O tráfico está perdendo uma batalha crucial: a batalha pelas mentes e pelos corações dos jovens |
COM HUMOR negro, os habitantes de São Conrado, Rio, declaram-se moradores do "Baixo Rocinha".
De fato, a favela da Rocinha (com mais de 100 mil habitantes) desce, pelas encostas do Morro Dois Irmãos, até os condomínios de classe média ao redor do Fashion Mall.
Durante a semana passada, em São Conrado, circulava o boato de que os traficantes da Rocinha, receando ser a bola da vez, ameaçariam uma carnificina: se a polícia subir o morro, eles metralhariam as janelas dos prédios.
Várias famílias cogitavam transferir as crianças para casas de parentes em outros bairros.
No sábado, enfim, o delegado Allan Turnowski, chefe da Polícia Civil do Rio, declarou que não há favela carioca que não possa ser invadida e ocupada pelas forças da ordem, as quais têm planos, meios e homens para tomar a Rocinha e o Vidigal dos traficantes. Mais ansiedade em São Conrado? Não foi o que aconteceu. Por quê?
Primeiro, ao longo da semana, constatou-se que, na hora do vamos ver, bravatas à parte, os bandidos da Vila Cruzeiro e do Morro do Alemão tentaram sobretudo salvar a pele e fugir com algum dinheiro na mochila (a deles ou a de policiais cúmplices e corruptos, tanto faz).
Ao mesmo tempo, criou-se uma confiança inédita de que a operação das polícias não seja mais uma incursão em território inimigo para agitar bandeiras lá de cima: desta vez, o Estado vai retomar as favelas cariocas e nelas instalar sua legalidade e seus serviços.
Essa é a esperança, se não a convicção, de quase todos meus interlocutores, amigos, conhecidos ou encontros casuais, de boteco em boteco e de táxi em táxi.
Enquanto isso, em São Paulo, ouço uma manifestação de ceticismo: para quê tudo isso? O tráfico não vai acabar nunca, como não vai acabar a corrupção policial.
Concordo, mas ninguém pretende extirpar o crime; o projeto é de forçá-lo a se modernizar. O que isso pode significar?
O Brasil, sobretudo no Rio, apresenta um modelo peculiar e arcaico de exercício do crime: amplos territórios urbanos são ocupados por gangues, as quais governam centenas de milhares de pessoas, que são cidadãos brasileiros apenas suposta e nominalmente, pois vivem, de fato, sob outra soberania.
Dessas cidades "estrangeiras", enquistadas no território nacional, saem, por exemplo, arrastões que saqueiam praias e ruas antes de voltar ao amparo de suas cidadelas.
O crime se apoderou de áreas que o Estado já abandonara e das quais ele parecia ter desistido de vez.
Talvez pela culpa desse abandono, durante um tempo, vingou a ilusão de que as favelas dominadas pelo crime seriam novos quilombos -lugares de resistência contra o Estado que os abandonou.
Mas não é difícil constatar que a população das favelas atura a presença do tráfico como se atura a ocupação por um exército estrangeiro e sanguinário.
A favela de hoje nunca foi um quilombo secessionário, é apenas uma área ocupada, que vive na espera de sua libertação.
O que seria, então, "modernizar" esse modelo do crime? Pois bem, no resto do mundo moderno, os criminosos não vivem em áreas independentes, ainda menos eles as governam; os criminosos são obrigados a operar na sombra e nas margens da sociedade instituída, escondendo-se em seus interstícios.
É o que se espera que aconteça se as favelas forem reconquistadas e voltarem a ser brasileiras.
Mais uma coisa: é cedo para dizer que o tráfico foi derrotado, mas é verdade que, nestes dias, ele perdeu algo mais importante do que o Complexo do Alemão.
Escondidos no fundo de uma caixa d'água e respirando com um canudinho, fugindo fantasiados de funcionários da prefeitura, mijando-se nas calças na hora da prisão, os traficantes, na debandada, perderam seu glamour.
Em geral, as crianças (que sempre sofrem por serem menores e mais fracas) idealizam facilmente os violentos e marrentos.
Há tempos, elas idealizavam os soldados do tráfico, apenas mais velhos do que elas. De repente, a semana nos ofereceu a imagem de crianças festejando a chegada triunfal e desejada, na favela, de um exército de libertação.
Se essa imagem se confirmar, o tráfico terá perdido a batalha crucial desta guerra: a batalha pelas mentes e pelos corações dos jovens.
Reconheça-se que, nessa batalha, um dos maiores aliados das forças brasileiras talvez tenha sido e ainda seja o Capitão Nascimento.
Só uma coisa a dizer:
ResponderExcluirPUTA QUE O PARIU, QUE TEXTO DO CARALHO...
Ficou bom? Não!
Ficou muito bom? Que muito bom o que!!!
FICOU É BOM PRA CARAAAALHOOOOO
Parabens Alam! Eu não sou do Rio (sou de São Paulo), estou acompanhando sempre as incursões da polícia e acredito e confio que, com a chegada das forças de paz ao Alemão, Penha e Cruzeiro...Rocinha e Vidigal são apenas questão de tempo para a estabilidade da paz no que já foi conquistado e aí sim um crack no sistema do crime como ele é hoje.
Parabens de novo!
Muito bom o texto e em especial a citação dos quilombos.
ResponderExcluirO importante é essas crianças terem bons exemplos.
Parabéns!
Sim, o texto ficou bom. Mas enquanto o sistema judicial e prisional não mudarem, não acredito que o crime se modernizará... O crime se moderniza não somente pela presença do estado em regiões geográficas, mas também quando o criminoso teme sua punição. Enquanto não mudar, matar, assaltar, estorquir, traficar continuará sendo banal. E o assassino do Tim Lopes continuará solto.
ResponderExcluirSó os próximo dias, meses e anos dirão se houve "êxito". Principalmente, se a atuação do Estado, que não pela polícia, se fizer num sentido bem diferente daquele a que assistimos nas últimas décadas, não somente na cidade do Rio de Janeiro.
ResponderExcluirE, ironicamente, é curiosa a imagem do Capitão Nascimento lembrada neste momento. Pra mim, é uma crítica profunda à situação social ali vivida, e que problematiza justamente a atuação do Estado através da polícia. Se essa imagem do Capitão Nascimento fosse aquela mais cara ao primeiro filme, visto por muitos quase que como uma "máquina de matar" indistintamente, me preocuparia, numa leitura de Guerra, em que tudo menos cidadãos são vistos nessa mesma realidade. Acredito que a ampliação temática que trouxe o segundo longa deixou precipitações como esta de lado, espero.
O texto está impecável, Contardo! Adoro ler suas análises: sempre feitas com a propriedade de um bom observador e de um psicanalista competente.
ResponderExcluirComo sugere o enredo bíblico: "só se faz a paz com a guerra". O Rio ainda terá seus momentos de glória.
Abs!
Ah Contardo, para com essa hipocrisia típica classe "medíocre" brasileira. Polícia, exército e afins nunca irá garantir paz coisa nenhuma. Essa tentativa da classe média de criar um herói fardado que chega e bate em traficantes e usuários de drogas é ridícula. Foda-se a classe média de merda que lota os cinemas pra assistir esse filme fascista idiota. A violência só vai acabar quando vocês conseguirem educar seus filhos e formarem homens de verdade. Não esse bando de covardes que se esconde atrás da TV.
ResponderExcluirEntão, mira-se as drogas e não as armas. Mira-se o estado paralelo perverso e não o estado de direito perverso. Um é o espelhamento do outro. Nosso Executivo, nosso Legislativo e nosso Judiciário são arcaicos. Queriam que modelo nas forças paralelas???? Mata mais o Estado perverso do que o estado paralelo perverso, é só fazer as contas em milhões de $$$ desviados e o que daria para fazer com isso. O Brasil é um país pobre de valores subjetivos!!!!
ResponderExcluirTanto sensacionalismo... tanta coisa pra discutir...
ResponderExcluirhttp://colunistas.yahoo.net/posts/6962.html
Achei o texto sensacional e a análise de uma perda do glamour dos traficantes bastante pertinente. Talvez o ceticismo de alguns e sua "fé inabalável" na fraqueza do Estado tenham levado a sociedade a este momento crítico. Parece-me importante creditarmos à palavra do Estado o valor que ela deve ter: o tráfico e o domínio perverso das favelas não podem ocorrer. É ilegal! Para além disso, chegamos à imagem do traficante perante nossas crianças oriundas desse mundo ilegal. Se as invasões nas favelas valem para retirar tal glamour, já é o começo para o fortalecimento da palavra de ordem do Estado, responsável pela organização mor de nossa sociedade civil. Isso, sim, pode trazer uma sensação de esperança libertadora.
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