Não é muito importante que a igreja se modernize, pois seus fieis já estão se modernizando há tempo
Quando eu era criança, meu pai deixava que minha avó cuidasse de minha
formação religiosa. Ela comungava todos os domingos. Querendo seguir seu
ritmo, eu me preparava confessando-me no sábado, no fim da tarde. Mas
eis que, na noite de sábado para domingo, um pensamento ou um sonho
vagamente impuros, uma irritação, um palavrão me convenciam: eu já tinha
perdido a pureza garantida pela absolvição de poucas horas antes.
Conclusão: eu precisava de uma nova confissão antes da missa de domingo.
Às vezes, não tinha mais como, e eu renunciava a comungar.
Enquanto isso, eu constatava que minha avó não se confessava nunca -e
olhe que, naquela época, ninguém falava em "absolvição geral" ou em
"confissão uns aos outros": a única confissão que valia era a pessoal,
com um sacerdote.
Tudo bem, minha avó era (ou parecia) idosa e bem-comportada. Mas, mesmo
assim, eu não entendia: para mim, sem confissão (recente e por um
sacerdote) não havia como acreditar no perdão divino. Criei coragem e
perguntei. Ela disse que pecava pouco e, de qualquer forma, tratava do
assunto diretamente com Deus. Rezo para que esse deslize herético tenha
sido tratado com indulgência quando ela se apresentou no céu.
Seja como for, foi graças a essa avó muito católica que descobri
precocemente o charme e alcance profundo da Reforma protestante. Ou
seja, apesar da reação do Concílio de Trento com seus decretos
disciplinares, seu índice dos livros proibidos e sua reorganização da
Inquisição (hoje Congregação para a
Doutrina da Fé, da qual, aliás,
Bento 16 foi prefeito antes de ser papa), apesar de tudo isso, o
espírito da Reforma protestante ganhou corações e mentes dos católicos
-se não de todos, de muitos, a começar por minha avó.
Consequência: tornou-se cada vez mais possível e frequente que alguém se
considere católico praticante e decida por si o que é pecado e o que
não é, num diálogo privado com Deus, sem desprezar nem a igreja nem o
papa, mas sem depender deles.
Conheço numerosos católicos devotos que se casaram, se divorciaram,
casaram-se novamente (no civil), não confessam a sacerdote algum o
"adultério" no qual eles vivem (segundo a igreja), não se arrependem e
comungam, a cada missa, alegremente, considerando-se absolvidos
diretamente por Deus.
Às vezes, um pároco conhecido lhes recusa a comunhão; pois bem, mudam de
igreja ou, então, esperam para comungar quando viajam e encontram, no
exterior ou num lugar remoto do país, uma igreja onde ninguém saiba de
sua vida no "pecado".
É fácil encontrar católicos dando provas da mesma liberdade de
pensamento em matéria de camisinha e de anticoncepcionais, de
homossexualidade e mesmo de aborto.
Por causa desses "novos" católicos (nem tão novos assim, se minha avó
estava entre eles), contemplo com um pouco de tédio as especulações mais
ou menos esperançosas sobre o rumo que o novo papa imprimirá à igreja.
Será que isso ou aquilo vai ser reconhecido ou permitido? E os padres,
eles poderão se casar?
Como se já não houvesse padres que, em segredo
(de polichinelo) e sem a autorização romana, casam e seguem
administrando os sacramentos para sua comunidade, a qual os aceita,
satisfeita.
Em suma, para uma parte dos católicos (que é difícil medir, mas que é,
no mínimo, uma boa minoria), a pauta dos comentários destes dias é
irrelevante. Para esses católicos (que, sem se dar conta, foram
conquistados pela modernidade da Reforma), o diálogo íntimo e livre com
Deus está acima da opinião do papa, do pároco e da Congregação para a
Doutrina da Fé.
Alguns deles acabam se tornando anticlericais: acham que o que importa é
a mensagem cristã e o resto (a igreja) não passa de folclore, pompa,
glose e vida institucional. Outros continuam gostando do ritual e de
"seus" padres, embora considerem que a igreja militante é uma
assembleia, não uma falange a mando de seus oficiais.
Se esses católicos forem o futuro do catolicismo (um futuro que já
começou), a igreja de amanhã será variada e plural. Haverá católicos
condenando o aborto em qualquer situação e haverá outros admitindo o
aborto nas situações em que lhes parece justificado aos olhos de Deus. E
eles conviverão na mesma igreja.
Ou seja, não é muito importante que a Igreja Católica se modernize. Pois
seus fieis já estão se modernizando há tempo, optando pela liberdade de
sua consciência, sem deixarem de ser católicos.
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