quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Ano-Novo, vida nova


Voto para o ano novo: que encontremos jeitos de desejar sem transformar nosso desejo em obrigação

UMA LEITORA, que me autoriza a citar seu e-mail, mas prefere que seu nome não seja mencionado, pergunta: "Gostaria de saber sua opinião sobre parceiros que simplesmente somem, desaparecem mesmo, sem deixar rastro. Cancelam telefones, e-mail, conta no Skype e somem, sem se despedir, sem nem mesmo um MSN. E não falo de um relacionamento de alguns dias, mas de anos. Oito para ser mais precisa. Nem falo de um adolescente, mas de um homem de 57 anos.

Ele foi trabalhar no Oriente Médio, num alto cargo, a empresa fechou e ele desapareceu. Não morreu, não foi sequestrado por terroristas. (...) O que leva alguém a agir assim? Obrigações econômicas não estão em jogo".

A cada ano, mundo afora, há centenas de milhares de pessoas que somem e nunca mais dão notícias a familiares e amigos.

Quando se trata de adultos sem obrigações jurídicas (dívidas ou pensões alimentícias, por exemplo), a polícia descobre, eventualmente, o novo paradeiro ou a nova identidade de quem sumiu, mas só o próprio desaparecido pode autorizá-la comunicar estas informações aos parentes e amigos de sua vida, digamos assim, "anterior".

No passado, nesta página, se me lembro direito, já assinalei o fato de que, estranhamente, em geral, quem some não vai longe: acaba numa cidade parecida com a que ele abandonou, a poucos quilômetros de distância. Também, na maioria dos casos, o desaparecido reconstrói uma vida próxima da vida da qual ele fugiu -encontra um ofício parecido com o que ele praticava e cria uma família similar à que deixou.

Essa "constância" nos surpreende porque imaginamos que, em regra, alguém suma por querer uma vida nova. Por alguma razão, o caminho gradativo, que consistiria em se despedir, fazer as malas, fechar as contas etc., pareceria impraticável ou insuficiente aos olhos de nosso fugitivo: talvez ele tenha esperado demais e sua paciência excessiva (para com os outros ou para consigo mesmo) exija, de repente, uma explosão, um corte sem conversa alguma. De qualquer forma, supomos (ingenuamente) que, se alguém decidiu sumir, foi para mudar radicalmente.

De fato, como disse antes, os desaparecidos acabam reconstruindo uma vida parecida com a anterior ao seu sumiço, e isso nos leva à conclusão oposta: talvez quem some não queira mudar de vida -então, ele some por quê?

Conheci pouquíssimos que sumiram, mas conheço muitos que expressam a vontade de sumir. Todos explicam sua vontade da mesma forma: trata-se de fugir de exigências impossíveis de serem satisfeitas. Mas, cuidado: "Eles me pedem demais" é a tradução projetiva de "eu me peço demais". Quem foge das exigências do mundo está quase sempre fugindo das exigências que seu próprio desejo lhe coloca.
Vamos agora ao que acontece com quem decide sumir apenas para alguém -um familiar (se não a família inteira) ou um parceiro.

Às vezes, é justificada a sensação de que, sem um sumiço, uma relação se eternizaria pela simples dificuldade de qualquer um dos dois reconhecer que acabou. Onde está a covardia, e onde a coragem? Não sei. Talvez haja covardia em não conseguir declarar que um amor terminou, assim como talvez haja covardia na incapacidade de escutar essa declaração. Há a covardia de quem some e também de quem sobra, quando ambos parecem precisar do sumiço de um dos dois para aceitar que a história chegou ao fim.

Há covardia também em fingir que a relação continua, quando ela já morreu. Alguém, aliás, pode sumir para fugir de sua própria covardia, que o mantém calado, ou para fugir da covardia do outro, que não quer ouvir uma frase de despedida.

Seja como for, muitas vezes, alguém acaba uma relação e some porque o que era (e talvez ainda seja) seu desejo se transformou numa exigência intolerável.

Funciona assim: um dos jeitos de nos autorizarmos a querer o que desejamos consiste em transformar nosso desejo numa obrigação. Desejar é mais fácil (embora menos alegre) quando imaginamos desejar a mando de algum outro. O problema é que esse desejo, facilitado por ser mandatário, logo aparece como uma exigência da qual, eventualmente, vamos querer fugir.

Meu voto para o Ano Novo: que nos preocupemos menos em mudar nossas vidas e encontremos jeitos de conseguir desejar o que já desejamos sem transformar nosso desejo em obrigação.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Quem não acredita em Papai Noel?


Papai Noel encarna a esperança básica de que, ao menos uma vez por ano, o mundo nos queira bem


NO SÁBADO, foi o primeiro aniversário de Gabriela, filha de amigos meus. Ela estava radiante, num vestido que, pela cor vermelha, contribuía ao tema da festa: o Natal. Havia um Papai Noel no seu trenó, em tamanho natural, e a casa do Papai Noel no polo Norte, com o elfo a judante diante da porta e muita neve no teto. Havia também duas renas voadoras, que não reconheci, mas nenhuma delas era Rudolfo (que, como se sabe, tem nariz vermelho).

Concordo com a escolha dos pais de Gabriela: como primeira história na qual acreditar, a de Papai Noel é imbatível -embora ela tenha vários inimigos.

1) Há os que dizem que Papai Noel não passa de um vendedor de shopping center ou de um animador de loja de departamento, inventado para que, nesta época do ano, compremos um monte de futilidades. Penso diferente.

Vi muitas crianças ponderando e escrevendo suas cartas de Natal ou, então, esperando, na fila, para sussurrar seus sonhos no ouvido do próprio Papai Noel. O importante não era que elas conseguissem o que pediam, mas que elas manifestassem suas vontades, tivessem a coragem de querer.

No Natal, aliás, o presente é quase supérfluo. Nestes dias, não há como jantar num restaurante sem assistir à entrega das surpresas de um amigo secreto. Cada um desembrulha, finge encantamento e ergue seu presente para a foto: é um troca-troca de objetos sem uso que acabarão no fundo de uma gaveta ou serão passados adiante, quem sabe no Natal do ano que vem.

O presente pode ser qualquer coisa porque, em muitos casos, seu valor é o mesmo dos ursos de pelúcia que abraçamos no sono, ao longo da infância: ele serve como lembrança saudosa de quem nos presenteou e, ao mesmo tempo, substitui o presenteador de maneira que possamos dispensar sua presença.

Só para ilustrar a complexidade de pedidos e presentes, mais um exemplo. Francisco, aos cinco anos, num dia de novembro, quis ditar sua carta ao Papai Noel; ele não queria presente algum naquele ano, preferia que o Papai Noel pensasse nas crianças que não têm nada.

Francisco selou e mandou seu pedido, com grande contentamento dos pais, orgulhosos da generosidade do filhinho. Poucos dias mais tarde, Francisco estava sendo impossível, explosivo, levado. A mãe: "Se Papai Noel souber como você se comporta, ele não trará nada para você". Francisco, feliz e sardônico: "Eu não pedi nada neste ano".

2) Alguns se indignam porque o culto a Papai Noel, figura mágica ou pagã, desnaturaria o Natal religioso. Acho estranho: o Papai Noel encarna e celebra a esperança básica de que o mundo não nos seja hostil, que, ao menos uma vez por ano, ele possa nos querer bem. Graças ao Papai Noel paira, sobre nós todos, um olhar generoso. Será que essa esperança é muito afastada do sentido cristão do Natal?

3) A objeção mais impiedosa ao Papai Noel vem da crítica racionalista, pela qual é nocivo induzir as crianças a acreditar em coisas cuja existência é duvidosa.

Acho curioso. No fundo, acreditar ou não na existência do velhinho do polo Norte é sem relevância. Mas é crucial acreditar na possível generosidade do mundo para com a gente e com todos.

Anos atrás, passando o Natal em Gstaad, uma estação de esqui nos Alpes do Valais, na Suíça, eu e um amigo decidimos (estupidamente) atormentar o pequeno Mário, seis anos, anunciando, sem parar, a chegada iminente do Papai Noel. Mário, ao mesmo tempo, desejava essa chegada e era literalmente apavorado por sua eventualidade.

No fim, quisemos saber: do que ele tinha tanto medo? Da aparição sobrenatural do trenó voador? Do julgamento de seu comportamento passado, que seria implícito no presente recebido? Mario explicou: "Nada disso. É que, se ele vier, eu terei que ser bom".

Agora, se um jovem leitor tivesse aguentado até aqui e me perguntasse "Afinal, para você, Papai Noel existe ou não?", como responderia?

Primeiro, observaria que é bom não dar ouvidos aos que insinuam que o Papai Noel não existe. Os cínicos são sobretudo invejosos; funciona assim: por medo de que meu irmão receba mais amor do que eu, declaro que a mãe não existe e tento vender essa ideia ao meu irmão.

Logo, seguiria o exemplo de uma mãe que, diante das dúvidas do filho, disse: "Se você acredita nele, no mínimo ele existe dentro de você".

Feliz Natal a todos.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Educar frustrando?


Formar o caráter de um jovem não significa apenas colocar limites, mas, sobretudo, autorizar


EM 14 de novembro, na avenida Paulista, um grupo de cinco jovens agrediu outros jovens sem razão aparente.

Não se sabe se o ato foi uma expressão de raiva homofóbica ou apenas a estupidez habitual de um grupinho de adolescentes soltos pelas ruas.

Em entrevistas na Folha, os pais de dois dos agressores se colocaram a eterna questão dos adultos quando os filhos aprontam além da conta: "onde foi que a gente errou?".

Em geral, muito mais do que nos erros dos pais, a origem da conduta criminosa (ou simplesmente estúpida) de um adolescente está no grupo ao qual ele pertence ou ambiciona pertencer.

Mas o que me importa hoje é que os pais, ao interrogar-se sobre o que fizeram de errado, concluíram que talvez eles tivessem colocado poucos limites nos filhos. Os jovens teriam se extraviado porque "faltou pulso".

Essa ideia é hoje um chavão: recusar, proibir, ou seja, frustrar os desejos dos jovens seria um ato formador do caráter. Aqueles a quem tudo seria dado não teriam noção da lei e dos limites; escravos de sua própria ânsia de satisfação imediata, eles não saberiam lidar com os contratempos da vida.

Nessa linha, como me lembrou uma leitora, Ana Lamanna, o psicanalista Wilfred Bion (em "The Theory of Thinking", teoria do pensamento, 1962) supunha que as frustrações fossem um requisito do pensamento.

Ao longo do desenvolvimento, inteligência e criatividade apareceriam à condição de que as vontades não fossem todas satisfeitas. Vulgo: a satisfação emburrece e as frustrações têm valor pedagógico.

Na semana retrasada, nesta coluna, mencionei a ideia, derivada de J. Bowlby e D.W. Winnicott (injustamente derivada, observou com razão um leitor, Davy Bogomoletz), de que a privação na infância estaria na origem da delinquência adulta.

Para a psicanálise, privação e frustração não são bem a mesma coisa, mas, para o leigo, surge uma certa contradição: afinal, ser frustrado ou privado estraga ou forma o caráter de nossos rebentos?

Outra leitora, Maria Chantal Amarante, antevendo essa contradição, propôs uma solução: "Frustrar as necessidades básicas deixa feridas imensas" (e pode, portanto e por exemplo, levar à delinquência), mas não por isso seria menos necessário "frustrar os desejos e vontades ilimitados das crianças de hoje", para que elas não "cresçam achando que podem tudo".

Como Maria Chantal, acho que muitas coisas devem ser recusadas às crianças -desde as que não são adaptadas à idade que elas têm até as que pediriam aos pais um sacrifício excessivo. No entanto, duas observações:

1) Podemos frustrar nossos filhos de pipoca e videogames, sobretudo quando eles parecem acreditar que tudo lhes é devido, mas imaginar que, com isso, a gente esteja lhes formando o caráter ou lhes ensinando a viver é puro melodrama.

Funciona assim: nós imaginamos que seríamos capazes de mimar as crianças a ponto de elas nunca aprenderem que a insatisfação é o regime normal do desejo.

Será que alguém tem tamanho poder? Não acredito, mas, aparentemente, fortes dessa ilusão, decidimos frustrá-las um pouco para salvá-las de nossa suposta (e duvidosa) capacidade de embrutecê-las à força de satisfação.

2) Também justificamos nossa decisão de recusar e proibir com a ideia de que isso estabeleceria, nas crianças, uma sólida e benéfica ideia de autoridade.

Cá entre nós, é preciso que a autoridade em geral e a nossa em particular sejam bem decadentes para que, a fim de serem levadas a sério, elas precisem privar as crianças de balas, cinema ou TV.
Mais importante: o que estabelece a autoridade e forma o caráter é mesmo o ato de recusar e proibir?

Ao procurarmos nossas falhas educativas (que sempre existem), seria bom não buscá-las só na falta de proibições e limites, mas também na falta de autorizações.
Pois, ao educar, o mais difícil talvez não seja impor limites e interdições. O mais difícil talvez seja transmitir às nossas crianças a coragem de desejar.

Proibir as saídas noturnas e o uso prolongado de computador é ótimo e necessário, mas a autoridade que forma o caráter de um jovem não é só a que diz não às suas vontades; é também a que o autoriza a dizer sim na hora daquelas escolhas de vida que são custosas e decisivas e diante das quais é fácil amarelar.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

A batalha do Rio


O tráfico está perdendo uma batalha crucial: a batalha pelas mentes e pelos corações dos jovens



COM HUMOR negro, os habitantes de São Conrado, Rio, declaram-se moradores do "Baixo Rocinha".

De fato, a favela da Rocinha (com mais de 100 mil habitantes) desce, pelas encostas do Morro Dois Irmãos, até os condomínios de classe média ao redor do Fashion Mall.

Durante a semana passada, em São Conrado, circulava o boato de que os traficantes da Rocinha, receando ser a bola da vez, ameaçariam uma carnificina: se a polícia subir o morro, eles metralhariam as janelas dos prédios.

Várias famílias cogitavam transferir as crianças para casas de parentes em outros bairros.

No sábado, enfim, o delegado Allan Turnowski, chefe da Polícia Civil do Rio, declarou que não há favela carioca que não possa ser invadida e ocupada pelas forças da ordem, as quais têm planos, meios e homens para tomar a Rocinha e o Vidigal dos traficantes. Mais ansiedade em São Conrado? Não foi o que aconteceu. Por quê?

Primeiro, ao longo da semana, constatou-se que, na hora do vamos ver, bravatas à parte, os bandidos da Vila Cruzeiro e do Morro do Alemão tentaram sobretudo salvar a pele e fugir com algum dinheiro na mochila (a deles ou a de policiais cúmplices e corruptos, tanto faz).

Ao mesmo tempo, criou-se uma confiança inédita de que a operação das polícias não seja mais uma incursão em território inimigo para agitar bandeiras lá de cima: desta vez, o Estado vai retomar as favelas cariocas e nelas instalar sua legalidade e seus serviços.

Essa é a esperança, se não a convicção, de quase todos meus interlocutores, amigos, conhecidos ou encontros casuais, de boteco em boteco e de táxi em táxi.

Enquanto isso, em São Paulo, ouço uma manifestação de ceticismo: para quê tudo isso? O tráfico não vai acabar nunca, como não vai acabar a corrupção policial.

Concordo, mas ninguém pretende extirpar o crime; o projeto é de forçá-lo a se modernizar. O que isso pode significar?

O Brasil, sobretudo no Rio, apresenta um modelo peculiar e arcaico de exercício do crime: amplos territórios urbanos são ocupados por gangues, as quais governam centenas de milhares de pessoas, que são cidadãos brasileiros apenas suposta e nominalmente, pois vivem, de fato, sob outra soberania.

Dessas cidades "estrangeiras", enquistadas no território nacional, saem, por exemplo, arrastões que saqueiam praias e ruas antes de voltar ao amparo de suas cidadelas.

O crime se apoderou de áreas que o Estado já abandonara e das quais ele parecia ter desistido de vez.

Talvez pela culpa desse abandono, durante um tempo, vingou a ilusão de que as favelas dominadas pelo crime seriam novos quilombos -lugares de resistência contra o Estado que os abandonou.

Mas não é difícil constatar que a população das favelas atura a presença do tráfico como se atura a ocupação por um exército estrangeiro e sanguinário.

A favela de hoje nunca foi um quilombo secessionário, é apenas uma área ocupada, que vive na espera de sua libertação.

O que seria, então, "modernizar" esse modelo do crime? Pois bem, no resto do mundo moderno, os criminosos não vivem em áreas independentes, ainda menos eles as governam; os criminosos são obrigados a operar na sombra e nas margens da sociedade instituída, escondendo-se em seus interstícios.

É o que se espera que aconteça se as favelas forem reconquistadas e voltarem a ser brasileiras.

Mais uma coisa: é cedo para dizer que o tráfico foi derrotado, mas é verdade que, nestes dias, ele perdeu algo mais importante do que o Complexo do Alemão.

Escondidos no fundo de uma caixa d'água e respirando com um canudinho, fugindo fantasiados de funcionários da prefeitura, mijando-se nas calças na hora da prisão, os traficantes, na debandada, perderam seu glamour.

Em geral, as crianças (que sempre sofrem por serem menores e mais fracas) idealizam facilmente os violentos e marrentos.

Há tempos, elas idealizavam os soldados do tráfico, apenas mais velhos do que elas. De repente, a semana nos ofereceu a imagem de crianças festejando a chegada triunfal e desejada, na favela, de um exército de libertação.

Se essa imagem se confirmar, o tráfico terá perdido a batalha crucial desta guerra: a batalha pelas mentes e pelos corações dos jovens.

Reconheça-se que, nessa batalha, um dos maiores aliados das forças brasileiras talvez tenha sido e ainda seja o Capitão Nascimento.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Delinquência e privação




Quem se sente culpado não age -no máximo, ele espera que suas vítimas se vinguem


UMA CENA emblemática da desfeita (temporária ou não) do tráfico carioca foi a visão de um punhado de traficantes armados, correndo e tropeçando, fugindo da Vila Cruzeiro em direção ao Morro do Alemão.

Um amigo comentou que esses restos esfarrapados de um exército na debandada lhe davam pena. "Pena?", estranhei. O amigo respondeu que ele conhece as crueldades das quais os traficantes são capazes, mas, acrescentou, "no fundo, eles são as verdadeiras vítimas". "Vítimas de quê?", perguntei. "Da miséria, da exclusão, da pobreza material e moral", ele respondeu, com condescendência.

Meu amigo não é bronco: ele sabe que nem a miséria nem a exclusão são suficientes para produzir um delinquente. Justamente, os fugitivos da Vila Cruzeiro eram um punhado: o crime, no morro, é a escolha de pouquíssimos.


Ainda assim, meu amigo acredita que as durezas são, no mínimo, uma causa coadjuvante da delinquência. Quando e como surgiu essa ideia?


Não sei dizer, mas um marco é a carta endereçada ao British Medical Journal, no fim de 1939, por J. Bowlby, D.W. Winnicott e E. Miller; ela é reproduzida no começo de "Privação e Delinquência" (Martins Fontes), que reúne os extraordinários textos de Winnicott sobre o tema. A carta foi escrita enquanto, na Inglaterra, as crianças citadinas eram evacuadas para lares rurais, na intenção de protegê-las dos bombardeios. Os autores assinalam que, para crianças entre 2 e 5 anos, a separação prolongada de seus lares é "um importante fator externo na causação de delinquência" futura.


Entre as crianças evacuadas estavam os protagonistas de "As Crônicas de Nárnia" (livros e filmes), e as crônicas talvez ofereçam um prognóstico complementar ao da carta que citei.


Pelas crônicas, as crianças que forem privadas de um lar não se tornarão necessariamente más e transgressoras: elas tentarão conferir a suas vidas uma dimensão "heroica", do jeito que der -como se, na falta de um lar onde ser tranquilamente quaisquer, elas precisassem transformar suas vidas em epopeias. Com isso, algumas lutarão ao lado do leão Aslam, uma delas trairá Nárnia e, mais perto de nós, algumas inventarão sua própria épica grotesca brandindo armas do alto de um morro carioca.


Seja como for, aceito a ideia de Bowlby e Winnicott de que a privação de amor e de cuidados maternos pode ser uma das causas da delinquência. Mas essa constatação inicial engendrou uma versão "ampliada" pela qual, em geral, uma infância sofrida explicaria a delinquência do adulto.


O elo é que uma frustração trivial, imposta a uma criança, pode funcionar como uma privação afetiva: se não tenho o tênis que quero é porque a mãe (indigna) não me ama. Portanto, quem sofre pela falta de um tênis está sendo, de fato, privado de amor (e tem mais chances de se tornar delinquente).


Ora, para que serve essa ideia de que as frustrações produziriam delinquência? Pois bem, essa ideia nos permite, por exemplo, explicar a existência do mal: a delinquência existe porque frustramos cruelmente um monte de crianças. Ou seja, a nossa culpa organiza e torna inteligível o mundo.


Será que com isso nossa ação será mais fácil? Afinal, se o mundo é iníquo por culpa nossa, não deveria ser simples mudá-lo? Infelizmente, não é assim que a culpa funciona: quem se sente culpado não age -no máximo, ele espera que suas vítimas se vinguem. Conclusão: podemos idealizar a delinquência como justa revanche dos que nós, egoístas, privamos de tênis e de amor.


Meu amigo diria: por que não? A revanche não seria um bom jeito de fazer justiça? Seria, mas a espera da revanche dos privados e dos frustrados nunca passa de uma atitude retórica para amenizar a culpa, que, de novo, não leva a ação alguma, só a lamúrias em prol, como dizia meu amigo, das "verdadeiras vítimas" (as falsas, "obviamente", seriam as que sofrem com a violência delinquente).


Agora, uma boa notícia: ao longo do fim de semana, exceção feita pela observação de meu amigo, não escutei nenhum ato de contrição. É uma boa notícia, porque isto aprendi ao longo de minha clínica: só é possível agir e mudar (um pouco) o mundo com a condição de se liberar da culpa e da falsa compreensão que ela produz.


Talvez, desta vez, sem as ladainhas da culpa, algo mude no Rio de Janeiro.