O extraordinário não é que um casal transe na escadaria, mas que tantos transem só em suas camas
Dois guardas notaram que o carro subia e descia com movimentos "suspeitos". Eles gritaram "Polícia!" e mandaram abrir. O casal, intimidado, obedeceu, revelando seus corpos nus ainda enroscados. Os guardas atuaram a ambos por atentado ao pudor.
Um ano depois, os jovens foram inocentados: o juiz reconheceu que eles só se mostraram porque os guardas mandaram abrir o carro --ninguém atentara ao pudor de ninguém.
Com amigos e amigas, decidimos zombar da polícia e dos cidadãos bem-pensantes (os quais, em cartas aos jornais, tinham manifestado sua indignação). Era de novo inverno; estacionávamos nossos carros, não de noite em lugares ermos, mas de dia, nas ruas mais frequentadas.
Assim que os vidros estivessem embaçados, era um exagero de sacudidas, de modo que ninguém duvidasse que, lá dentro, a gente fazia a festa. Infelizmente, nenhum guarda nunca bateu nos vidros de nossos carros trêmulos e protestatórios.
Pensei nessa história na sexta passada, quando li a ótima reportagem de Roberto de Oliveira, em "Cotidiano" (Folha, 7 de junho): uma inquilina do edifício Copan, glória de São Paulo, emprestou seus aposentos para um casal de amigos cariocas. Na noite do dia 27, o casal subiu pelo elevador até o último andar e se engajou nas escadas externas. Um segurança viu esse movimento pelas câmeras e foi atrás, até encontrar o casal no ato (sexual, claro).
O síndico do condomínio multou a inquilina (R$ 678) --por escolher "mal" seus amigos?-- e agora esbraveja que se tratou de um atentado ao pudor. Mas ao pudor de quem? Se o segurança (que imagino que seja maior de idade) "foi atrás", é porque estava afim de dar uma espiadinha, suponho"¦
Claro, haverá um carrancudo para perguntar: não podiam ir para seu apartamento e se deitar na cama? Pois é, não, não podiam. Ou melhor, podiam, mas deviam achar que seria muito mais chato do que transar com a vista de São Paulo, o ar frio, a sensação de estar fazendo algo inusitado, a fantasia de serem vistos de alguma janela do Terraço Itália e, enfim, o risco de serem surpreendidos pelo segurança do prédio, como aconteceu.
Somos um pouco diferentes dos outros mamíferos. O cheiro do sexo oposto não é suficiente para nos excitar; precisamos recorrer a fantasias sexuais --sem isso, nada ou pouco acontece. E, se você acha que não recorre a fantasia alguma, isso significa apenas que você não sabe a quais fantasias recorre.
O que é extraordinário não é que um casal transe nas escadas externas do Copan. O extraordinário é que tantas pessoas transem (ou digam que transam) sempre nas suas camas.
Essa é uma opinião excêntrica de psicanalista? Tomemos o caso do risco: dois grupos parecidos atravessam um precipício por pontes diferentes, um passa por uma sólida ponte de alvenaria, e o outro, por uma ponte de cordas. Na chegada do outro lado, quem está mais receptivo para sexo? Pois é, são os da ponte estilo Indiana Jones.
O síndico do Copan declarou inicialmente que o ato era "depreciativo". Que cada um escreva sua lista das coisas que depreciam nossa vida. Na minha lista, há corrupção, violência, insegurança, incompetência, intolerância, estupidez"¦ são as coisas que atentam cada dia ao meu pudor. Um casal transando não está entre as coisas que depreciam meu dia, mas entre as que lhe dão valor.
A vítima do Copan criou uma conta no vakinha.com.br, pedindo ajuda para pagar a multa. Quis contribuir ao pagamento da multa, que me parece injusta. Infelizmente, a conta foi apagada (talvez por causa dos comentários bestas e agressivos que ela recebeu).
O ministro da Saúde, Alexandre Padilha, tirou do ar uma ação de seu ministério voltada para as prostitutas (e demitiu o responsável pela campanha), porque ele se escandalizou com a frase "Eu sou feliz sendo prostituta", que ele substituiu por "Sem vergonha de usar camisinha" (que ele deve ter complementado mentalmente: "mas com vergonha de ser prostituta"). O ministro poderia ser candidato a síndico do edifício Copan.
Caro ministro Padilha, antes de demitir mais colaboradores competentes, dê uma lida: Gabriela Silva Leite, "Eu Mulher da Vida" (Rosa dos Tempos), "Filha, Mãe, Avó e Puta" (Objetiva) e (um pouco mais complexo) Eliana dos Reis Calligaris, "Prostituição "" O Eterno Feminino" (Escuta).
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