Como esbarrar num amor que nos transforme? O filme "Tinha que Ser Você" dá uma dica preciosa |
QUANDO A VIDA da gente está emperrada (o que não é raro), será que faz sentido esperar que um encontro, um amor, uma paixão se encarreguem de nos dar um novo rumo? Provavelmente, sim -no mínimo, é o que esperamos: afinal, o poder transformador do encontro amoroso faz o charme de muitos filmes e romances.
Os especialistas validam nossa esperança. Jacques Lacan, o psicanalista francês, dizia, por exemplo, que o amor é o sinal de uma "mudança de discurso", ou seja, na linguagem dele, de uma mudança substancial na nossa relação com o mundo, com os outros e com nós mesmos. Claro, resta a pergunta: o que significa "sinal" nesse caso?
Duas possibilidades: o amor surge quando está na hora de a gente se transformar ou, então, é por amor que a gente se transforma. Não é necessário tomar partido: talvez as duas sejam verdadeiras.
Seja como for, volta e meia, alguém me pede uma receita: como esbarrar num amor que nos transforme? A resposta trivial diz que os encontros acontecem a cada esquina: difícil é enxergá-los e deixar que eles nos transformem, ou seja, difícil é ter a coragem de vivê-los. Aqui vai um exemplo.
O filme "Tinha que Ser Você", escrito e dirigido por Joel Hopkins, além de ser uma pequena dádiva, oferece uma "dica" preciosa sobre as condições que fazem que um amor "engate". É a história de um encontro ao qual os protagonistas tentam dar uma chance -a chance de transformar suas vidas.
Parêntese. Harvey (Dustin Hoffman) está na casa dos sessenta, e Kate (Emma Thompson) na dos cinquenta. É possível ver no filme uma parábola em prol da ideia de que nunca é tarde demais para deixar que um amor nos dê um novo rumo.
O título original, "Last Chance Harvey" (última chance Harvey), iria nessa direção: é agora ou nunca. Pode ser, mas talvez toda chance que a vida nos dá seja mesmo a nossa última.
Fora isso, o filme começa nos mostrando que a vida de Harvey é tão emperrada quanto a de Kate. Em ambos, há uma certa decepção por não conseguir (ou não ter conseguido) aventurar-se a viver seus sonhos -ser pianista de jazz para Harvey, e romancista para Kate. Os dois estão sozinhos e conformados com uma certa mediocridade afetiva: Kate se encaminha para ser a filha que cuidará para sempre da velha mãe, e Harvey já desistiu de ser o pai da filha de quem ele se distanciou, muitos anos antes, no divórcio que o separou da mãe dela.
Em suma, Harvey e Kate estão precisando de uma mudança.
Por que o encontro de Harvey e Kate teria mais sucesso do que os encontros às escuras que Kate se permite, de vez em quando? Por que eles não balbuciariam apenas a estupidez inibida que é habitual nesses casos? Simples, mas crucial: a conversa deles começa com uma sinceridade quase cínica. A "cantada" inicial de Harvey é o oposto do fazer de conta que é a regra das relações sociais, pois Harvey se apresenta confessando o fracasso de sua vida.
Logo, Harvey e Kate passeiam por Londres discorrendo e se conhecendo. Os espectadores descobrirão se eles saberão dar uma chance ao encontro ou, então, voltarão cada um para seu "conforto".
O passeio pela cidade evoca dois filmes de Richard Linklater, que estão entre meus preferidos, "Antes do Amanhecer", de 1995, e "Antes do Pôr-do-sol", de 2004.
No primeiro, Jesse (Ethan Hawke) e Celine (Julie Delpy) encontram-se, passam um dia nas ruas de Viena e, enfim, separam-se. No segundo, eles se encontram de novo, em Paris, nove anos depois, e, também passeando, imaginam, de alguma forma, a outra vida que poderia ter sido a deles se, no fim daquele dia em Viena, eles tivessem apostado no futuro de seu encontro.
Aqui, uma recomendação prosaica que emana dos três filmes: se você procura um grande encontro amoroso, sempre use calçados confortáveis, porque nunca se sabe por quantos quilômetros se estenderão suas deambulações amorosas.
Brincadeira à parte, os filmes de Linklater talvez sejam mais tocantes -entre outras coisas, porque eles conferem uma beleza melancólica a uma desistência que é muito parecida com as renúncias às quais nos resignamos a cada dia. Mas o filme de Hopkins, "Tinha que Ser Você", é mais generoso, porque ele nos deixa com uma sugestão: o diálogo que leva ao amor, que dá a cada um a vontade de se arriscar, não surge da sedução e do charme, mas da coragem de nos apresentarmos por nossas falhas, feridas e perdas.
Prezados Contardo Caligaris,
ResponderExcluirSou seu leitor assíduo.
Hoje, o senhor escreveu em sua coluna que: ”mas ele e Barbosa são absolvidos do crime de ter tido relações sexuais com menores. Por quê? Porque o Tribunal ‘considerou que não é crime manter relações sexuais com menores de 18 anos que sejam prostitutas’. Ou seja, como não foram eles que ‘iniciaram’ as meninas (ao sexo e à prostituição), eles não têm culpa”.
Há aí uma incorreção.
A explicação para a decisão da Justiça não é a apontada. O fato é que:
1) os adolescentes não tem disposição do próprio corpo até os 14 anos, depois disso, podem manter relações sexuais;
2) prostituição não é crime, somente explorar economicamente a atividade de uma prostituta é crime.
Logo, concluímos que ou o cidadão acusado, para ser condenado, ou manteve relações sexuais com uma menor de 14 anos ou explorou economicamente a atividade de uma prostituta, independentemente de sua idade.
Abraços,
Fernando Correa.
a coragem de nos apresentarmos.
ResponderExcluirverdadeiro isto.
bons textos, muito bem escritos.
parabéns!
li algo sobre vc na revista Bravo.
um abraço.
Perfeita sua análise, me fez pensar em um monte de coisas e me deu vontade de assistir a todos os filmes citados rs
ResponderExcluirA Rosa Maria esbarrou em mim e me transformou......
ResponderExcluirAchei a sugestão de usar calçados confortáveis o máximo :-)
ResponderExcluirContardo,
ResponderExcluirAdorei a sugestão de usar calçados confortáveis. :-)
Abraço
izabel
vc é sempre essa pessoa que seduz e explica...amei tudo e amo saber que calçados confortáveis têm seu papel...obrigada ;)
ResponderExcluirO tema me chama muito a atenção. Dos filmes citados, só assisti ao segundo filme de Richard Linklater e me recordo que fiquei impressionado com tudo que vi e ouvi. Fiquei muito curioso em assistir "Tinha que ser você". Procurarei hj nas locadoras...
ResponderExcluirObrigado por suas palavras sempre lúcidas!!!
abraços
Leslie Carlos Lima