indivíduo não precisam de outra qualidade do que a capacidade de torná-lo famoso. Portanto, para a pessoa de sucesso (grande ou pequeno), permanece uma questão: será que meu valor social é efeito de minha habilidade e competência ou então é apenas a consequência de uma notoriedade abstrata e portanto não merecida?
Em uma sociedade diferenciada pela reputação, ninguém está assegurado da legitimidade de seu sucesso. A dúvida de não valer nada nos espreita, desde que seja possível levar fama sem motivo outro do que a própria sede de fama. Esta dificuldade leva a maioria a procurar incessantemente uma prova a mais de seu valor, ou seja, mais reputação (o que, evidentemente, não resolve em nada a dúvida).

Também pode levar alguns a tentar demonstrar (sobretudo para si mesmo) que seu sucesso e sua reputação são efeitos da qualidade de suas produções. Como? Por exemplo, pelo anonimato: se o autor ficar afastado do olhar público, seu sucesso deveria então depender só do interesse despertado por seus produtos. O escritor parece aqui privilegiado, pois ele não precisa aparecer. Ora, infelizmente ou não, nesta sociedade, os caminhos para conseguir valor sem celebridade são precários.
Thomas Pynchon conseguiu se tornar um romancista famoso sem nunca mostrar a cara. Há até quem suspeite que ele seja um pseudônimo. Pessoalmente, o que ele escreve me entusiasma. Mas será que seu anonimato garante (para ele mesmo) a qualidade intrínseca de seus escritos? Não está nada certo, pois poderia se pensar que sua vistosa ausência é justamente o que o torna famoso e portanto desperta interesse em seus romances.

Nos anos sessenta, um jovem autor frustrado, na Itália, quis demonstrar o arbitrário dos comitês editoriais: ele transcreveu e propôs a uma grande editora um romance de Thomas Mann. O texto foi recusado com uma série de críticas. O episódio demonstrava a incompetência dos redatores e queria denunciar o sistema de "celebrity": uma vez anônimo, Mann era recusado. Vice-versa: Thomas Mann então estava no catálogo da editora talvez não porque a gente gostasse de lê-lo, mas porque era Thomas Mann e fazia parte do cânone. Um outro caso de "celebrity"?

Salinger mostrou sua cara na época do sucesso de "O Apanhador no Campo de Centeio". Mas desde então se escondeu e, na verdade, parou até de mostrar serviço. Presume-se que esteja escrevendo ou pensando coisas incríveis. Veja-se a contradição na qual está enroscado. Se escreve, publica e tem sucesso, o favor encontrado por seus textos lhe parecerá decidido por sua fama. Portanto seu valor pessoal dependerá de sua notoriedade e não da qualidade de seus escritos. Se não escreve e publica, também não há produtos que possam ser julgados. Mas, quanto menos ele se mostra e escreve, tanto mais seu silêncio se torna barulhento: acaba produzindo uma notoriedade abstrata.

Essas contradições levam à constatação do que, nesta altura, tanto Pynchon quanto Salinger devam fazer: não têm como evadir das condições da cultura da qual somos filhos. Quanto mais eles se escondem tanto mais ficam famosos. Será que Pynchon seria objeto do mesmo culto se a gente conhecesse sua cara e endereço? Será que Salinger seria objeto da atenção da "Esquire" e da Ilustrada se não vivesse atrás de um muro?

Paradoxalmente, o esforço deliberado de se subtrair aos charmes da celebridade acaba produzindo celebridade. Conscientemente ou não, é esta uma regra social que todos conhecemos. Para ser perseguido por paparazzi é melhor sair pela porta traseira do Hotel Ritz em Paris do que pela frente. É bom também se indignar periodicamente contra o sistema de celebridade e, quem sabe, dar um soco em um fotógrafo ou quebrar um gravador ou dois.

Ou então soltar detalhes íntimos contra a difusão dos quais será bom protestar (confira a recente biografia de Lady Di escrita por Morton graças a revelações feitas por ela mesma). Ou ainda, como Salinger, dirigir carros furiosos na saída de sua casa. Escritores, produtores, artistas, sujeitos contemporâneos, ainda um esforço para aceitar as regras deste nosso (corajoso ou não) mundo novo! Até porque não têm muita saída, a não ser pela eventualidade de se tornar uma "celebrity" por recusar o sistema da celebridade.

domingo, 2 de novembro de 1997

Restos da festa

Caetano narra um momento privilegiado do tropicalismo, antes de ele se tornar discurso dominante e complacente

Naqueles anos, de 85 a 89 _quando ainda não deixara a França e viajava regularmente entre Paris e o Brasil_, comprei pela primeira vez um walkman. Só usava na viagem, de ida e de volta, porque não queria falar com ninguém: partia, fervendo de saudade por um amor que ainda dura, e voltava a cada vez para o Brasil, feliz demais para bater papo. Caetano e alguns outros viajavam comigo e cantavam umas 11 horas, sem parar.

Eles, sem dúvida _mágica do tropicalismo_, representavam para mim o Brasil: a mulher que eu amava e queria, o cheiro de álcool na saída do aeroporto, a umidade poluída do ar de São Paulo e, enfim _em metáforas tão surpreendentes quanto a famosa máquina de costura sobre uma mesa cirúrgica_, as hortênsias de Gramado em uma tarde barulhenta na Praça da Sé, ou ainda a usina de Itaipu em uma manhã fria e ensolarada no cerrado.

Não tinha pena do padre Sardinha _de qualquer forma, com um nome assim, não era para ele se aventurar em terra antropófaga. Ao contrário, vindo ao Brasil, era isso mesmo que eu esperava: ser canibalizado. Ou seja, que se comesse o melhor de mim. Havia uma esperança a mais: que no processo de digestão eu mesmo me transformasse. E deu certo, ao ponto de que, hoje, eu escreveria outro livro de impressões brasileiras. Um livro menos organizado ao redor da exigência européia de um pai ordeiro que nos sustente.

Resta que, quando escrevi "Hello Brasil!", em 1991, dei um esporro no antropofagismo vulgar e (indiretamente, portanto) no próprio tropicalismo. Por quê?

Percebia, sobretudo nos meios psicanalíticos, que a parte do corpo que os canibais queriam comer eram sobretudo os chapéus. Segundo a carta de Pero Vaz de Caminha, o primeiro contato entre os indígenas e Nicolau Coelho foi a troca de um chapéu por um cocar. O cocar _destituído de todo valor simbólico_ se tornou brincadeira exótica para o português. E o chapéu? O índio assim premiado (e ilusoriamente convencido de ser oficial da marinha portuguesa), quem sabe servisse de lugar-tenente entre seus pares, mas certamente era objeto de irrisão da parte de seus novos donos. Pelado e de chapéu, desvirtuado, ele podia seguir dançando, cedendo suas penas (e outros bens) como suvenires: ele leria o sorriso de Coelho como marca de simpatia e aprovação. Mas de fato seria feito de palhaço. É isso que acontece cada vez que nos apropriamos de uma imagem de nós mesmos proposta pelos gostos exóticos dos outros. Em um livro recente, aliás ("Fantasia de Brasil", Ed. Escuta), Otavio Souza mostra como o olhar exótico talvez seja uma forma cordial de racismo.

Italiano, nascido logo após a guerra, tenho uma certa experiência dos efeitos e do significado de um exotismo nacional. Nos anos 50 e 60, ser italiano não era fácil. Por um lado, a unidade do país não era coisa feita (pelo jeito ainda não é, aliás). Por outro lado, havia a vergonha do fascismo e da guerra.

A Itália da minha infância era também pobre _Plano Marshall à parte. Fora os monumentos perenes de Roma, da Renascença, do glorioso barroco etc., que todos vinham visitar, o que era ser italiano? Vivi, com muitos outros, o sonho internacional e socialista como via de saída, de abertura ao mundo. Que, aliás, o internacionalismo proletário acabasse se realizando como globalização capitalista, eis o que já estava previsto: pois, se nossa cabeça estava com Gramsci e Togliatti, o coração batia do outro lado do Atlântico. O mundo para o qual se tratava de se abrir eram Faulkner, Hemingway, Steinbeck, o jazz etc. _todos proibidos durante o fascismo.

Nesta época, qualquer forma de nacionalismo era evidentemente suspeita, pelo passado recente. No entanto, algo surgiu, uma espécie de consciência ou de espelho nacional que é a comédia italiana dos anos 60. Spaghetti, mandolino, pizza, malandragem, dentes cariados, ''latin lover'' engomado, miséria com sol, e vai cantando.

Nunca achei engraçado. Dava-me um ódio que quase me impediu de apreciar o próprio Fellini. Eu não era, não queria ser uma personagem de Lina Wertmüller. O "italianismo" _chamemos ele assim_ daquela época me parecia uma maneira de tapar o sol com uma caricatura. Não podendo ou sabendo resolver o atraso, a solução era achar graça.

Por isso, vindo ao Brasil, queria amá-lo por suas histórias e sua história, não pelo cartão-postal. Este me parecia perigosamente próximo do folder de uma agência de viagem para aposentados alemães. Eles gostam do Brasil. Gostam tanto que preferem que continue igual, com as meninas baratas na praia do Recife.

Qualquer país de origem colonial é inevitavelmente herdeiro do sonho de seus colonizadores. No caso da América Latina _e especificamente do Brasil_ era o sonho de reencontrar o Paraíso terrestre. Não estranha que a idéia de uma utopia tropical faça desde então parte da sensibilidade brasileira. Também isso não exclui que _justamente por um gesto antropofágico_ a miragem do colonizador seja apropriada e se transforme em uma visão, um projeto e um estilo "nacionais".

Caetano narra um momento privilegiado e festivo, quando isso aconteceu.
Mas, para um viajante dos anos 80 como eu, sobravam os restos do tropicalismo: identificações triviais aos estereótipos da brasileiridade, como ele mesmo diz: "turbantes de bananas". Talvez tenha acontecido no Brasil algo análogo ao que aconteceu na Itália entre o neo-realismo de De Sica e as palhaçadas de Wertmüller: a imagem se tornou caricatura e a caricatura se tornou discurso dominante e complacente.

Nos anos 80, então, cada resto tropical me parecia corresponder a uma negação ufanista das contradições mais dolorosas. Por exemplo: somos "cordiais", portanto não é preciso ter carteira assinada e direitos trabalhistas, está tudo no coração, na "palavra" e no carinho. Somos uma "democracia racial" por milagre miscigenatório, portanto não precisamos de leis que possam proteger contra a discriminação. Somos malandros, portanto f...-se a coisa pública. Eles são felizes com uma nega, um fusca e um violão, portanto para que lhes aumentaria o salário? Afinal (Da Matta ''dixit'') gostamos de praia, samba e futebol, portanto somos brasileiros: com esta garantia, no que precisaríamos de qualquer outro espírito comunitário ou solidário? Etc.

Hoje moro nos Estados Unidos. A comunidade brasileira daqui é das mais severas com o que chamei de os restos do tropicalismo. Parece até, às vezes, que tenham emigrado para fugir deles. No entanto, a saudade se mata e se alimenta escutando a música que o tropicalismo inventou. Sem contradição.

domingo, 28 de setembro de 1997

'O sexual não é patológico'

"O sexo é sempre virtual porque, apesar da presença do parceiro, cada um está fundamentalmente na sua própria fantasia e procura fazê-la funcionar com o outro que está um pouco na dele. O sexo é uma espécie de lugar em que existem duas ou mais pessoas numa cama e, evidentemente, a fantasia sobrevoando.

Quando falo de fantasia sexual, falo de fantasia que se realiza sexualmente. O que fica no campo do sexual não deve ser jamais considerado como patológico. Estupro é sem dúvida um crime penal, mas não uma patologia sexual.

No começo do século 19 havia um hospício famoso na França, em que ficou internado o Marquês de Sade. Ele efetivamente tinha algumas idéias estranhas sobre a sexualidade, mas ele não era louco, não tinha razão alguma de estar lá. Apesar de tudo que a medicina do século 19 tentou articular para tornar patológicas algumas condutas sexuais, a única posição correta é considerar que as variantes do desejo sexual não fazem parte da loucura e, de certa forma, nunca são patológicas, a não ser quando isso envolve sofrimento das partes que se relacionam.
Existe uma patologia, por exemplo, na medida em que as pessoas podem sofrer por não conseguir ter a sexualidade que querem. Isso é terrível, mas não existe uma patologia da sexualidade.

Começamos a colocar os loucos nos hospícios uma vez que nosso sistema de referência passou a ser a razão. A partir do momento em que, no Ocidente, a razão passou a ser a especificidade do homem, era possível tornar patológica qualquer coisa que se apresentasse como desrazão.
Passados 200 ou 300 anos, a idéia que se manteve é que é possível socializar os loucos, e os hospícios foram se abrindo, o que, às vezes, eu acho absolutamente preferível. Em alguma medida, a loucura nos dá medo, ninguém tem a garantia de não ficar louco."

domingo, 7 de setembro de 1997

Morte preservou imagem virgem de Diana

Segundo uma antiga distinção, os soberanos têm dois corpos. Um corpo que expressa seu poder, majestoso, capaz de se reproduzir, mas regrado pelas exigências do protocolo. E um outro corpo, como todo mundo, atrapalhado pelas necessidades fisiológicas e pelas paixões.

Com esta dualidade, entretemos uma relação complicada e ambivalente. Por exemplo, preferimos sem dúvida que, no exercício do poder, o corpo Real prevaleça: ninguém gosta que o rei acabe destinando o dinheiro pretensamente público a satisfazer seus desejos carnais.
Por outro lado, o corpo das paixões é mais humano, conhecemos melhor e também presumimos que seja o ponto fraco do soberano, quem sabe o lado por onde seria mais fácil abrandá-lo e conseguir que nos escute.

Aqui as mulheres do soberano encontram uma função. Não as amantes, as quais certamente lidam com seu corpo carnal e que querem gozar dele com exclusividade. Mas as madres e as esposas. Elas conhecem seus pontos fracos: o sinal escondido, o eritema, o furúnculo, a angústia, etc. Elas são, desde sempre, as que podem interceder para nós.

Reza-se sem dúvida mais para a Madonna do que para o Pai Eterno. Isso porque o Pai Eterno não casou. De fato, no caso de soberanos terrenos, temos uma certa desconfiança das mães, provavelmente porque gostaríamos que o soberano fosse um adulto autônomo. Resta, por consequência, recorrer à esposa.

Não é por acaso que a função das boas primeiras damas é de ser caritativas: beijar crianças, distribuir cestas básicas. Elas demonstram, por via indireta, que o soberano ainda é humano. E prometem continuar murmurando para a real orelha, as histórias de nossas necessidades.
As melhores são as que vêm de nossos renques, pois, se não perderem a cabeça, lembrarão seu passado e nossas misérias.

Foi Evita que seduziu Perón ou foi Perón que, para governar, precisava de uma santa para quem os descamisados rezassem? Diana Spencer quis se tornar princesa, ou foi Charles Windsor que precisou reaproximar a casa real do povo? (Diana, aliás, foi apresentada como mais popular do que suas origens verdadeiras permitiriam).

O percurso de Diana foi perfeito. Alimentou nossos sonhos com sua ''realeza'', mas nunca esqueceu da gente. Quando se afastou de Charles, como mãe dos herdeiros, guardou toda a influência de uma boa intercessora. Por outro lado, deixou Camilla na incômoda posição da amante que cobiça o real Tampax e subiu ao firmamento de quem teve acesso carnal ao rei, mas não por isso gozou.

Enfim, morreu no momento certo, antes que um eventual casamento feliz com Dodi Fayad lhe devolvesse um sorriso satisfeito. É verdade que a santidade de Jackie Kennedy sobreviveu a seu casamento com um marinheiro grego. Talvez a de Diana sobrevivesse ao casamento com o empreendedor árabe. De qualquer forma, morrendo, ela se preservou como mãe e como virgem (por não ter gozado). Avançou substancialmente seu processo de beatificação.

A fada globalização se encarregou do resto: os soberanos ainda são nacionais, as intercessoras são internacionais. Meu filho Max, chegando de Paris a Nova York neste último domingo, foi interpelado no elevador. À vista do adesivo da Air France sobre sua mala, lhe perguntaram, em tom de luto: ''Como está a coisa em Paris?'' Mais tarde, foi sentar numa praça. Tentou bater papo com um mendigo. ''Oi, tudo bem?''. Não, disse o mendigo. ''Morreu minha princesa.''

segunda-feira, 25 de agosto de 1997

Nostalgia de quê?

No Festival de 1959, Joan Baez tinha apenas 18 anos. Seu nome nem constava no programa. Foi convidada a cantar duas músicas por Bob Gibson: o público e os críticos presentes se apaixonaram.

Não faltavam, no folk americano, musas com voz de soprano e longos cabelos, mas Baez tinha o espírito da época que espreitava. Identificou-se com o movimento dos direitos civis, marchou com Martin Luther King, lutou contra a Guerra do Vietnã. Tornou-se o ícone de uma geração.
A voz de Joan Baez _hoje com 56 anos_ continua a mesma. Mas o clima mudou.

Em uma entrevista ao jornal "Boston Globe" no começo do mês, comentando sobre sua recente turnê na Romênia, ela dizia: "Não canto mais 'We Shall Overcome' nos EUA. Aqui é uma coisa puramente nostálgica. "

A primeira vez que vi Joan Baez foi 28 anos atrás, acredito, no Madison Square Garden. Na época não havia telões e eu só conseguira comprar o ingresso mais barato. Baez, miúda, magrinha, era uma mancha de cabelos pretos de onde emanava uma voz extraordinária, forte, redonda e cheia.

Dava vontade de cantar junto e de pegar os vizinhos pelas mãos. Acabou assim mesmo, com "We Shall Overcome" cantado por todos, de mãos dadas e levantadas.

Baez jogava duro. Naquela noite, falou de seu marido, David, que estava em apuros por ter recusado ir para o Vietnã, instigou os presentes a queimar seus documentos militares, cantou uma música dos manifestantes dos direitos civis em Birmingham (Alabama) e dedicou a Ronald Reagan _então governadora da Califórnia_ uma música que começava: "É ele, o homem que entrega o leite cada manhã, é o chefe da Ku Klux Klan...".

Mas ela cantava "bonito". Era a face de nosso descontentamento que até nossos pais deviam gostar: melódica. Por mais que a mensagem fosse rebelde, ela era radiosa, nunca sinistra. Tudo era, ou parecia, tão claro. A gente era contra todas as guerras.

Contra o racismo, a racionalidade tecnológica, a divisão do trabalho, a alienação. Contra a repressão sexual e o machismo. Pela mágica de sua voz, mesmo nossa raiva era um bom sentimento.

Por isso, aliás, ela encarnou o espírito do folk: melodioso e, por mais sofrimento que expresse, acaricia a alma com um pano de fundo amoroso. Não foi estranho revê-la agora, como matriarca tranquila e segura de uma geração.

Cantou, com Dar Williams, "You're Aging Well" (você está envelhecendo bem) e produziu no público um riso estranho: os baby-boomers deram certo.

Com a música de Joan Baez, tive um outro encontro, diferente. Bem na época em que cantei "We Shall Overcome" no Med em Nova York, eu morava em Roma.

Tinha um amigo amigo californiano, Joshua Harding, aspirante a ator, rebelde e perdido rebento de uma família de artistas. Josh morreu aos 20 anos, durante uma indiada em Big Sur, Califórnia.

No meio da noite, carregado de pílulas de Nembutal corrigidas por simpamina e LSD, foi surfar. Encontraram seu corpo no dia seguinte, afogado na praia. Ele deslizara para a outra face dos anos 60, a face Janis Joplin, a face que perdeu o contato e saiu pela tangente.

O ano passado viajei pela Califórnia de carro. Dirigindo-me a San Francisco pela Rota 101, parei em Big Sur, onde Josh tinha surfado suas últimas ondas.

Subi de carro até em cima do promontório, abri vidros e teto e, a pleno volume, deixei tocar, para ele e para mim, "Amazing Grace", na versão _naturalmente_ de Joan Baez. Parecia-me a música certa para uma despedida que devolvesse sentido à sua morte e apaziguasse a memória.
Os mortos e feridos dos anos 60 não se contaram nos campos de batalha. Afinal, as vítimas de enfrentamentos (para ficar na América: os estudantes da Kent University, os manifestantes de Birmingham, o próprio Martin Luther King) não foram os únicos nem os principais heróis.
Os heróis dessa revolução foram aqueles que se perderam no caminho, aqueles chorados por Allen Ginsberg em seu "Howl": "Vi os melhores cérebros de minha geração destruídos pela loucura,... Arrastando-se pelas ruas negras na procura de uma agulha raivosa..."

Em Newport-97, escutando Baez, olho ao redor de mim e me espelho: há jovens, sim, mas a idade média é acima dos 30. O ambiente, apesar da multidão _10 mil no último dia e 7.000 no segundo_ é familiar, tranquilo.

Somos sobreviventes bem adaptados. As conversas não mentem: "Estava em Boston para uma reunião de negócios, li no jornal e não resisti, não vejo Baez desde 1971..". "Deixei meu barco no Maine e trouxe as crianças...".

Ben & Jerry, patrocinadores do evento e empresários de sorvete (ótimo, aliás), explicam que o novo orçamento dos EUA favorece os militares e abusa das crianças. Muito bem, só não sei se nos anos 60, patrocinador e empresário teriam conseguido falar.
Ao redor do palco, flutuam no vento, como bandeiras suspensas, uma série de inscrições: "O business tem a responsabilidade de devolver para a comunidade", assinado Ben (de Ben & Jerry).

Quem discorda aqui? De fato, as palavras de ordem de uma geração rebelde se tornaram leis trabalhistas e penais ou _no mínimo_ virtudes cívicas básicas. Isso não é uma revolução bem-sucedida? Talvez _poderia-se dizer_ a mais bem sucedida da história e ainda avançando.
A massa de Woodstock acreditava mesmo no poder do pensamento. E, antes da famosa chuva que transformou o festival em um mar de lama, todo o mundo ficou gritando: "No rain!". Choveu igual.

Em Newport-97, a chuva parou justo com a chegada de Joan Baez. Mas, no fim, ninguém foi embora cantando. Não que eu estivesse a fim. Não teria cantado mesmo. Fiquei sábio (irônico) logo: nem todas as guerras me parecem erradas, nem toda utopia me parece bem-vinda. Só fica uma estranha sensação, que diz assim: não era bem isso que a gente queria. Mas, então, o que era?
(CC)

domingo, 10 de agosto de 1997

Luxo à brasileira

Diferença crucial com os EUA não é religiosa, mas de modos de individualismo
Livro de Harrison contraria a ideologia multiculturalista dominante, para a qual diferenças culturais devem ser respeitadas


A ''questão hispânica'' nos Estados Unidos está na ordem do dia. É uma questão dupla. Externa: quais alianças privilegiadas, políticas e econômicas, estabelecer com a América Latina? Interna: qual o destino da imigração hispânica, que cresce desde os anos 70, e no próximo século ultrapassará os negros, podendo chegar, em 2050, a 26% da população americana?

A questão dá lugar a um sonho, ou a um pesadelo. O sonho é um caminho asfaltado com nobres sentimentos. A idéia de fundo é que paz e prosperidade trazidas por democracia e livre mercado transformarão os hispânicos em respeitáveis cidadãos americanos e seus países em honrosos parceiros de uma nova comunidade.

O pesadelo é mais perto da realidade. Ele diz que, externamente, as nações sul-americanas são parceiros pouco confiáveis, democracias e economias instáveis, corruptas e às vezes infiltradas pelo narcotráfico. O pesadelo diz também que, internamente, a imigração hispânica das últimas décadas é aquela que pior se integra na sociedade americana, a que mais recorre à assistência pública e transgride as leis etc.

No entanto, a idéia da Pan-América continua viva. Em 1961, Kennedy assinou com os chefes de Estado latino-americanos a Aliança para o Progresso. Três anos atrás, o projeto pan-americano se consolidou quando FHC e Clinton assinaram com os outros, de novo, uma aliança para o desenvolvimento e a prosperidade comuns.

Neste contexto, Lawrence Harrison argumenta que democracia e livre mercado são ótimos para todos, mas não suficientes para ultrapassar as diferenças culturais que nos separam. Tem toda razão.

A globalização é um projeto comportamentalista. Aposta-se que, modificando o comportamento político e econômico das pessoas, elas acabem se transformando também culturalmente. Harrison afirma que a especificidade da cultura latino-americana produziu nosso precário desenvolvimento. Portanto, ele conclui, para que seja possível um futuro de prosperidade pan-americana, é necessário que haja, na América Latina, uma mudança cultural (e não só política e econômica). Sem isto a América Latina está impedida por sua cultura. E os imigrantes latino-americanos seguem trazendo consigo um capital cultural negativo que dificulta e atrasa sua inserção na sociedade americana.

Pessoalmente, concordo com ambas estas afirmações, as quais indignam os norte-americanos, porque implicam uma declaração de inferioridade da cultura latina em relação à norte-americana. Como? Simples: o ideal de progresso e prosperidade é inquestionável na cultura norte-americana, portanto uma cultura menos performática deste ponto de vista é uma cultura inferior. Ora, a ideologia multiculturalista dominante pensa que as culturas devem ser respeitadas em suas diferenças, mas não autoriza nenhuma hierarquia entre elas.

Harrison não tem simpatia pelo multiculturalismo. Prefere a representação da sociedade norte-americana como ''melting pot'', onde as diferenças étnicas e culturais devem vir se integrar em um projeto comunitário. De novo, concordo: é difícil imaginar uma nação sem um sentimento de destino comum.

Duas observações merecem ser feitas. Primeiro, atrás do nome América está uma série de traços compartilhados por Norte e Sul, os quais poderiam constituir denominadores comuns.
Segundo, Harrison apenas menciona um fato decisivo no fracasso da integração hispânica nos EUA. A grande onda migratória latina começou nos anos 60, na época em que a consciência norte-americana atravessava uma crise inédita. Torturada pela culpa em relação aos índios e negros (para não falar do Vietnã), a cultura americana não parou desde então de se menosprezar, encorajando seus imigrantes a desconfiar dos valores americanos. Há mais: o movimento dos direitos civis teve o efeito de produzir, sobretudo na população afro-americana, uma atitude de reivindicação frente ao Estado e à nação. Ora, o tradicional estadismo latino pegou esta carona, auxiliado pela confusão produzida pela culpa norte-americana.

Conclusão: os hispânicos foram a única onda migratória a quem foi proposta (e que escolheu) uma identificação com os negros. Convidados, por exemplo, a considerar o Estado como uma teta, foram afastados de um dos valores americanos essenciais: ''self-reliance'', contar consigo mesmo. Valor do qual sua cultura já os afastava.

O perfume de ousadia que exala do livro é sem grande efeito para o leitor brasileiro. Cansamos de saber que nossas raízes históricas e culturais (colonização lusitana, escravatura) nos reservam um ingresso hesitante na modernidade. Mas não consideramos que progresso e prosperidade sejam valores absolutos. Podemos lidar com nosso ''arcaísmo'' com carinho, no estilo Roberto DaMatta, sem considerarmo-nos inferiores.

Ora, ignorando os clássicos da sociologia nacional, Harrison parece pensar que o Brasil tivesse como única explicação de seu atraso a Teoria da Dependência, assim resumida: é tudo culpa dos norte-americanos. Harrison acha que a Teoria da Dependência _uma espécie de doença infantil da América Latina_ escondeu aos latino-americanos o peso de sua herança cultural.
Ora, FHC e Enzo Faletto podiam acreditar que os males da América Latina fossem devidos ao então proverbial imperialismo ianque. Mas eram ambos cultos demais para não ter uma idéia dos fatores propriamente culturais também em jogo.

Resumindo: o Brasil teve um crescimento econômico assustador durante 20 anos e tem enfim instituições democráticas, mas não por isso realiza as condições mínimas de igualdade e comunidade de uma sociedade moderna. É culpa dos norte-americanos? Não. Então é uma questão cultural, ele conclui. Obrigado, já sabíamos. Vamos ver então qual é a dita diferença cultural. É aqui que o livro se revela tragicamente fraco.

Por um lado, Harrison _embora consagrando um capítulo a cada uma das grandes nações da América do Sul_ propõe substancialmente uma distinção monolítica. Há a América anglo-saxônica (EUA e Canadá), de um lado, e a América ibérica, de outro, ponto. Nenhuma consideração sobre as diferenças entre colonização hispânica e lusitana nem sobre os diferentes processos de descolonização e independência que criaram as nações sul-americanas. Sérgio Buarque, libera-nos!

Por outro lado, Harrison descreve a oposição cultural entre as duas Américas com um serrote elétrico. Um serrote weberiano. Ele pega Max Weber e simplifica ao osso uma idéia só: o protestantismo produziu prosperidade e progresso, o catolicismo é um atraso. Ele chega a afirmar que nossa esperança de progresso é a difusão do protestantismo na América Latina. Entraremos na modernidade graças ao bispo Macedo. Nestas condições, talvez fosse melhor ficar no atraso.

Max Weber, lendo Harrison, teria uma séria dor de cabeça. Não é possível tomar uma religião como uma invariante histórica e considerar que o calvinismo genebrino do século 16 e 17 possa reproduzir os mesmos efeitos sociais no Brasil do século 20. Sem contar que nem do mesmo calvinismo se trata.

Além desta ingenuidade grave, a oposição entre protestantismo e catolicismo é hoje ideologicamente pouco consistente. O individualismo, que é a ideologia básica da modernidade, foi alimentado pelo cristianismo católico. Certo, a um dado momento, a camisa católica revelou-se um pouco apertada para a ideologia moderna que ela promoveu. Precisou de uma reforma que outorgasse ao indivíduo a autonomia de interpretação do texto divino, uma ética do trabalho e das obras terrenas etc.

Apesar do papa, o catolicismo de hoje é de fato reformado: a maioria dos católicos, sem deixar sua igreja, adotam, por exemplo, uma autonomia ética.

Mais frustrante ainda: Max Weber _parcialmente e mal digerido_ é convocado sozinho. Talcott Parsons poderia ter sugerido a Harrison que, para entender uma diferença cultural, há outros fatores além da religião. Por exemplo, qual é a importância relativa de coletividade e indivíduo ou quais são os elementos que decidem o status em uma sociedade dada.

Werner Sombart (sobretudo ''Luxo e Capitalismo'', mas já a última parte do primeiro volume de ''Capitalismo Moderno'') lhe teria permitido entender a misteriosa permanência de desigualdades no Brasil. A modernidade começa, segundo Sombart, quando a posse e o uso de bens de luxo (e não as castas) determinam o status social. Ou seja, quando as diferenças sociais são quantitativas (quem tem mais e quem tem menos). Ora, a resistência do capitalismo brasileiro à distribuição das rendas e à abertura de um mercado interno se entende como uma maneira de manter diferenças qualitativas, reservando o acesso ao luxo para castas privilegiadas. Por este caminho, Harrison poderia descobrir que a diferença crucial não é de religião, mas entre o individualismo avançado norte-americano e uma sociedade em transição, ainda hierárquica e tradicional.

Enfim, Harrison esperneia contra a Teoria da Dependência que teria privado a América Latina do entendimento cultural de seu destino. Com isso, ele mesmo não percebe que talvez a Teoria da Dependência fosse a expressão de um traço essencial da cultura latino-americana. No estadismo ibérico, como ele afirma, o cidadão acredita que o Estado _e não ele mesmo_ deve resolver os problemas de sua vida. O simples complemento desta representação consiste em pensar que também o Estado (nacional ou outro) _e não o próprio cidadão_ é responsável pelos malogros.

Conclusão: o livro diz que os latino-americanos são culturalmente diferentes. Isso pode ser um problema para a Pan-América e para os EUA. E talvez seja um problema para a gente. Agora, sobre a diferença em questão, Harrison diz pouco que preste.