O aeroporto do Rio parecia uma praça de Roma num filme de Fellini: monges, freiras e padres por todos os lados, conversando numa Babel de línguas. Uma tropa de jovens argentinos, de camiseta azul e branco e com uma cruz no peito (ou nas costas?), cantava em coro alguma música, que eu não reconheci, mas de que Deus devia gostar à beça.
Outro grupo, na área de espera, misturava cantoria com batucada. Alguém rabugento poderia pensar: e se eu não estivesse a fim de ouvir?
Um pensamento idêntico me ocorreu à tarde, enquanto caminhava pela praia de São Conrado. Um carro passou por mim. Na verdade, não um carro, mas um som poderoso, veiculado por uma sucata dos anos 1980 e tocando rap-funk.
Os três jovens no veículo faziam um esforço considerável para parecer mal-encarados (seu jeito de "esquentar" as minas e intimidar os passeantes). Será que os jovens cantando no aeroporto, comparados com a gangue do carro, eram "angelicais"? Não, os dois grupos eram igualmente belicosos e desagradáveis; ambos queriam me obrigar a tocar a vida ao som da trilha deles.
Domingo, houve um arrastão por peregrinos na praia de Ipanema (foto na capa da Folha de segunda). Se eu estivesse na areia, tomando sol com caipirinha, teria detestado; talvez achasse melhor um arrastão tradicional, de celulares e carteiras.
Com isso, fiquei feliz, na segunda, ao saber que, no largo do Machado, bem onde peregrinos da Jornada Mundial da Juventude católica esperavam seu transporte, um grupo de mulheres dançava exibindo os seios. Os jovens peregrinos vaiaram.
Lembrei-me de que, nos meus anos de faculdade, em Genebra, um amigo, que morava perto de Plain palais, tinha adotado uma resposta sistemática aos missionários mórmons e testemunhas de Jeová que batiam à sua porta com frequência: ele sempre abria a porta completamente nu. E, se estivesse com a namorada, fazia questão que os dois abrissem a porta juntos. Provocação por provocação, acho a de meu amigo e das mulheres do largo do Machado mais engraçada.
Você acha essas atitudes infantis e um pouco primárias? Tudo bem, vamos falar de coisas primárias. O kit recebido pelos peregrinos inclui um "Manual de Bioética", de 75 páginas, produzido originalmente na França pela fundação Lejeune.
Como mostrou a reportagem de Fabio Brisolla na Folha de segunda, esse livrinho de "ética" é imperdível (confunde aborto com contracepção, propõe juízos de valor como verdades "científicas" etc.).
Para ter uma ideia da qualidade dos argumentos, na hora de atacar a reprodução assistida (pág. 35), o livrinho lembra que, em 2004, só na França, "havia cerca de 120 mil embriões congelados": essa frase é acompanhada pela imagem de um menino que treme de frio... Campanha do Agasalho para os embriões?
A edição brasileira contém um acréscimo sobre "A Teoria do Gênero", que eu mesmo não sei o que é. Também não sei decidir se o tal capítulo foi escrito mais com má-fé ou com ignorância --talvez com uma combinação das duas.
Na pág. 73, por exemplo, lemos: "Os adeptos da teoria do gênero [?] pretendem que, por um simples ato de vontade, poderíamos alterar a realidade do que somos, escolhendo a nossa identidade sexual: 'Eu não sou o corpo que tenho'." Mamma mia! Só para começar: descobrir-se um dia em desacordo com seu próprio corpo (que não tem nada a ver com "escolher" a identidade sexual) é uma experiência dramática e dolorosa, que merece, no mínimo, respeito.
O autor do livrinho me fez pensar no professor de religião de meu último ano de colégio, que, para contestar a teoria darwinista, declarou que ele daria um soco em quem lhe sugerisse que a mãe ou a avó dele eram macacas. A classe riu, e ele deve ter pensado que sua grosseria nos conquistara. Erro: naquele dia, a classe inteira se tornou darwinista.
Bom, para celebrar a vinda de papa Francisco, também li algo melhor, "Sobre o Céu e a Terra" (Paralela), diálogo entre dois líderes religiosos de Buenos Aires, papa Francisco (à época do diálogo ainda cardeal Bergoglio) e o rabino Skorka.
Ainda comentarei esse livro, mas, primeiro, preciso de um tempo para esquecer minha irritação com o paternalismo, que enfia um livrinho meio infame na goela dos peregrinos e reserva sua cara mais civilizada aos que sabem ler.