No Festival de 1959, Joan Baez tinha apenas 18 anos. Seu nome nem constava no programa. Foi convidada a cantar duas músicas por Bob Gibson: o público e os críticos presentes se apaixonaram.
Não faltavam, no folk americano, musas com voz de soprano e longos cabelos, mas Baez tinha o espírito da época que espreitava. Identificou-se com o movimento dos direitos civis, marchou com Martin Luther King, lutou contra a Guerra do Vietnã. Tornou-se o ícone de uma geração.
A voz de Joan Baez _hoje com 56 anos_ continua a mesma. Mas o clima mudou.
Em uma entrevista ao jornal "Boston Globe" no começo do mês, comentando sobre sua recente turnê na Romênia, ela dizia: "Não canto mais 'We Shall Overcome' nos EUA. Aqui é uma coisa puramente nostálgica. "
A primeira vez que vi Joan Baez foi 28 anos atrás, acredito, no Madison Square Garden. Na época não havia telões e eu só conseguira comprar o ingresso mais barato. Baez, miúda, magrinha, era uma mancha de cabelos pretos de onde emanava uma voz extraordinária, forte, redonda e cheia.
Dava vontade de cantar junto e de pegar os vizinhos pelas mãos. Acabou assim mesmo, com "We Shall Overcome" cantado por todos, de mãos dadas e levantadas.
Baez jogava duro. Naquela noite, falou de seu marido, David, que estava em apuros por ter recusado ir para o Vietnã, instigou os presentes a queimar seus documentos militares, cantou uma música dos manifestantes dos direitos civis em Birmingham (Alabama) e dedicou a Ronald Reagan _então governadora da Califórnia_ uma música que começava: "É ele, o homem que entrega o leite cada manhã, é o chefe da Ku Klux Klan...".
Mas ela cantava "bonito". Era a face de nosso descontentamento que até nossos pais deviam gostar: melódica. Por mais que a mensagem fosse rebelde, ela era radiosa, nunca sinistra. Tudo era, ou parecia, tão claro. A gente era contra todas as guerras.
Contra o racismo, a racionalidade tecnológica, a divisão do trabalho, a alienação. Contra a repressão sexual e o machismo. Pela mágica de sua voz, mesmo nossa raiva era um bom sentimento.
Por isso, aliás, ela encarnou o espírito do folk: melodioso e, por mais sofrimento que expresse, acaricia a alma com um pano de fundo amoroso. Não foi estranho revê-la agora, como matriarca tranquila e segura de uma geração.
Cantou, com Dar Williams, "You're Aging Well" (você está envelhecendo bem) e produziu no público um riso estranho: os baby-boomers deram certo.
Com a música de Joan Baez, tive um outro encontro, diferente. Bem na época em que cantei "We Shall Overcome" no Med em Nova York, eu morava em Roma.
Tinha um amigo amigo californiano, Joshua Harding, aspirante a ator, rebelde e perdido rebento de uma família de artistas. Josh morreu aos 20 anos, durante uma indiada em Big Sur, Califórnia.
No meio da noite, carregado de pílulas de Nembutal corrigidas por simpamina e LSD, foi surfar. Encontraram seu corpo no dia seguinte, afogado na praia. Ele deslizara para a outra face dos anos 60, a face Janis Joplin, a face que perdeu o contato e saiu pela tangente.
O ano passado viajei pela Califórnia de carro. Dirigindo-me a San Francisco pela Rota 101, parei em Big Sur, onde Josh tinha surfado suas últimas ondas.
Subi de carro até em cima do promontório, abri vidros e teto e, a pleno volume, deixei tocar, para ele e para mim, "Amazing Grace", na versão _naturalmente_ de Joan Baez. Parecia-me a música certa para uma despedida que devolvesse sentido à sua morte e apaziguasse a memória.
Os mortos e feridos dos anos 60 não se contaram nos campos de batalha. Afinal, as vítimas de enfrentamentos (para ficar na América: os estudantes da Kent University, os manifestantes de Birmingham, o próprio Martin Luther King) não foram os únicos nem os principais heróis.
Os heróis dessa revolução foram aqueles que se perderam no caminho, aqueles chorados por Allen Ginsberg em seu "Howl": "Vi os melhores cérebros de minha geração destruídos pela loucura,... Arrastando-se pelas ruas negras na procura de uma agulha raivosa..."
Em Newport-97, escutando Baez, olho ao redor de mim e me espelho: há jovens, sim, mas a idade média é acima dos 30. O ambiente, apesar da multidão _10 mil no último dia e 7.000 no segundo_ é familiar, tranquilo.
Somos sobreviventes bem adaptados. As conversas não mentem: "Estava em Boston para uma reunião de negócios, li no jornal e não resisti, não vejo Baez desde 1971..". "Deixei meu barco no Maine e trouxe as crianças...".
Ben & Jerry, patrocinadores do evento e empresários de sorvete (ótimo, aliás), explicam que o novo orçamento dos EUA favorece os militares e abusa das crianças. Muito bem, só não sei se nos anos 60, patrocinador e empresário teriam conseguido falar.
Ao redor do palco, flutuam no vento, como bandeiras suspensas, uma série de inscrições: "O business tem a responsabilidade de devolver para a comunidade", assinado Ben (de Ben & Jerry).
Quem discorda aqui? De fato, as palavras de ordem de uma geração rebelde se tornaram leis trabalhistas e penais ou _no mínimo_ virtudes cívicas básicas. Isso não é uma revolução bem-sucedida? Talvez _poderia-se dizer_ a mais bem sucedida da história e ainda avançando.
A massa de Woodstock acreditava mesmo no poder do pensamento. E, antes da famosa chuva que transformou o festival em um mar de lama, todo o mundo ficou gritando: "No rain!". Choveu igual.
Em Newport-97, a chuva parou justo com a chegada de Joan Baez. Mas, no fim, ninguém foi embora cantando. Não que eu estivesse a fim. Não teria cantado mesmo. Fiquei sábio (irônico) logo: nem todas as guerras me parecem erradas, nem toda utopia me parece bem-vinda. Só fica uma estranha sensação, que diz assim: não era bem isso que a gente queria. Mas, então, o que era?
(CC)
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