quinta-feira, 25 de junho de 2009

Amores e mudanças



Como esbarrar num amor que nos transforme? O filme "Tinha que Ser Você" dá uma dica preciosa


QUANDO A VIDA da gente está emperrada (o que não é raro), será que faz sentido esperar que um encontro, um amor, uma paixão se encarreguem de nos dar um novo rumo? Provavelmente, sim -no mínimo, é o que esperamos: afinal, o poder transformador do encontro amoroso faz o charme de muitos filmes e romances.

Os especialistas validam nossa esperança. Jacques Lacan, o psicanalista francês, dizia, por exemplo, que o amor é o sinal de uma "mudança de discurso", ou seja, na linguagem dele, de uma mudança substancial na nossa relação com o mundo, com os outros e com nós mesmos. Claro, resta a pergunta: o que significa "sinal" nesse caso?

Duas possibilidades: o amor surge quando está na hora de a gente se transformar ou, então, é por amor que a gente se transforma. Não é necessário tomar partido: talvez as duas sejam verdadeiras.

Seja como for, volta e meia, alguém me pede uma receita: como esbarrar num amor que nos transforme? A resposta trivial diz que os encontros acontecem a cada esquina: difícil é enxergá-los e deixar que eles nos transformem, ou seja, difícil é ter a coragem de vivê-los. Aqui vai um exemplo.

O filme "Tinha que Ser Você", escrito e dirigido por Joel Hopkins, além de ser uma pequena dádiva, oferece uma "dica" preciosa sobre as condições que fazem que um amor "engate". É a história de um encontro ao qual os protagonistas tentam dar uma chance -a chance de transformar suas vidas.

Parêntese. Harvey (Dustin Hoffman) está na casa dos sessenta, e Kate (Emma Thompson) na dos cinquenta. É possível ver no filme uma parábola em prol da ideia de que nunca é tarde demais para deixar que um amor nos dê um novo rumo.

O título original, "Last Chance Harvey" (última chance Harvey), iria nessa direção: é agora ou nunca. Pode ser, mas talvez toda chance que a vida nos dá seja mesmo a nossa última.

Fora isso, o filme começa nos mostrando que a vida de Harvey é tão emperrada quanto a de Kate. Em ambos, há uma certa decepção por não conseguir (ou não ter conseguido) aventurar-se a viver seus sonhos -ser pianista de jazz para Harvey, e romancista para Kate. Os dois estão sozinhos e conformados com uma certa mediocridade afetiva: Kate se encaminha para ser a filha que cuidará para sempre da velha mãe, e Harvey já desistiu de ser o pai da filha de quem ele se distanciou, muitos anos antes, no divórcio que o separou da mãe dela.

Em suma, Harvey e Kate estão precisando de uma mudança.

Por que o encontro de Harvey e Kate teria mais sucesso do que os encontros às escuras que Kate se permite, de vez em quando? Por que eles não balbuciariam apenas a estupidez inibida que é habitual nesses casos? Simples, mas crucial: a conversa deles começa com uma sinceridade quase cínica. A "cantada" inicial de Harvey é o oposto do fazer de conta que é a regra das relações sociais, pois Harvey se apresenta confessando o fracasso de sua vida.

Logo, Harvey e Kate passeiam por Londres discorrendo e se conhecendo. Os espectadores descobrirão se eles saberão dar uma chance ao encontro ou, então, voltarão cada um para seu "conforto".

O passeio pela cidade evoca dois filmes de Richard Linklater, que estão entre meus preferidos, "Antes do Amanhecer", de 1995, e "Antes do Pôr-do-sol", de 2004.

No primeiro, Jesse (Ethan Hawke) e Celine (Julie Delpy) encontram-se, passam um dia nas ruas de Viena e, enfim, separam-se. No segundo, eles se encontram de novo, em Paris, nove anos depois, e, também passeando, imaginam, de alguma forma, a outra vida que poderia ter sido a deles se, no fim daquele dia em Viena, eles tivessem apostado no futuro de seu encontro.
Aqui, uma recomendação prosaica que emana dos três filmes: se você procura um grande encontro amoroso, sempre use calçados confortáveis, porque nunca se sabe por quantos quilômetros se estenderão suas deambulações amorosas.

Brincadeira à parte, os filmes de Linklater talvez sejam mais tocantes -entre outras coisas, porque eles conferem uma beleza melancólica a uma desistência que é muito parecida com as renúncias às quais nos resignamos a cada dia. Mas o filme de Hopkins, "Tinha que Ser Você", é mais generoso, porque ele nos deixa com uma sugestão: o diálogo que leva ao amor, que dá a cada um a vontade de se arriscar, não surge da sedução e do charme, mas da coragem de nos apresentarmos por nossas falhas, feridas e perdas.

8 comentários:

  1. Prezados Contardo Caligaris,

    Sou seu leitor assíduo.
    Hoje, o senhor escreveu em sua coluna que: ”mas ele e Barbosa são absolvidos do crime de ter tido relações sexuais com menores. Por quê? Porque o Tribunal ‘considerou que não é crime manter relações sexuais com menores de 18 anos que sejam prostitutas’. Ou seja, como não foram eles que ‘iniciaram’ as meninas (ao sexo e à prostituição), eles não têm culpa”.

    Há aí uma incorreção.
    A explicação para a decisão da Justiça não é a apontada. O fato é que:
    1) os adolescentes não tem disposição do próprio corpo até os 14 anos, depois disso, podem manter relações sexuais;
    2) prostituição não é crime, somente explorar economicamente a atividade de uma prostituta é crime.

    Logo, concluímos que ou o cidadão acusado, para ser condenado, ou manteve relações sexuais com uma menor de 14 anos ou explorou economicamente a atividade de uma prostituta, independentemente de sua idade.

    Abraços,

    Fernando Correa.

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  2. a coragem de nos apresentarmos.
    verdadeiro isto.

    bons textos, muito bem escritos.
    parabéns!

    li algo sobre vc na revista Bravo.

    um abraço.

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  3. Perfeita sua análise, me fez pensar em um monte de coisas e me deu vontade de assistir a todos os filmes citados rs

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  4. A Rosa Maria esbarrou em mim e me transformou......

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  5. Achei a sugestão de usar calçados confortáveis o máximo :-)

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  6. Contardo,

    Adorei a sugestão de usar calçados confortáveis. :-)

    Abraço
    izabel

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  7. vc é sempre essa pessoa que seduz e explica...amei tudo e amo saber que calçados confortáveis têm seu papel...obrigada ;)

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  8. O tema me chama muito a atenção. Dos filmes citados, só assisti ao segundo filme de Richard Linklater e me recordo que fiquei impressionado com tudo que vi e ouvi. Fiquei muito curioso em assistir "Tinha que ser você". Procurarei hj nas locadoras...

    Obrigado por suas palavras sempre lúcidas!!!

    abraços

    Leslie Carlos Lima

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