PASSEI ALGUM tempo de descanso na Provença, no sul da França, e, de lá, fui a Veneza para a abertura da Bienal de Arte (que dura até 22 de novembro).
A Provença é o berço do Marquês de Sade, que viveu a infância no castelo de família em Saumane-de-Vaucluse, ensaiou algumas de suas fantasias sexuais no castelo de Mazan e, enfim, transcorreu boa parte de seu tempo de liberdade em outro castelo de família, em Lacoste.
O castelo de Lacoste é uma maravilhosa ruína, restaurada por Pierre Cardin, o costureiro, que comprou o lugar em 2001. Em Lacoste, Sade se refugiou várias vezes, achando que seu estatuto de nobre vivendo em suas próprias terras o protegeria do poder central e do ódio de sua sogra. Não funcionou: é lá que ele foi preso, em 1778, e de lá que ele saiu para a prisão e, enfim, o hospício.
Hoje, em Lacoste, há lojinhas de bugiganga e cafés com o nome de Sade. O Marquês deixou de ser opróbrio para se tornar nome comum ("sadismo"), e seu castelo é uma atração turística, como qualquer lugar onde nasceu ou viveu um grande homem, um herói.
No que é atualmente a entrada do castelo, ergue-se um busto monumental: nele, a cabeça de Sade está presa numa gaiola -provavelmente para lembrar que o mundo tentou em vão enjaular seus pensamentos.
O castelo surge acima do vilarejo homônimo, no topo de um monte, no vento, com uma vista aberta sobre a planície e outros vilarejos na distância. No dia de minha visita a Lacoste, a esplanada diante da entrada era deserta. Era fácil imaginar Sade, isolado, fechado no seu castelo, longe da cidade e dos bordéis, tentando arremedar suas cenas sadomasoquistas com a ajuda da mulher, do mordomo e de três domésticas, e, sobretudo, incapaz de parar de fantasiar. Talvez, no busto, a jaula ao redor da cabeça do Marquês não seja a da cadeia, mas a de sua mente, que o prende e não lhe dá trégua.
A leitura prolongada de Sade me produz sempre uma espécie de enjoo. Não é efeito de horror ou de reprovação; acho que meu mal estar tem duas causas: a sensação de que não há como fugir da insistência das fantasias eróticas e a constatação de que, no erotismo moderno (que Sade propriamente revelou), sexo e poder são indissociáveis, como se fosse impossível desejar um corpo sem querer prendê-lo, atormentá-lo e, em última instância, supliciá-lo ou (dá na mesma) sem querer ser preso, atormentado e supliciado por ele.
Exagero? Se os escritos de Sade fossem apenas patológicos, se pertencessem ao hospício onde foi relegada sua pessoa, eles já teriam sido esquecidos. Sade é um gigante (incômodo) porque ele fala de algo que está em todos nós: desde que o poder se tornou uma fantasia e um desejo praticáveis por todos nós (seja qual for o berço em que nascemos), ele invadiu nosso repertório erótico.
Poucos dias depois da visita a Lacoste, visitei a Bienal de Veneza. Entre os convidados pela curadoria geral do evento, Paul Chan, um artista americano, originário de Hong Kong, apresenta "Sade for Sade's Sake" (Sade pelo interesse de Sade), um vídeo (de uma parede inteira) de sombras que interagem numa orgia de sexo, poder, violência e fala. A gente não ouve nada do que é dito, mas os lábios das sombras mexem sem parar, como se uma articulação incessante de ordens, explicações, pretensões pedagógicas, instruções e fantasias fosse parte integrante da máquina do desejo que anima a todos, mestres e vítimas. Alguns comentadores veem na obra uma denúncia do erotismo das fotografias de tortura na prisão de Abu Ghraib. Mas a questão verdadeira -que Sade e Chan nos colocam- vai mais longe: por que nos parece "óbvio" que uma tortura possa ser erótica?
Por estar viajando, não assisti ainda a "Justine", que encerra a trilogia de Sade montada por Rodolfo García Vázquez, no espaço dos Satyros da Praça Roosevelt, em São Paulo. A temporada vai até 24 de junho, às terças e quartas, às 21 horas. No dia seguinte, 25, em Paris, Christie's proporá o leilão de uma extraordinária biblioteca francesa. Claro, as edições originais de Sade (escondidas e destruídas na época) são mais raras de que as de Rousseau, mas resta que uma edição original do "Contrato Social" de Rousseau (1762) é apresentada com a estimativa mínima de US$ 11 mil, enquanto a primeira edição de "Justine ou os Infortúnios da Virtude" (1791) vale ao menos US$ 21 mil. Talvez eu concorde com os preços do mercado.
A Provença é o berço do Marquês de Sade, que viveu a infância no castelo de família em Saumane-de-Vaucluse, ensaiou algumas de suas fantasias sexuais no castelo de Mazan e, enfim, transcorreu boa parte de seu tempo de liberdade em outro castelo de família, em Lacoste.
O castelo de Lacoste é uma maravilhosa ruína, restaurada por Pierre Cardin, o costureiro, que comprou o lugar em 2001. Em Lacoste, Sade se refugiou várias vezes, achando que seu estatuto de nobre vivendo em suas próprias terras o protegeria do poder central e do ódio de sua sogra. Não funcionou: é lá que ele foi preso, em 1778, e de lá que ele saiu para a prisão e, enfim, o hospício.
Hoje, em Lacoste, há lojinhas de bugiganga e cafés com o nome de Sade. O Marquês deixou de ser opróbrio para se tornar nome comum ("sadismo"), e seu castelo é uma atração turística, como qualquer lugar onde nasceu ou viveu um grande homem, um herói.
No que é atualmente a entrada do castelo, ergue-se um busto monumental: nele, a cabeça de Sade está presa numa gaiola -provavelmente para lembrar que o mundo tentou em vão enjaular seus pensamentos.
O castelo surge acima do vilarejo homônimo, no topo de um monte, no vento, com uma vista aberta sobre a planície e outros vilarejos na distância. No dia de minha visita a Lacoste, a esplanada diante da entrada era deserta. Era fácil imaginar Sade, isolado, fechado no seu castelo, longe da cidade e dos bordéis, tentando arremedar suas cenas sadomasoquistas com a ajuda da mulher, do mordomo e de três domésticas, e, sobretudo, incapaz de parar de fantasiar. Talvez, no busto, a jaula ao redor da cabeça do Marquês não seja a da cadeia, mas a de sua mente, que o prende e não lhe dá trégua.
A leitura prolongada de Sade me produz sempre uma espécie de enjoo. Não é efeito de horror ou de reprovação; acho que meu mal estar tem duas causas: a sensação de que não há como fugir da insistência das fantasias eróticas e a constatação de que, no erotismo moderno (que Sade propriamente revelou), sexo e poder são indissociáveis, como se fosse impossível desejar um corpo sem querer prendê-lo, atormentá-lo e, em última instância, supliciá-lo ou (dá na mesma) sem querer ser preso, atormentado e supliciado por ele.
Exagero? Se os escritos de Sade fossem apenas patológicos, se pertencessem ao hospício onde foi relegada sua pessoa, eles já teriam sido esquecidos. Sade é um gigante (incômodo) porque ele fala de algo que está em todos nós: desde que o poder se tornou uma fantasia e um desejo praticáveis por todos nós (seja qual for o berço em que nascemos), ele invadiu nosso repertório erótico.
Poucos dias depois da visita a Lacoste, visitei a Bienal de Veneza. Entre os convidados pela curadoria geral do evento, Paul Chan, um artista americano, originário de Hong Kong, apresenta "Sade for Sade's Sake" (Sade pelo interesse de Sade), um vídeo (de uma parede inteira) de sombras que interagem numa orgia de sexo, poder, violência e fala. A gente não ouve nada do que é dito, mas os lábios das sombras mexem sem parar, como se uma articulação incessante de ordens, explicações, pretensões pedagógicas, instruções e fantasias fosse parte integrante da máquina do desejo que anima a todos, mestres e vítimas. Alguns comentadores veem na obra uma denúncia do erotismo das fotografias de tortura na prisão de Abu Ghraib. Mas a questão verdadeira -que Sade e Chan nos colocam- vai mais longe: por que nos parece "óbvio" que uma tortura possa ser erótica?
Por estar viajando, não assisti ainda a "Justine", que encerra a trilogia de Sade montada por Rodolfo García Vázquez, no espaço dos Satyros da Praça Roosevelt, em São Paulo. A temporada vai até 24 de junho, às terças e quartas, às 21 horas. No dia seguinte, 25, em Paris, Christie's proporá o leilão de uma extraordinária biblioteca francesa. Claro, as edições originais de Sade (escondidas e destruídas na época) são mais raras de que as de Rousseau, mas resta que uma edição original do "Contrato Social" de Rousseau (1762) é apresentada com a estimativa mínima de US$ 11 mil, enquanto a primeira edição de "Justine ou os Infortúnios da Virtude" (1791) vale ao menos US$ 21 mil. Talvez eu concorde com os preços do mercado.
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